28.5.13

PRÉMIO CAMÕES PARA MIA COUTO





Recordo o post de 29/03/2009:

http://lugaronde.blogspot.pt/2009/03/mia-couto.html

Parabéns, Mia Couto!

Lembro-me da impressão que me causou a leitura de  A VARANDA DO FRANGIPANI, há uns anos, e de como nunca mais deixei de ler este inventor de escritas, traço de união entre Portugal e Moçambique, homem de rara sensibilidade, cidadão atento ao mundo.

Mais tarde descobri a sua poesia
Curiosamente, sendo um criativo na prosa, Mia Couto faz uma poesia aparentemente banal, recusando os experimentalismos em que certa poesia portuguesa se atolou no final do séc. passado. Mas o sopro criativo também lá está. Sem códigos fechados nem metáforas rebuscadas, esta poesia é límpida, cristalina. Apetece partilhá-la.


Para Ti


Foi para ti
que desfolhei a chuva
para ti soltei o perfume da terra
toquei no nada
e para ti foi tudo

Para ti criei todas as palavras
e todas me faltaram
no minuto em que talhei
o sabor do sempre

Para ti dei voz
às minhas mãos
abri os gomos do tempo
assaltei o mundo
e pensei que tudo estava em nós
nesse doce engano
de tudo sermos donos
sem nada termos
simplesmente porque era de noite
e não dormíamos
eu descia em teu peito
para me procurar
e antes que a escuridão
nos cingisse a cintura
ficávamos nos olhos
vivendo de um só
amando de uma só vida

Mia Couto, in "Raiz de Orvalho e Outros Poemas"

PORTUGAL VISTO PELOS ESTRANGEIROS


BADALADAS, 24 DE MAIO 2013


OUTROS OLHARES

PORTUGAL VISTO PELOS ESTRANGEIROS

Nos séculos XVIII e XIX Portugal foi destino turístico muito procurado pelos europeus em geral e ingleses em particular. O fausto da corte de D. João V e o terrível terramoto de 1755 atraíram os viajantes de Setecentos; os ecos da Guerra Peninsular bem como as crescentes facilidades de transportes trouxeram os turistas de Oitocentos. Para os ingleses acrescia a prosápia de se sentirem senhores em protectorado político e económico - daí os seus relatos não raro caluniosos e eivados de preconceito para com os bárbaros do sul. 
Chegaram até nós muitos registos dessas viagens, manancial de informação a ser lida com as reservas devidas à ligeireza dos escritos, e o cuidado de cruzar dados com outros de diferente proveniência. Se há uns anos tais testemunhos eram vistos com desconfiança pelos historiadores, hoje parece haver lugar próprio para eles, devido sobretudo ao estabelecimento de critérios mais rigorosos de leitura, aliados ao confronto com outras fontes.
 As impressões de viagem são, por natureza, carregadas de subjectividade e revelam mais sobre os autores do que sobre a realidade que descrevem. Por isso a abordagem destas obras tende actualmente a relativizar os juízos de valor e as apreciações pessoais e a focar-se sobre aspectos da vida quotidiana que as fontes primárias tradicionais muitas vezes descuram.

Vistos a esta luz, os relatos dos viajantes estrangeiros em Portugal são apaixonantes pois nos arrastam para dentro da vida dos contemporâneos com quem privaram e que nos surgem plenos de vida em toda a sua humanidade.



UM FORMOSO LIVRO

Ao contrário dos escritos da maioria dos ingleses que andaram por Portugal e que cederam ao erro tão comum de generalizar a toda a população uma impressão particular ou um acontecimento fortuito, o livro de Lady Jackson A FORMOSA LUSITÂNIA é um relato curiosíssimo de alguém que soube respeitar o país que visitou e que o olhou com sensibilidade e abertura de espírito. Sem deixar de ser crítica, soube enquadrar o que observou nas contingências de um país sem recursos e que mal saíra de um longo período de conflitos – a Guerra Peninsular e a Guerra Civil. Foi seu propósito expresso “combater a arrogante, desdenhosa e ignorante opinião que os ingleses tinham de Portugal como um país atrasado, retrógrado, inculto.”
Um dos aspectos mais atraentes da edição portuguesa, publicada em 1878, três anos depois da primeira edição em Inglaterra, é a tradução da autoria de Camilo Castelo Branco. O grande prosador censura alguns deslizes e excentricidades da autora, em notas bem-humoradas, por vezes no seu jeito sarcástico, mas reconhece e enaltece a validade e interesse da obra. A edição de que nos servimos, de 2007, respeita integralmente a primeira, incluindo as 21 gravuras da época, de que reproduzimos a que representa o Cais do Sodré naquela época
Para os interessados: A FORMOSA LUSITÂNIA – Portugal em 1873, Catherine Charlotte Jackson; tradução e notas de Camilo Castelo Branco, edição Caleidoscópio, Casal de Cambra, 2007

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UM SUECO EM PORTUGAL

Carl Israel Ruders foi capelão da Embaixada da Suécia em Lisboa entre 1798 e 1802. Durante a sua estada em Portugal, escreveu algumas dezenas de cartas para os amigos da pátria distante, respondendo assim ao pedido que eles lhe haviam feito para que fosse dando conta do que via por cá. 
Regressado à Suécia, perante o sucesso das cartas que circulavam entre amigos e curiosos, resolveu editá-las em livro, que logo seriam traduzidas para alemão. O diplomata e escritor António Feijó (1859 - 1917, que foi embaixador na Suécia) traduziu grande parte da obra do alemão para a nossa língua e publicou-a no Diário de Notícias . A Biblioteca Nacional viria a editar essa tradução em 1981. Na segunda edição de 2002, saiu um segundo vol. que inclui as partes que A. Feijó havia omitido, possivelmente por razões de espaço no jornal.
A obra de Ruders é considerada um dos melhores e mais fidedignos testemunhos escritos por estrangeiros nas suas viagens a Portugal, ao contrário de outros relatos manchados pela falta de rigor, pelo preconceito ou por generalizações abusivas. Vejamos alguns excertos do seu livro VIAGEM EM PORTUGAL – 1798-1802 (Biblioteca Nacional, Lisboa 2002)

A MULHER PORTUGUESA

«A fisionomia das mulheres portuguesas, falando em geral, não tem aquela delicadeza, de tão natural e perfeita inocência, de graça tão profundamente tocante, que se revela no rosto de tantas raparigas inglesas. É mais majestosa e imponente. Mas se este grande ar incute respeito as linhas voluptuosas da sua figura também despertam apetites sensuais. Os seus belos e eloquentes olhos negros, onde flameja uma labareda, que em vão elas se esforçam por esconder, os seus longos e formosíssimos cabelos, as suas grandes sobrancelhas pretas, o seu nariz bem talhado, os seus lábios frescos, onde paira um sorriso atraente, os seus dentes tão brancos que parecem polidos, e a sua pele branca e rosada, hão-de produzir sempre uma impressão lisongeira.
 (…)
Este conceito, é claro, refere-se às mulheres portuguesas tomadas em geral, quer dizer, no seu conjunto. As excepções são, de certo, muito numerosas. Vêem-se aqui figuras de mulheres feias até à náusea, e também não são raros, nesta grande cidade, os exemplos daquelas que se fazem notar pelos seus vícios e maus costumes. Mas a opinião geral e o tom reinante aqui faz destas últimas seres desprezíveis e quase sequestrados do meio social.»





[ Lisboa antiga, Feira da Ladra na Rua da Alegria ]


MAUS HÁBITOS DE HIGIENE PÚBLICA

«Actualmente, a maior parte das ruas nunca são varridas, e as outras muito raras vezes.
Naquelas que são varridas, o lixo é deixado em montinhos, mas tanto tempo que se espalha de novo, antes que alguma parte dele chegue a ser retirado; e há sempre restos consideráveis que ficam.
É, certamente, de mau gosto exibir aos olhos do meu amigo o repugnante quadro duma rua que nunca foi limpa. E como seria esse quadro sabendo-se que, sem a menor infracção, pelas janelas — das melhores casas se lançam à rua — de manhã, todas as varreduras; à hora do jantar, todos os restos; e à noite toda a outra imundície acumulada!
Existem, aqui, algumas pretas, que, de tempos a tempos, se empregam no mesmo serviço de transporte dos despejos das casas, como certas mulheres em Estocolmo.
Mas, como são em pequeno número, não fazem uma centésima parte daquilo que era preciso. O lixo que não é retirado por essa forma vai aumentar a imundície das ruas, e lá fica até que os transeuntes o levem na roupa, em forma de poeira ou de lama, para outras casas.»





2.5.13

NOME DE GUERRA - Almada Negreiros





«A SOCIEDADE SÓ TEM QUE VER COM TODOS, 
NÃO TEM NADA QUE CHEIRAR COM CADA UM

Cada um tem o destino universal de fazer consigo mesmo o modelo de mais uma estátua humana. E esta fabrica-se apenas com íntimo pessoal.
O nosso íntimo pessoal é inatingível por outrem. E é este o fundamento de toda a humanidade, de toda a Arte e de toda a Religião. O nosso íntimo pessoal é de ordem humana, estética e sagrada. Serve apenas o próprio. E o seu único caminho. O me­lhor que se pode fazer em favor de qualquer é ajudá-lo a entre­gar-se a si mesmo. Com o seu íntimo pessoal cada um poderá estar em toda a parte, sejam quais forem as condições sociais, as mais favoráveis e as mais adversas. Sem ele, nem para fazer número se aproveita ninguém.
A individualidade e a personalidade são florescências desse invisível do nosso ser a que chamamos o nosso íntimo. Tudo quanto de bom ou de mau, de óptimo ou de péssimo exista em cada qual nasceu com ele e formou-se secretamente, intima­mente, a despeito de todo o aspecto que lhe venha do exterior, de toda a educação e acção alheias.
O papel da sociedade é imediatamente mais evidente sobre cada pessoa do que o atropelado movimento das gerações que a antecederam e lhe determinaram o seu sangue, mas aquela não vale esta. Que uma pessoa tome a seu cargo dirigir o próprio des­tino que lhe coube, é com ela. Que seja a sociedade quem se pro­ponha dirigi-lo, é ingenuidade. O mais que neste caso poderá a sociedade é eliminar esse destino pessoal. A sociedade só tem que ver com todos, não tem nada que cheirar com cada um!
Cada um nasce já bem ou mal educado. E depois de nascido bem ou mal educado, tudo quanto se faça pode pouco para ime­diatamente. Vereis gentes humildes, analfabetos, simples e per­feitamente bem educados, sabendo medir as distâncias entre pessoas, sem se atrapalharem com as escalas sociais, e perfeita­mente uníssonos com o seu próprio caso pessoal. Vereis, por outra, gentes de opinião, passados superiormente por cursos, e, uma vez na altura oficial, não saberem distinguir pessoas de formigas, e outras vertigens dos sítios altos, e, o que é pior, de costas voltadas para si mesmos como para o diabo. Isto é, aqui­lo em que eles poderiam merecer o nosso interesse é precisa­mente ao que eles voltaram as costas!
O autor destas páginas também desenha e não sabe expressar por palavras a extraordinária impressão que recebe sempre que copia o perfil de qualquer pessoa. A natureza chega tão com­plexa às feições de cada um, que somos forçados a não poder aceitar cada qual resumido ao lugar em que a sociedade o põe. Através dos séculos, uma linha única e incessantemente seguida acabou por tornar inimitável o perfil de cada um. Essa linha passa agora desde o alto da testa até por baixo do queixo, e às vezes lembra a de outros, mas é intransmissível.»
 (NOME DE GUERRA, Almada Negreiros)




"Nome de guerra" é nome de livro. Veja-se AQUI:


«Nome de guerra, romance de aprendizagem (Bildungsroman) de Almada Negreiros, foi escrito em 1925 e publicado em 1938. Para Eduardo Prado Coelho, inaugura “na nossa literatura um modelo de ficção-reflexão” (1970: 35) que só na segunda parte do século terá continuidade. 

Em termos de construção narrativa, o romance representa a luta entre a personalidade do indivíduo e as normas da sociedade por adquirir uma certa autonomia. Antunes, o neófito, rebela-se contra os padrões sociais: "amava a verdade acima de tudo", "quem pensa sozinho não quer senão a verdade, as justificações são por causa dos outros". 

O problema começa com a tentativa dos pais, da sociedade e dos modelos culturais e psicológicos de exercer a sua influência sobre o destino do protagonista: "É sempre assim, temos sempre que perder o nosso tempo em desfazer o bem que os outros fizeram por nós". »