19.6.08

"FAZER DA VIDA UMA OBRA DE ARTE"



ANTÓNIO ALÇADA BAPTISTA,
O PROFETA DOS AFECTOS

Nas antigas escrituras a divindade encarregava os sábios/profetas de avisar os homens. Portadores de uma mensagem nova, eram precursores do seu tempo. E o tempo dava-lhes razão.

António Alçada Baptista foi um precursor do primado dos afectos. Soube ler nos sinais da História os indícios de um novo tempo. Correndo o risco de ser mal entendido, denunciou o racionalismo estreito dos sistemas políticos redentores, defendendo a necessidade de começar pelos sentimentos, pelo culto das afeições e do amor, pela introspecção - peregrinação interior como forma de desenvolvimento espiritual. Apercebendo-se da armadilha fatal do consumismo, afirmou a prioridade absoluta do SER sobre o TER.A religião tradicional católica não ficou imune ao seu exame. Aliás, foi por ela que AAB iniciou o seu percurso de denúncia das verdades estabelecidas. A sua “Peregrinação Interior – Reflexões sobre Deus”, publicado em 1971, foi uma enorme pedrada no charco do regime político e das mentalidades retrógradas da época. Os subtítulos da portada interior do livro são esclarecedores: «Quadros da vida quotidiana numa sociedade em vias de desenvolvimento; fragmentos do memorial do combate que Jacob Alçada Baptista vem travando com o anjo que lhe foi atribuído».
O projecto de Alçada Baptista tinha dois propósitos. 1º: Examinar as bases da educação tradicional católica e confrontá-las com as realidades do tempo actual; 2º: Decifrar os sinais de inquietação do homem contemporâneo, procurando saídas para a sua angústia existencial.
Este programa de acção não era novo. A originalidade de A. Baptista está no modo como o abordou.: expondo-se! Ele, um filho da burgo-aristocracia beirã, com futuro garantido no regime da época, decidiu destapar o cenário da sua origem de classe e fazer o inventário da imensa hipocrisia que o sustentava. E fê-lo falando abertamente de si, verrumando impiedosamente o seu percurso pessoal, vazando-o publicamente nos muitos livros que escreveu. Um deles, o romance “Os Nós e os Laços” (1985) teve um enorme sucesso. Não pela sua qualidade literária - que era mediana – mas porque expunha, de forma simples e eficaz toda a teoria do autor sobre a humanidade, os seus sofrimentos e a forma de os enfrentar.
Ao reler os livros de AAB verificamos que o tempo lhe deu razão. Por isso eles continuam tão actuais.


Alçada Baptista em discurso directo

A cultura do feminino

«A nossa sociedade vive na cultura do masculino por causa do poder. Toda a nossa educação foi feita à base dos grandes heróis, dos homens que detinham muito poder — Napoleão Bonaparte, Alexandre, o Grande, ou Afonso de Albuquerque. Certas constantes fisiológicas, como a menor força física e o embaraço periódico da maternidade, decretaram que o homem monopolizasse o poder. Como este tem sido o instrumento determinante da escrita e da edificação da História, foi construído um universo de valores ditos “masculinos”.
Aquilo que de mais importante aconteceu na minha vida foi a entrada da mulher na História. Ela não estava na História quando eu nasci. Sou do tempo em que, quando uma mulher passava a conduzir, se dizia: “Olha uma mulher a guiar!”.»
. «O homem deve assumir sem vergonha o mundo dos afectos. Porque hoje acabou o poder absoluto e as pessoas têm muito mais poder, de muitas naturezas, a nível individual.»

O amor

«Os comportamentos do amor estão a modificar-se e isso fundamentalmente pela intervenção do feminino na sociedade: a liberdade sexual, o direito ao prazer e ao uso do corpo, tudo isso modificou a liturgia do desejo porque impôs novas regras na aproximação da mulher com o homem»

«O mais importante: saber ter com os outros uma relação afectuosa no tempo e isso só é possível se nos dispusermos a dar e a compreender a singularidade de cada um.
A felicidade humana tem que ser construída a partir da consciência que um homem ou uma mulher tiverem de si próprios e da sua liberdade para poderem talhar com ela o seu próprio destino. Mas liberdade não é libertinagem, não há liberdade sem responsabilidade e sem a consciência de que somos solidários. Isso, a meu ver, modificaria radicalmente a relação entre as pessoas, porque um dos dramas do amor é que as pessoas não se respeitam. Respeitar os outros é reconhecer que eles são pessoas livres e agir em conformidade com esse reconhecimento. Creio que isso pode dar relações muito mais duradouras do que este jogo de sedução e astúcia com que são feitos os quadros culturais do amor.»
(Declarações retiradas de diversas entrevistas a órgãos de comunicação social escrita)

Vida e obra
Nascido na Covilhã, em 1927, estudou num colégio de Jesuítas em Santo Tirso. Licenciou-se em Direito pela universidade de Lisboa. Foi um dos fundadores da revista O Tempo e o Modo, que dirigiu entre 1963 e 1969. De 1957 a 1972 foi director da prestigiada Moraes Editora. Foi presidente do Instituto Português do Livro de 1979 a 1985. Exerceu o jornalismo em vários periódicos (A Capital, O Semanário, O Dia, A Tarde, por exemplo) com publicação regular de crónicas, algumas das quais já reunidas em livro. O reconhecimento público pela sua acção cívica e cultural valeu-lhe diversas condecorações: Oficial da Ordem de Santiago, a Ordem Militar de Cristo, e a Grã-Cruz da Ordem do Infante.

A sua obra literária reparte-se entre a ficção e o ensaio de memórias pessoais e colectivas:
Documentos políticos, 1970 / Peregrinação Interior – I, Reflexões Sobre Deus, 1971 (reflexão pessoal e social) / O Tempo nas Palavras, 1973 (Crónicas no jornal “A Capital”) / Conversas com Marcelo Caetano, 1973 / Peregrinação Interior – II, O Anjo da Esperança 1982 / Uma Vida Melhor, 1984 / Os Nós e os Laços, 1985 (Romance) / Catarina ou o Sabor da Maçã, 1988 (Romance) / Tia Susana, Meu Amor, 1989 (Romance) / O Riso de Deus, 1994 (Romance) / A Pesca à Linha – Algumas Memórias, 1988 / O Tecido de Outono, 1999 (Autobiografia romanceada / Um Olhar à Nossa Volta, 2002 (crónicas nos jornais “O Dia” e “A Tarde” / A Cor dos Dias – Memórias e Peregrinações, 2003. Edições Presença.



CITAÇÕES

“A autobiografia espiritual que são, efectivamente, os dois volumes de Peregrinação Interior, contestando com subtil ironia e transparência ideológica o ambiente que rodeou a sua infância e juventude, foi considerada na altura, pela crítica, uma obra-prima do seu género, à qual se associava a vasta cultura filosófica, bem travejada e profundamente actualizada.”
(Dicionário da Literatura Portuguesa, ed. Presença, 1996)

“ O que mais admiro no A Alçada B. é o facto de ser um homem livre, que usa os afectos, os rituais da amizade, a arte do diálogo e da conversa como método para compreender e aproximar pessoas. É um praticante activo da aristocracia do comportamento - «a vida é a nossa obra de arte» - por isso lhe encontramos uma coerência, uma generosidade, uma dúvida serena, uma prática permanente de procura do sentido da dignidade humana.”
(Guilherme d’ Oliveira Martins, Jornal de Letras e Artes, 26 / 6/ 2002)

21.5.08

UM LUGAR PARA A HISTÓRIA - O Arquivo Municipal de Torres Vedras




Vivemos um tempo de experiências imediatas e consumos de urgência, como se o amanhã não existisse e o passado não contasse mais… Mas é neste tempo, curiosamente, que a História exerce uma atracção poderosa. Sucedem-se as edições de estudos e romances de carácter histórico, como se toda a gente tivesse ficado subitamente cansada da ficção pura e procurasse no passado uma compensação para o vazio do presente.
Este fenómeno interessante verifica-se também entre nós, torrienses e pouco significado teria se fosse uma moda de circunstância. Mas, felizmente, não é.

Já o LUGAR ONDE de Fevereiro de 2004 chamava a atenção para o facto de que “é tempo de falar de uma historiografia torriense”. E fazia uma listagem das obras históricas mais significativas. De então para cá o panorama enriqueceu-se, com a publicação de outras obras que constituem um repositório valiosíssimo para o conhecimento do nosso passado. O que queremos salientar hoje é que, a este facto, não é alheia a reorganização do Arquivo Municipal cujos objectivos a médio prazo foram assim definidos:
Conclusão da organização física dos fundos do Arquivo Municipal;
Promoção de projectos de investigação de interesse local e regional, em parceria com a FCT (Fundação para a Ciência e a Tecnologia)
Edição de fontes documentais e estudos on-line;
Elaboração de um Plano Cultural Específico:
Organização de exposições temáticas;
Organização de visitas de estudo ao Arquivo;
Acções de formação sobre gestão documental para as Juntas de Freguesia, Paróquias, Escolas e Associações;
Colóquios e Encontros sobre história e identidade locais.
Orientação de estágios
Microfilmagem e Digitalização de algumas séries documentais.
Ao propor-se dinamizar um Plano Cultural e assegurar a orientação de estágios, entre outros objectivos, o Arquivo Municipal passou a protagonizar uma acção de enorme alcance e de resultados bem visíveis na área da cultura e, mais especificamente, na historiografia torriense.
Sem pretendermos fazer agora o levantamento rigoroso dessa acção, lembramos duas
iniciativas do Arquivo Municipal: a realização das “Sopas de Pedra” – no claustro do Convento da Graça, em que se divulga História Local como sobremesa de autênticas sopas tradicionais…; e os Encontros de História sob o título genérico de “TURRES VETERAS”, o mais recente dos quais se realizou na passada semana e que foi o XIº!
Destes Encontros têm vindo a ser publicadas as respectivas actas que, no seu conjunto, constituem um importantíssimo acervo documental e de investigação histórica, tanto do ponto de vista nacional como local. Podem ser adquiridos na Biblioteca Municipal por preços quase simbólicos. Cada volume versa um tema específico: I – História Medieval; II – História Moderna; III – História Contemporânea; IV – Pré-História e História Antiga; V – História Militar e da Guerra; VI – História da Morte; VII – História das Figuras do Poder; VIII – História das Festas; IX – História da Alimentação; X – História do Sagrado e do Profano.


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ENTREVISTA
Missão cultural dos Arquivos

Carlos Guardado da Silva é o Director do Arquivo Municipal de Torres Vedras, onde tem realizado uma notável e intensa actividade de organização e divulgação dos acervos documentais. Pusemos-lhe algumas questões:

LUGAR ONDE (L.O.): A imagem tradicional que temos dos arquivos é a de lugares sombrios onde se guardam papeladas velhas que só interessam aos estudiosos da História, e onde está vedada a entrada do público. A realidade actual é muito diferente desta ideia?
Carlos Guardado (C.G.): Nas últimas décadas do século XX os arquivos tornaram-se verdadeiros “centros” culturais, associando este papel com a função da comunicação e o acesso democrático à cultura, direito garantido pela Constituição da República.
L.O. – Qual é a função actual dos Arquivos?
C.G. – A sua função continua a ser a de gestão patrimonial, gestão de um património específico – o documental – produzido pelas diversas entidades (colectivas, pessoas, famílias…), garantindo a salvaguarda dos direitos dos cidadãos, ao mesmo tempo que conservam a memória. Os Arquivos, tal como as Bibliotecas e os Museus, fazem parte das chamadas «instituições memorizadoras», a quem cabe a função de recuperação da memória. Esta recuperação e a sua valorização constituem uma verdadeira tarefa educativa, cultural e cívica, cabendo aos arquivos a responsabilidade de fazer perdurar no tempo um património único.
L.O. – Qualquer cidadão pode ter acesso aos arquivos?
C.G. – Cada vez mais os indivíduos sentem necessidade de conhecer as suas origens – pessoais ou sociais – com as quais se identificam, permitindo a construção ou o reforço dos laços de pertença. Os deveres e direitos dos cidadãos em relação à cultura estão constitucionalmente garantidos, como já disse, e a legislação sobre Arquivos definem-nos como “instituições culturais”. Por isso os arquivistas estão cada vez mais abertos ao aumento e diversificação dos perfis dos clientes, isto é, dos utilizadores, o público em geral.
L.O. – Essa diversidade é compatível com o trabalho diário dos arquivistas?
C.G. – Interessa a cada arquivo satisfazer as necessidades e expectativas dos utilizadores externos, assim como captar novos utilizadores que desconhecem muitas vezes quer a existência dos arquivos, quer de determinados documentos, ou determinados serviços. Esta é uma mudança iniciada “timidamente” em França, no início da década de 50 do século passado, vindo os investigadores profissionais a ceder protagonismo em favor de estudantes e de curiosos, tendo estes uma formação variável, que não apenas a da História, procurando investigar temas de âmbito genealógico ou de história local.
L.O. – Aos arquivistas pede-se, então, uma multiplicidade de tarefas?...
C.G. – Pois, já não chega ao arquivista ser um gestor de documentação (a documentação de arquivo) e de informação. As suas competências têm de se desenvolver para ir ao encontro das funções de comunicação e de difusão e de dinamização cultural. E o arquivista não pode igualmente descurar as técnicas de marketing, o conhecimento do mundo multimédia, assim como a planificação e a gestão de recursos, quer sejam materiais, quer sejam de informação, quer sejam financeiros, quer sejam, ainda, recursos humanos.
Cabe também ao Arquivista comunicar os documentos aos diferentes públicos. É aliás a comunicação, enquanto função, a dimensão da profissão que justifica todas as outras dimensões. A finalidade da conservação dos arquivos é poder, dentro dos ditames da lei, comunicar os documentos ao maior número possível
.


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Nos dias 16 e 17 de Maio decorreu mais uma edição do Encontro de História, desta vez sob o tema da Guerra Peninsular, evocando o Bicentenário das Invasões Francesas. Iniciativa de diversas entidades, com destaque para a Câmara Municipal de Torres Vedras através do seu serviço de Arquivo. De sublinhar a participação das universidades de Aix en Provence, Varsóvia e Oviedo, para além da presença habitual das universidades de Lisboa e de Coimbra.
Salientamos a qualidade excepcional dos materiais de promoção – cartazes e desdobráveis com o programa – da autoria de Olga Moreira. Vale a pena seguir com atenção as belíssimas criações estéticas desta profissional do design gráfico.





Em cada TURRES VETERAS é feito o lançamento do livro com as comunicações do Encontro do ano anterior. A “História do Sagrado e do Profano” foi o tema do ano passado, agora em livro com 284 páginas, em que se transcrevem os textos das 19 comunicações apresentadas.

16.4.08



MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO:
Um poeta em trágico desencontro com a vida

Escreveu poesia entre os 22 e os 25anos, num estilo único, enquanto cultivava uma grande amizade por Fernando Pessoa. Depois suicidou-se. Tanto bastou para marcar de forma indelével a Literatura Portuguesa.

Para quem gosta de análise psicológica, a vida de Mário de Sá-Carneiro é um paradigma: nascido numa família de posses, ficou órfão de mãe aos dois anos. Com o pai quase sempre ausente por razões profissionais, mas materialmente generoso, foi criado por uma velha ama. Havia ordens para que todas as dificuldades fossem aplanadas e o menino cresceu em abundância, preguiça, ignorância das dificuldades da vida. As tentativas frustradas de cursar Direito em Coimbra e depois em Paris revelam a sua absoluta incapacidade para superar dificuldades práticas. Uma hipersensibilidade rara juntou-se ao alheamento da vida real e Mário S-C, acabou por encontrar na Literatura a única via possível para chegar ao mundo exterior.
Mas aqui foi, de facto, único.


O ESTILO POÉTICO

“O motivo central da sua obra é o da crise de personalidade, a inadequação do que sente ao que desejaria sentir” (Hist. da Literat. Portug, A.J.Saraiva e Óscar Lopes) Mas esta carga subjectiva acaba por se assumir como expressão de um mal-estar social e colectivo, prenúncio profético da crise de valores do homem contemporâneo. Por isso a sua poesia, escrita no início do século XX, mantém uma estranha actualidade.
Massaud Moisés, na sua “Literatura Portuguesa” aponta algumas características do estilo deste poeta:

«Poeta sempre e acima de tudo, inclusive nas obras em prosa, Sá-Carneiro plasmou pela primeira vez em Língua Portuguesa realidades até então insuspeitadas. Para tanto violentou a ineficaz e espartilhante gramática tradicional e passou a usar uma sintaxe e um vocabulário novos, que lhe permitissem manipular fórmulas expressivas absolutamente pessoais, plásticas, maleáveis e aptas a surpreender o fluxo das ondas oníricas, o vago, o alucinado, as febres, o incêndio dos sentidos, a desmaterialização das coisas, a materialização das sensações, os sentimentos mais abstrusos e subtis, as sinestesias mais inusitadas, as associações mais inesperadas.» Exemplos: “Mastros quebrados, singro num mar de Ouro / Dormindo fogo, incerto, longemente… / Tudo se me igualou num sonho rente, / E em metade de mim hoje só moro…”
Na época, pela transgressão dos padrões dominantes, esta escrita foi um escândalo, naturalmente circunscrito ao pequeno mundo intelectual português. Mas viria a ter repercussões enormes em toda a nossa Literatura.

OBRA

Figura importante do Modernismo português, Mário de Sá-Carneiro fundou, com Fernando Pessoa, a revista Orpheu, de que saíram apenas dois números. Os suficientes para fazerem vingar o movimento do primeiro modernismo em Portugal, ao qual estiveram também ligados os nomes de Almada Negreiros e Santa-Rita Pintor.
Escreveu: Princípio (1912) – novelas; A Confissão de Lúcio (1913) – novela; Dispersão (1914) – poesia; Céu em Fogo (1915) – 12 novelas; Indícios de Oiro (1937) – poesia; Correspondência, quatro volumes, em 1958, 1977 e 1980. Há diversas edições da “Poesia Completa”. Uma edição boa e barata é a da Ulisseia , col. Biblioteca dos Autores Portuguesas, com um extenso estudo introdutório por Maria Ema Tarracha Ferreira.

Nasceu em Lisboa em 1890; suicidou-se em Paris em 1915

(Escultura do poeta no "Parque dos Poetas", Oeiras)

P O E MA S

QUASE

Um pouco mais de sol – eu era brasa,
Um pouco mais de azul – eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num baixo mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho – ó dor! - quase vivido...

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo... e tudo errou...
- Ai a dor de ser - quase, dor sem fim... –
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...

Momentos de alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei..
.
Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol – vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...

............................................................
............................................................

Um pouco mais de sol – e fora brasa,
Um pouco mais de azul – e fora além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa..
.Se ao menos eu permanecesse aquém...




O Lord

Lord que eu fui de Escócias doutra vida
Hoje arrasta por esta a sua decadência,
Sem brilho e equipagens.
Milord reduzido a viver de imagens,
Pára às montras de jóias de opulência
Nem desejo brumoso – em dúvida iludida...
(- Por isso a minha raiva mal contida,-
Por isso a minha eterna impaciência.)

Olha as Praças, rodeia-as...
Quem sabe se ele outrora
Teve Praças, como esta, e palácios e colunas –
Longas terras, quintas cheias,
Iates pelo mar fora,
Montanhas e lagos, florestas e dunas...

(--- Por isso a sensação em mim fincada há tanto
Dum grande património algures haver perdido;
Por isso o meu desejo astral de luxo desmedido –
E a Cor na minha Obra o que ficou do encanto...)


Além-tédio

Nada me expira já, nada me vive –
Nem a tristeza nem as horas belas.
De as não ter e de nunca vir a tê-las,
Fartam-me até as coisas que não tive.

Como eu quisera, enfim de alma esquecida,
Dormir em paz num leito de hospital...
Cansei dentro de mim, cansei a vida
De tanto a divagar em luz irreal.

Outrora imaginei escalar os céus
À força de ambição e nostalgia,
E doente-de-Novo, fui-me Deus
No grande rastro fulvo que me ardia.

Parti. Mas logo regressei à dor,
Pois tudo me ruiu... Tudo era igual:
A quimera, cingida, era real,
A própria maravilha tinha cor!

Ecoando-me em silêncio, a noite escura
Baixou-me assim na queda sem remédio;
Eu próprio me traguei na profundura,
Me sequei todo, endureci de tédio.
E só me resta hoje uma alegria:
É que, de tão iguais e tão vazios,
Os instantes me esvoam dia a dia
Cada vez mais velozes, mais esguios...

25.3.08

ARTE CONTEMPORÂNEA: INTERROGAÇÕES E EQUÍVOCOS



O centro histórico de Torres Vedras, em volta dos Paços do Concelho, tornou-se lugar de paragem obrigatória. Galeria Municipal, Doispaços, Transforma e Cooperativa de Comunicação e Cultura constituem um núcleo apelativo de contacto com as artes plásticas. Mas estes espaços tornaram-se, também, lugares de incomodidade porque temos dificuldade em entender o que vemos. Chegamos a sentir-nos gozados ou, até, agredidos. E saímos sem resposta para as nossas interrogações.

O título “Gozo” foi, aliás, o que deu o mote a uma instalação de Nuno Vaza, há uns meses atrás, na Cooperativa de Comunicação e Cultura. Uma série de vinte e quatro diapositivos completamente negros, precedidos de uma legenda/aviso – «algumas destas imagens são extremamente chocantes e susceptíveis de ferir a sensibilidade» – pretendia abalar a nossa percepção do mundo, saturado de imagens, numa espécie de acto purificador naquele olhar para coisa nenhuma. Mas esta “provocação” ao público nem era original. Em 1915 já o artista russo Kazimir Malevitch expusera um quadro completamente negro que se anunciava como “a libertação absoluta do olhar”. Talvez Nuno Vaza quisesse fazer uma nova leitura desta ideia. Mas podemos perguntar: conseguiu o que pretendia? Libertou os nossos olhos da tirania da imagem? Ele próprio parece duvidar quando se antecipa e nos diz que aquilo, afinal, é gozo. E nós saímos para a rua com a ideia de que andamos a brincar à arte.


(O quadrado negro de K. Malevitch)

O QUE É ISSO DE ARTE?

Os estudiosos não se cansam de avisar: nós, público, estamos agarrados a ideias feitas, por isso limitamos o nosso entendimento e cristalizamos em preconceitos: a boa pintura é a clássica, de entendimento imediato, a representação da realidade… já aceitamos umas formas abstracta bem desenhadas e bem coloridas, desde que possam condizer com a decoração da sala… O mesmo para a escultura… etc…
E afirmam: essa arte oficial era, tão só, a arte das classes dominantes numa sociedade espartilhada por sujeições e hierarquias.
Mas – lembram eles – o impetuoso movimento da arte moderna, desde o início do século XX, estilhaçou os preconceitos e afirmou uma nova arte. De forma mais ou menos escandalosa os artistas abriram perspectivas ilimitadas - e recordam sempre o urinol que Marcel Duchamp enviou em 1917 para uma exposição de Nova Iork com o título de “Fonte” e que foi, obviamente recusado… Do campo estreito das regras académicas esses artistas libertaram a arte para a criatividade sem barreiras: novos materiais, novas formas, novos espaços. E também novos públicos, consequência da democratização da sociedade, liberta enfim das cadeias dos Antigos Regimes. Todo o século XX foi uma sucessão ininterrupta de inovações, transgressões, invenções, para as quais foram construídos novos museus um pouco por todo o lado. No entanto nós, público, continuamos a interrogar: Arte? Mas que arte é esta?


(Urinol / Fonte, de Marcel Duchamp)



A ARTE CONTEMPORÂNEA

Neste movimento de dessacralização da arte tinha de haver limites. E eles acabaram por ser ultrapassados com as novas expressões artísticas surgidas a partir dos anos 60 do século passado e que os historiadores chamam de “arte contemporânea”. Que limites? Os da própria ideia de arte. E de tal modo assim foi que o célebre urinol de Duchamp acabou por ser entronizado no Centro Georges-Pompidou, – um dos mais prestigiados centro de arte contemporânea! - em Paris, sessenta anos depois, numa retrospectiva sobre o seu autor, já visto como “um clássico”. Fechou-se o círculo e esta arte parece ter caído na sua própria armadilha.
No entanto, esta contradição não destruiu a arte. O que fez foi mudar radicalmente a ideia que temos dela. Não já o espaço solene do Sublime, do Belo, do Transcendente, das grandes propostas ideológicas, das visões redentoras. A arte dos nossos dias tornou-se a arte da vida, e a vida foi transformada em arte. O criador da obra espera do público uma participação activa que o leve não só a olhar mas, sobretudo, a VER. Operação muitas vezes impossível porque o autor disfarça o código de decifração, num jogo de escondidas que exaspera o público mas motiva os críticos de arte para leituras que só os entendidos percebem.
O móbil do acto artístico passou a assumir formas cada vez mais variadas e, não raro, delirantes. Provocar o público parece ser a mais imediata mas ela esconde muito mais, o que exige a nossa perspicácia e disponibilidade total. Surgiram infinitas expressões de arte que os historiadores já catalogaram, na ânsia de encontrar sentidos, linhas de rumo, enquadramento para a sua compreensão: “arte conceptual”, “arte bruta”, “arte povera”, “body art”, “pop art”, “ready made”, “arte cinética”, “novo realismo”…etc…



A MERCANTILIZAÇÃO DA ARTE

Neste jogo de espelhos autor/público em que se tornou a arte contemporânea, um fenómeno ganhou enormes proporções: a transformação da arte em objecto de investimento. A colecção Berardo é um exemplo típico. Um homem medianamente inculto mas invulgarmente esperto percebeu o mecanismo e jogou a fundo nele. Rodeou-se de conhecedores, especialistas em perceber os sentidos das modas artísticas, e foi comprando obras de arte. Reuniu uma numerosa colecção e propôs ao Estado um negócio de milhões: exposição no Centro Cultural de Belém e posterior aquisição por uma quantia astronómica.
Somos tentados a leituras redutoras deste fenómeno, que nos levariam a considerar a arte como vítima da engrenagem capitalista. Mas, tal como o lucro dos bancos, que denunciamos incansavelmente sem vermos que eles se devem também à nossa excessiva dependência deles…a transformação da arte em valor de investimento é o resultado da sociedade em que vivemos. Tudo aquilo a que se reconhece valor – mesmo espiritual – transforma-se em dinheiro. Veja-se o fenómeno do santuário de Fátima, por exemplo… Como poderia a arte subtrair-se a esta tendência?




(Milionário e amante da arte!)


(in)CITAÇÕES

“Todo o objecto artístico tem uma razão de ser. Mais trivial ou mais séria, só o seu criador a conhece. O público, na contemplação da obra, desespera em busca da sua razão de ser: «O que é que isto quer dizer? O que significa?». O público não sabe olhar apenas, simplesmente olhar. Precisa sempre de razões, racionalizações, explicações…
Nós, artistas, não temos de explicar. O público deve aprender a olhar, a deixar-se penetrar, a sonhar, a pensar, a divagar, a especular. É para isso que serve a arte, só para isso…”

(Osvaldo de Andrade, artista plástico brasileiro)

“Há uma ânsia dos artistas em surpreender pela novidade absoluta. Cada artista procura a forma mais ousada, mais chocante. Os críticos de arte definem modas, promovem amigos e conhecidos, influenciam as cotações dos mercados da arte, ganham comissões…A arte actual é, em grande parte, um mundo de alianças manhosas em que cada um tenta chegar-se o mais à frente possível, na mira de atingir a glória: ser reconhecido como um bom investimento, passar às caves dos bancos, tornar-se reserva artística que um dia verá a glória num leilão de arte, em que milionários pedantes disputam quinquilharias em lances de milhares de euros. Eis o que é a grande arte contemporânea!”
( Evan Shipman, marchand de arte na ARCO de Madrid, 2006 )

«Enquanto a arte moderna havia provocado rupturas, a arte contemporânea empenha-se, pelo contrário, em reatar a ligação entre a arte e o público.
A corrida pelo progresso das vanguardas terminou e, num tempo suspenso, cada obra aplica a sua própria perspectiva e cada espectador torna-se num ponto de referência. De onde um campo artístico que se alarga cada vez mais, mas que se vê, também, cada vez mais atomizado.»
(A Arte Contemporânea, Catherine Millet, Ed. Inst. Piaget, )



(Escultura de João Castro Silva, Galeria Municipal de Torres Vedras, 23 Fev a 5 de Abr )

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CONCLUSÃO PARADOXAL: quando se fala em arte apenas podemos interrogar e nada concluir. Porque a arte não serve para concluir mas para iniciar.


NOTA FINAL: uma palavra de apreço aos responsáveis pelas Galerias de Arte que referimos no início. O seu bom trabalho tem-nos proporcionado experiências muito enriquecedoras e motivam-nos para novas visitas.

14.2.08


NO QUARTO CENTENÁRIO DO SEU NASCIMENTO
PADRE ANTÓNIO VIEIRA: UMA VIDA PRODIGIOSA

Vida, obra e pensamento confundem-se numa dinâmica excepcional. Evocamos hoje este homem de palavra e de acção, que veio em Missão a Torres Vedras no ano de 1652, - onde pregou o “Sermão da Segunda-feira depois do Segundo Domingo da Quaresma” (Sermões, T. VI, 1690) e que foi contemporâneo do ilustre jesuíta torriense Padre Francisco Soares, o “Lusitano”.


António Vieira nasceu em Lisboa em 6/2/1608 e faleceu na Baía, Brasil, em18/7/1697. Foi missionário, pregador, diplomata e, sobretudo, cidadão interventor na vida social e política do seu tempo. Aos sete anos parte com a família para a Baía, no Brasil, onde o pai ia exercer a função de secretário da Governação. Estuda no colégio jesuíta da Baía e ingressa na Companhia de Jesus, recebendo ordens em 1635 e iniciando-se como pregador. Em 1641 integra a comitiva que vem a Lisboa para apresentar ao rei D. João IV a adesão da colónia brasileira à causa da Restauração. Impressionado pela sua inteligência, o monarca nomeia-o seu confessor e conselheiro, e encarrega-o de várias missões diplomáticas na Holanda e em Roma, com vista ao reconhecimento da independência restaurada. Afrontando interesses dominantes, aponta soluções para as dificuldades económicas do reino, como a criação de Companhias Comerciais, numa notável antecipação do que o Marquês de Pombal viria a fazer um século depois. Em 1652 regressou ao Brasil, dedicando-se à missionação, mas volta dois anos depois para obter protecção real para os índios. De novo em Lisboa, com a morte de D. João IV, seu protector, a Inquisição acusa-o de professar opiniões heréticas (1662-1667), é condenado ao silêncio e reclusão mas, com a subida ao trono de D. Pedro II, vê a sua pena levantada. Depois de novo e intenso período de trabalho como diplomata e pregador em Roma, volta a Portugal e, alguns anos depois, regressa definitivamente à Baía, onde morre com quase 90 anos de idade.
Uma vida plena! Havia atravessado sete vezes o Atlântico, em viagens perigosas e desconfortáveis. Percorrera milhares de quilómetros no interior do Brasil, em missionação, onde defrontou com enorme coragem a avidez dos colonos que escravizavam os índios. Visitara vários países da Europa no desempenho de melindrosas missões diplomáticas. Defrontara o mais temível poder da época, a Inquisição, conseguindo limitar a sua influência. Estudara e conhecera como poucos as Sagradas Escrituras, que utilizou em pregações que deslumbraram o mundo de então. E tivera tempo, ainda, de redigir uma obra vastíssima: cerca de duzentos sermões, mais de meio milhar de cartas, relatórios, representações, pareceres e outros documentos de carácter político e diplomático, além de várias obras de assuntos religiosos ou de visão profética fundada numa leitura muito pessoal da Bíblia. É o caso de “Esperanças de Portugal, quinto império do mundo…”, e da “História do Futuro”. Prodigiosa vida, esta!
MD


António Vieira, o «Imperador da Língua Portuguesa»

Recordo a resposta de José Saramago, num encontro em Torres Vedras, em Abril de 1983, a alguém que lhe perguntou qual o segredo da sua prosa: “Sigo o conselho de Camilo Castelo Branco: «caldinhos de Vieira»!”. O futuro Nobel da Literatura confessava, assim, a enorme admiração pelo grande prosador.
Fernando Pessoa, na “Mensagem”, chamou ao Padre António Vieira «Imperador da Língua Portuguesa». De facto, juntamente com Camões, Vieira é o grande alicerce da nossa Língua. Dois exemplos:


Textos do P. António Vieira:


Arranca o estatuário uma pedra dessas montanhas, tosca, bruta, dura e informe; e, depois que desbastou o mais grosso, toma o maço e o cinzel na mão e começa a formar um homem, primeiro membro a membro, e depois feição por feição até a mais miúda: ondeia-lhe os cabelos, alisa-lhe a testa, rasga-lhe os olhos, afia-lhe o nariz, abre-lhe a boca, avulta-lhe as faces, torneia-lhe o pescoço, estende-lhe os braços, espalma-lhe as mãos, divide-lhe os dedos, lança-lhe os vestidos; aqui desprega, ali arruga, acolá recama, e fica um homem perfeito, e talvez um santo que se pode pôr no altar.
(Sermão de Domingo do Pentecostes)

Os homens, com suas más e perversas cobiças, vêm a ser como os peixes que se comem uns aos outros. Tão alheia coisa é, não só da razão, mas da mesma natureza, que, sendo todos criados no mesmo elemento, todos cidadãos da mesma pátria, e todos finalmente irmãos, vivais de vos comer. Santo Agostinho, que pregava aos homens, para encarecer a fealdade deste escândalo, mostrou-lho nos peixes; e eu, que prego aos peixes, para que vejais quão feio e abominável é, quero que o vejais nos homens.
(Sermão de Santo António aos Peixes)


Marcas de um Homem
«O dinamismo, como marca fundamental do seu perfil, torna-se também a marca inconfundível do seu estilo. O anticonvencionalismo faz dele o missionário que percorre quase descalço os sertões brasileiros com o mesmo à-vontade e o mesmo entusiasmo com que desempenha as suas funções de embaixador diplomático de Portugal em Paris, Haia, Londres e Roma. Esse anticonvencionalismo de acções e o desassombro de palavras é também o sinal de escândalo que o há-de levar, em efígie, às fogueiras da Inquisição. (…) A sua obra inscreve-se em três tópicos: a luta contra a escravatura; a consolidação da recém-recuperada independência política; utopia universal, corporizada no sonho do Quinto Império. (…) a obra de António Vieira é talvez um dos mais significativos testemunhos dessa transição, certamente dramática, do espírito do Renascimento para o espírito barroco, enredado numa nova angústia e numa nova maneira de estar no mundo. (…) Tem como referentes uma “certa utopia” e a missão social que ela assumirá.» (Maria Leonor Carvalho Buescu, in: Dicionário da Literatura Portuguesa, Ed. Presença, 1996)

22.1.08

VITORINO NEMÉSIO - Se bem nos lembramos...




Recordo o professor que fazia das aulas uma viagem assombrosa pelas avenidas da literatura. Referências caóticas, por vezes. Outras, de humor desconcertante. Expressivo como ninguém, emocionava-se com uma citação para logo se rir de uma piada cujo alcance só ele percebia.
No exame de Cultura Portuguesa não me fez perguntas. Esperou apenas que eu seguisse os seus raciocínios. Ele lá sabia quando um aluno estava por dentro da conversa. Ou não…Perguntas a sério fez-me depois o seu Assistente, prof. Machado Pires, enquanto Nemésio, enfastiado, pegava num livro. Mais do que nós, ele detestava exames.

Obra imensa - 19 títulos de poesia, 5 de ficção, 24 de biografias, crónicas, crítica literária, viagens, curiosidades… – expressão impressionante de pujança e variedade. Do talento multiforme de Nemésio dizia David Mourão-Ferreira que «daria, à vontade, para mais dez autores, e todos eles de primeira água”. Juntemos a isso o que ele fez na vida - professor universitário em França e na Bélgica antes de o ser na Faculdade de Letras de Lisboa durante 32 anos. E ainda: jornalista e comunicador assombroso: autor do “Se Bem Me Lembro”, inesquecíveis palestras na RTP entre os anos de 1969 e 75.
Na poesia afirmou um estilo singularíssimo: variedade de temas e formas; recriação dos ritmos populares numa visão do mundo que oscila entre a euforia da festa e a mais grave meditação espiritual; abordagem inesperada de motivos prosaicos transmutados em intuições filosóficas de grande alcance; lances imprevistos em versos estranhos. É um mundo!
Mas na prosa não se ficou por menos: a ele se deve uma das obras-primas do romance português moderno: Mau Tempo no Canal. Do universo insular da sua infância nos Açores, onde nasceu, Vitorino Nemésio ergueu um monumento literário sem paralelo na nossa literatura, e que se projectou em dimensão universal. Volto a citar D. Mourão-Ferreira: “ … nem há talvez obra romanesca mais complexa, mais variada, mais densa e mais subtil, em toda a nossa história literária.”
Eis, pois, um território que vale a pena desbravar: a belíssima obra escrita por Vitorino Nemésio.

VIDA E OBRA

Natural da Ilha Terceira, 19 de Dezembro de 1901. Primeiro livro – Canto Matinal – aos quinze anos. Colaborador nas revistas Presença e Seara Nova. Doutorou-se em Letras pela Universidade de Lisboa de pois de ter sido professor nas universidades de Montpellier e Bruxelas. Grande ligação ao Brasil, onde também deu aulas. A obra, marcada pela insularidade, aborda a condição humana numa inequívoca dimensão universal. Mau Tempo no Canal é a sua obra-prima, entre outras narrativas como Varanda de Pilatos, Paço do Milhafre e Quatro Prisões Debaixo de Armas. Na poesia, entre outros: O Bicho Harmonioso; Eu, Comovido a Oeste; Nem Toda a Noite a Vida; O Pão e a Culpa; Limite de Idade.
Morreu no dia 20 de Fevereiro de 1978. Faz agora trinta anos.




Indício Velado

Não toques, distância, no seu cabelo molhado;
Não lhe mexas. Rosto puro, às aguas posto e preso,
Uma imagem será o seu único peso,
Um pensamento o único beijo que me há dado.

Que o Índico persiga o indício velado;
Decore o Mar Vermelho o forte rosto aceso -
Mas não para morrer: para menos desprezo;
E eu próprio fique em meu amor atenuado.

Oh! platónico amor de ninguém e de alguma,
Espectro que criei e rodeei de lágrimas,
Vénus ainda ao longe no aro da minha espuma!

Imagem, força de vontade, imagem
Viva ou morta, não sei; imagem acre... mas
Verdadeira e suave, isso mais que nenhuma!


Praia da Vitória onde Nemésio nasceu
O CÃO ATÓMICO

1.
Este cão tem folhas nas orelhas,
com quatro talos
mas o que este cão deveria ter era calos,
e só tem olhos e ossos
e morrinha num dente!
Mas, meu Deus, este cão
quase o diria meu irmão
parece gente!

2.
Este cão é redondo. Está deitado,
rosna com gengivas de uivo.
Dizem-me que foi lobo,mas perdeu a alcateia
como os homens perderam a razão,
que hoje serve de osso ao cão
escapou ao cogumelo nuclear,
e por isso se foi deitar.



MORTE

Quando eu morrer, a terra aberta
Me beba de um trago
E esqueça.
Aos deuses minha oferta
É levar o que trago:
Eu, dos pés á cabeça.

Assim, com ervas altas,
Acabam os que começam.
Que Deus nos perdoe as faltas!
Dizem: «a terra que nos come»:
Eu digo: «a que nos bebe» – e basta.
Somos só água que se some:
Choveu – e fomos
Na vida gasta.


A Concha

A minha casa é concha. Como os bichos
Segreguei-a de mim com paciência:
Fachada de marés, a sonhos e lixos.
O horto e os muros só areia e ausência.

Minha casa sou e os meus caprichos.
O orgulho carregado de inocência
Se às vezes dá uma varanda, vence-a
O sal e os santos esboroou nos nichos

E telhados de vidro e escadarias
Frágeis, cobertas de hera, oh bronze falso!
Lareira aberta ao vento, as salas frias.

A minha casa…Mas é outra a história:
Sou eu ao vento e à chuva, aqui descalço,
Sentado numa pedra da memória.


NOMEIO O MUNDO

Com medo de o perder nomeio o mundo,
Seus quantos e qualidades, seus objectos,
E assim durmo sonoro no profundo
Poço de astros anónimos e quietos.

Nomeei as coisas e fiquei contente:
Prendi a frase ao texto do universo.
Quem escuta ao meu peito ainda lá sente,
Em cada pausa e pulsação, um verso.


Enchi de Oeste a minha vida,
Como se o Sol, que estira os peixes,
Me desse a terra percorrida,
O mar curvado e um não-me-deixes.

Sol fui no arco dos dias
E, pesado
Na minha luz, já mais do que o meu fogo,
Levei as ondas frias,
O vento e a vida logo.


Tudo levei, coroado de horizonte;
O amor queimei na tarde vaga,
Com uma ilha defronte.

Mas, queria, mais que o mar, bater
Ainda as praias carregadas
De passos, conchas e do haver
De aves livres lá pousadas
Que já não posso recolher.

E um ovo,
Nada mais que um ovo,
Num punhado de pó, entre juncais,
Que desse vida, penas, povo
Para as aragens e areais.


PRECE

Meu Deus, aqui me tens aflito e retirado,
Como quem deixa à porta o saco para o pão.
Enche-o do que quiseres. Estou firme e preparado.
O que for, assim seja, à tua mão.
Tua vontade se faça, a minha não.

Senhor, abre ainda mais meu lado ardente,
Do flanco de teu Filho, copiado.
Corre água, tempo e pus no sangue quente:
Outro bem não me é dado.
Tudo e sempre assim seja,
E não o que a alma tíbia só deseja.

Se te pedir piedade, dá-me lume a comer,
Que com pontas de fogo o podre se adormenta.
O teu perdão de pPai ainda não pode ser,
Mas lembre-te que é fraca a alma que aguenta:
Se é possível, desvia o fel do vaso:
Se não é, beberei. Não faças caso.

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VIAJAR OU ENVELHECER?

«Nesse ano quisera nas Vinhas todas as famílias amigas ― lanchas atrás de lanchas, o portão do pátio aberto para a charrette e com argolas para os burros. Tinham jantado na falsa por cima do barracão das canoas, por arrumar mais gente. A última vez que enfeitaram o bolo com rosas de que ela gostasse, as primeiras rosas de trepar do quintal do tio Mateus Dulmo. E camélias fechadas do Pico, como uns copinhos ... Vinte velas a arder diante do seu talher!
― Estás velha, hem?...
― Velha, não; mas enfim... o tempo não passa só para quem viajou muito como o tio. Quem me dera! ...
― Viajar ou envelhecer?
― Talvez as duas coisas...
Sentiu sede de se abrir toda ao tio, explicar aqueles dois pontos que ele isolara tão bem a rasto da recordação do seu dia de anos no Pico; mas não achou palavras sensatas, ou pelo menos capazes de serem ditas ali de selim a selim, nos campos tão bonitos. As culturas começavam a cobrir-se das primeiras flores singelas; os olhinhos das árvores abotoavam secretamente. O verde-negro dos pastos verde dos Açores, quente e húmido, emborralhava-se até longe. Os cavalos seguiam de cabeça comprida, fazendo vibrar de vez em quando as ventas. ... Envelhecer não seria; mas era deixar passar um grande espaço de tempo, como um troço de filme em branco, fechar os olhos ao peso daquela doçura da volta, tapar os ouvidos como quem teve um mau dia e chora ao meter-se na cama, moída, gasta... Na manhã seguinte acordar, mas passados uns anos, longe do Faial, ou noutro Faial só com o caminho à roda, o Pico em frente... gaivotas ... sem ninguém. O tio tinha dito: «viajar ou envelhecer?» Margarida gastara a resposta naquele silêncio e os olhos nas orelhas do cavalo. ».
(Vitorino Nemésio, Mau Tempo no Canal, Lisboa, IN-CM,1999 - excerto do cap. IX )

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Quando eu morrer mandem embora os lírios:
Vou nu, não quero que me vejam
Assim puro e conciso entre círios vergados
. As rosas sim; estão acostumadas
A bem cair no que desejam:
Sejam as rosas toleradas.
Mas não me levem os cravos ásperos e quentes
Que minha Mulher me trouxe:
Ficam para o seu cabelo de viúva,
Ali, em vez da minha mão;
Ali, naquela cara doce...
Ficam para irritar a turba
E eu existir, para analfabetos, nessa correcta irritação.

Quando eu morrer e for chegando ao cemitério,
Acima da rampa,
Mandem um coveiro sério
Verificar, campa por campa
(Mas é batendo devagarinho
Só três pancadas em cada tampa,
E um só coveiro seguro chega),
Se os mortos têm licor de ausência
(Como nas pipas de uma adega
Se bate o tampo, a ver o vinho):
Se os mortos têm licor de ausência
Para bebermos de cova a cova,
Naturalmente, como quem prova
Da lavra da própria paciência.

Quando eu morrer. . .
Eu morro lá!
Faço-me morto aqui, nu nas minhas palavras,
Pois quando me comovo até o osso é sonoro.

Minha casa de sons com o morador na lua,
Esqueleto que deixo em linhas trabalhado:
Minha morte civil será uma cena de rua;
Palavras, terras onde moro,
Nunca vos deixarei.

Mas quando eu morrer, só por geometria,
Largando a vertical, ferida do ar,
Façam, à portuguesa, uma alegria para todos;
Distraiam as mulheres, que poderiam chorar;
Dêem vinho, beijos, flores, figos a rodos,
E levem-me - só horizonte - para o mar


18.12.07

OS NATAIS DE MIGUEL TORGA




Casa de Miguel Torga em S. Martinho de Anta (Vila Real). Aqui passava o Natal, na casa – entretanto restaurada – onde vivera a infância



O ano de 2007 foi o do centenário do nascimento do grande prosador e poeta Miguel Torga. (1907 - 1995) ao qual já dedicámos esta página em Janeiro de 2006.
Assinalamos o fecho das comemorações dessa efeméride com uma pequena antologia dos versos escritos pelo poeta, entre 1937 e 1990, sobre o tema do Natal.
São vinte e cinco, ao longo dos seus Diários. Pena temos de não caberem aqui todos.
Escolhendo-os, homenageamos o homem de letras e desejamos Boas Festas aos nossos leitores.



HISTÓRIA ANTIGA (1937)

Era uma vez, lá na Judeia, um rei.
Feio bicho, de resto:
Uma cara de burro sem cabresto
E duas grandes tranças.
A gente olhava, reparava e via
Que naquela figura não havia
Olhos de quem gosta de crianças.

E, na verdade, assim acontecia.
Porque um dia,
O malvado,
Só por ter o poder de quem é rei
Por não ter coração,
Sem mais nem menos,
Mandou matar quantos eram pequenos
Nas cidades e aldeias da Nação.

Mas,
Por acaso ou milagre aconteceu
Que, num burrinho pela areia fora,
Fugiu
Daquelas mãos de sangue um pequenito
Que o vivo sol da vida acarinhou;
E bastou
Esse palmo de sonho
Para encher o mundo de alegria;
Para crescer, ser Deus;
E meter no inferno o tal das tranças,
Só porque ele não gostava de crianças.



NATAL (1948)

Devia ser neve humana
A que caía no mundo
Nessa noite de amargura
Que se foi fazendo doce…
Um frio que nos pedia
Calor irmão, nem que fosse
De bichos de estrebaria.



NATAL (1953)

Um Deus à nossa medida…
A fé sempre apetecida
De ver nascer um menino
Divino e habitual.
A transcendência à lareira
A receber da fogueira
Calor sobrenatural.


RETÁBULO (1954)

Estranho Menino Deus é o dum poeta!
O que nasce e renasce há muitos anos
Na minha noite de Natal, fingida,
Mal corresponde à imagem conhecida
Das sucursais do berço de Belém.
É uma criança tímida que vem
Visitar os meus sonhos, e, ao de leve,
Com mãos discretas, tece
Um poema de neve
Onde depois se deita e adormece.


NATAL (1962)

Um anjo imaginado,
Um anjo dialéctico, actual,
Ergueu a mão e disse: - É noite de Natal,
Paz à imaginação!
E todo o ritual
Que antecede o milagre habitual
Perdeu a exaltação.

Em vez de excelsos hinos de confiança
No mistério divino,
E de mirra, e de incenso e oiro
Derramados
No presépio vazio,
Duas perguntas brancas, regeladas
Como a neve que cai,
E breves como o vento
Que entra por uma fresta, quezilento,
Redemoinha e sai:

À volta da lareira
Quantas almas se aquecem
Fraternamente?
Quantas desejam que o Menino venha
Ouvir humanamente
O lancinante crepitar da lenha?


LOA (1969)

È nesta mesma lareira,
E aquecido ao mesmo lume,
Que confesso a minha inveja
De mortal
Sem remissão
Por esse dom natural,
Ou divina condição,
De renascer cada ano,
Nu, inocente e humano
Como a fé te imaginou,
Menino Jesus igual
Ao do Natal
Que passou.


.
NATAL (1974)

Soa a palavra nos sinos,
E que tropel nos sentidos,
Que vendaval de emoções!
Natal de quantos meninos
Em nudez foram paridos
Num presépio de ilusões.

Natal da fraternidade
Solenemente jurada
Num contraponto em surdina.
A imagem da humanidade
Terrenamente nevada
Dum halo de luz divina.

Natal do que prometeu,
Só bonito na lembrança.
Natal que aos poucos morreu
No coração da criança,
Porque a vida aconteceu
Sem nenhuma semelhança.


NATAL (1982)

Solstício de inverno.
Aqui estou novamente a festejá-lo
À fogueira dos meus antepassados
Das cavernas.
Neva-me na lembrança,
E sonho a primavera
Florida nos sentidos.
Consciente da fera
Que nesses tempos idos
Também era,
Imagino um segundo nascimento
Sobrenatural
Da minha humanidade.
Na humildade
Dum presépio ideal,
Emblematizo essa virtualidade.
E chamo-lhe Natal.


NATAL (1987)

Nasce mais uma vez,
Menino Deus!
Não faltes, que me faltas
Neste inverno gelado.
Nasce nu e sagrado
No meu poema,
Se não tens um presépio
Mais agasalhado.

Nasce e fica comigo
Secretamente,
Até que eu, infiel, te denuncie
Aos Herodes do mundo.
Até que eu, incapaz
De me calar,
Devasse os versos e destrua a paz
Que agora sinto, só de te sonhar.


NATAL (1988)

Menino Jesus feliz
Que não cresceste
Nestes oitenta anos!
Que não tiveste
Os desenganos
Que eu tive
De ser homem,
E continuas criança
Nos meus versos
De saudade
Do presépio
Em que também nasci,
E onde me vejo sempre igual a ti


ÚLTIMO NATAL (1990)

Menino Jesus, que nasces
Quando eu morro,
E trazes a paz
Que não levo,
O poema que te devo
Desde que te aninhei
No entendimento,
E nunca te paguei
A contento
Da devoção,
Mal entoado,
Aqui te fica mais uma vez
Aos pés,
Como um tição
Apagado,
Sem calor que os aqueça.
Com ele me desobrigo e desengano:
És divino, e eu sou humano,
Não há poesia em mim que te mereça.



20.11.07

MEMÓRIA


NOVEMBRO DE 1807: PRIMEIRA INVASÃO FRANCESA

O tempo corre, permanece a memória. Quem por aqui vivia, há 200 anos, enfrentou tempestades e sofrimentos de que ainda nos chegam os gritos.
Um exército estrangeiro invade e arruína, os mandantes caem de joelhos e fogem, o povo aturdido ensaia a resistência.

Estava-se em 1807. Napoleão varria a Europa central com a política do ferro e do fogo. Nada parecia resistir. Mas faltava-lhe aniquilar a Inglaterra. Esta, acantonada na ilha e dominadora dos mares, não se dobrava e tinha em Portugal um ancoradouro fiel.
Dominada a Espanha, o reduto português parecia alvo fácil. Escrevinha-se em Fontainebleau o vergonhoso tratado que retalha a nesga lusitana a distribuir pelos grifos da rapina. E um exército de 25 000 homens põe-se em marcha, atravessa a Espanha, irrompe pela Beira. Era já Novembro. Andoche Junot, General de Napoleão, sonha uma entrada de triunfo com remate memorável: prisão da família real portuguesa, domínio do território e suas gentes. Faltava chegar a Lisboa. Uma barreira formidável se lhe opõe: não de exércitos mas de tempestades torrenciais que inundam os poucos caminhos que por aqui havia e transformam a marcha do seu exército numa espantosa calamidade humana. Soldados – homens! – arrastam-se, devoram o que encontram, matam, saqueiam, sobrevivem na lama, , no frio, no dilúvio. Raul Brandão descreve com pinceladas impressionantes este drama que envolve invasores e invadidos.
Que fazem os chefes portugueses? Organizam a defesa? Uma testemunha da época diz que teriam bastado mil espingardas para deter Junot. Mas nem uma se lhe opôs. Ouro e pedras preciosas – os restos da rapina do Brasil – foram enviados em desespero para comprar a benevolência de Napoleão. De nada serviram. Diplomatas desdobraram-se em simulações grotescas: fingiam aos franceses que estavam contra os ingleses, imploravam aos ingleses que os defendessem dos franceses. Farsa de país desgovernado, sem exército, sem lei, sem rei. D. João VI, bom e ignorante homem, bronco, veado da rainha Carlota Joaquina que todos conheciam pela devassidão, matava moscas à palmada em pleno Conselho de Estado, sem perceber o alcance da solução que os ingleses impunham: fugir para o Brasil!
E quando percebeu, lá foi ele, de escantilhão, com mais 15 000 nobres, clérigos, juízes, militares, comerciantes, políticos, e mais as respectivas mulheres, e os servos, os criados, as bagagens. Indiferentes ao desespero do povo, safavam a pele. Tudo o que navegava foi tomado de assalto por esta horda amedrontada que uma nesga de temporal amainado permitiu sair do Tejo, direcção do Brasil. Junot e os 1 500 homens que sobraram da marcha forçada falharam a captura real por uma tira de horas. Foi nos dias finais de Novembro de 1807. Há 200 anos.
JMD


Primeira invasão francesa. Gravura da época


A marcha do exército francês

«A 18 de Novembro (1807), daí a poucas horas, calcam os franceses terra de Portugal. Lá em baixo agitam-se em vão, numa atmosfera de ridículo, a corte, os frades, os pregadores, os poetas, os ministros. Vem aí uma horda desordenada: a animalidade estreme, generais, histriões, o Caraffa com um barrete de algodão na cabeça, uma garrafa de caldo e uma seringa de clisteres suspensa dos coldres do cavalo, Loison agitando o coto furioso, Delaborde, este, aquele, e a turbamulta que desfila e irrompe como um esguicho humano de cóleras e paixões.
Chove sempre. Anos depois Thiébault (general de Napoleão) evoca com terror esses dias de espanto e classifica a marcha sobre Lisboa – de fome, esgotamento, dilúvio e causa inicial dos desastres do Império.
(…) Depois do exército vêm ainda os restos, a escumalha, a jolda: mulheres, judeus, bandos de traficantes, figuras sinistras, essência de pesadelo que forma, no último plano do quadro, a massa esboçada, e que por isso mesmo impressiona, como cotos de asa dum sonho disforme que a realidade tivesse partido… É parte deste inferno que avança sobre o país.»

( Raul Brandão, El-Rei Junot, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1982. 1ª ed.:1912)



Um testemunho daquela época

« O horizonte político cada vez mais se enevoava. O ministério português e o Regente ( futuro D. João VI, pela mãe, D. Maria I, que havia enlouquecido), colocados entre duas forças, igualmente opressoras, que eram as de França e Inglaterra, não sabiam decidir-se, e pensavam que trapaceando, e ganhando tempo, impediam o golpe que se estava a descarregar sobre eles.. Junot à frente do exército francês entrava pelas nossas fronteiras, e já estava quase às portas de Lisboa, sem que os estúpidos governantes dessem fé da sua marcha. D. João, Príncipe Regente, toda a sua corte, e muito mais gente, que quis seguir-lhe a sorte, corriam espavoridos a meter-se nos navios como homens que, vendo a casa incendiada, saltam pelas janelas.(…) O Regente, fugindo, só teve boca para nomear uma Regência, e pedir aos portugueses, que cobardemente desamparava, recebessem como amigos os seus conquistadores; recomendação que ao depois serviu de título para perseguir os que a tinham cumprido!»
(Memórias da Vida de José Liberato Freire de Carvalho, Ed. Assírio & Alvim, 1982. 1ª ed.: 1855. O autor das memórias tinha 33 anos aquando da primeira invasão)



D. João VI e D. Carlota Joaquina

FUGA OU JOGADA ESTRATÉGICA?


A decisão de transferir a família real portuguesa para o Brasil, em 1807, ainda hoje é motivo de polémica. Para uns tratou-se de uma fuga cobarde. O rei deveria ter organizado a defesa e a resistência do país, arriscando a vida mas dando exemplo de coragem e patriotismo. Em vez disso abandonou-o à sua sorte com a agravante de ter incitado os portugueses a receberem o invasor como amigo e protector. Os defensores desta tese sublinham que o seu acto arrastou consigo toda a elite governante, deixando para trás um país entregue à lei da selva. Outra corrente de opinião entende que esta foi a decisão acertada, pois permitiu que se mantivesse a soberania portuguesa. Citam as memórias de Napoleão, escritas no exílio da Ilha de Santa Helena, nas quais ele refere que o rei português “foi o único que me enganou”. E acrescentou:” A Inglaterra pode assim continuar a guerra; os mercados da América meridional foram-lhe abertos; constituiu um exército na Península e daí passou a ser um agente de vitória, o elo poderoso de todas as intrigas que se formaram no Continente…Foi o que me perdeu.”
JMD


Monumento comemorativo da batalha do Vimeiro

A RESISTÊNCIA E O FIM DA 1ª INVASÃO

Na Primavera de 1808, revoltado pelas atrocidades cometidas pelo exército ocupante, de norte a sul do país o povo levanta-se contra os franceses. Entretanto os ingleses desembarcam um exército que inicia o confronto, em aliança com as forças portuguesas. Em Agosto desse ano os franceses são derrotados na Roliça e no Vimeiro. Em vez de explorarem a vitória, os vencedores deixam que Junot organize a defesa, acantonado nos pontos elevados do Oeste, perto de Torres Vedras. Entra-se num impasse militar que leva os oponentes a assinarem uma Convenção de paz. Vergonhosamente os ingleses permitem a retirada incondicional do exército francês, reconhecendo-lhe a propriedade das imensas riquezas saqueadas durante a permanência em Portugal. Caía o pano sobre a tragédia que assolou Portugal nos anos de 1807/1808.
JMD


Soldado português da época

25.10.07

O POETA DA NOITE INQUIETA






Carlos de Oliveira é um dos grandes escritores portugueses do século XX. “Noite Inquieta” – esse longo poema nocturno do encontro do homem com a sua frágil grandeza – resume um percurso de poeta e romancista únicos. Trabalhador incansável dos seus textos – que reescreveu obsessivamente, em busca da perfeição – deixou uma obra incomparável construída com rigor e exigência.





A NOITE INQUIETA

Só, em meu quarto, escrevo à luz do olvido;
deixai que escreva pela noite dentro:
sou um pouco de dia anoitecido
mas sou convosco a treva florescendo.

Por abismos de mitos e descrenças
venho de longe, nem eu sei de aonde;
sou a alegria humana que se esconde
num bicho de fábulas e crenças.

Deixai que conte pela noite fora
como a vigília é longa e desumana:
doira-me os versos já a luz da aurora,
terra da nova pátria que nos chama.
(...)
Sinto um rumor de tempo sobre as casas
e detenho-me um instante: que rumor?
são aves de tormenta? Ou são as asas
dum povo que passou o mar e a dor?
(...)

* * *

Acusam-me de mágoa e desalento,
como se toda a pena dos meus versos
não fosse carne vossa, homens dispersos,
e a minha dor a tua, pensamento.

Hei-de cantar-vos a beleza um dia,
quando a luz que não nego abrir o escuro
da noite que nos cerca como um muro,
e chegares a teus reinos, alegria.

Entretanto, deixai que me não cale:
até que o muro fenda, a treva estale,
seja a tristeza o vinho da vingança.

A minha voz de morte é a voz da luta:
se quem confia a própria dor perscruta,
maior glória tem em ter esperança.







NEVOEIRO

A cidade caía

casa a casa

do céu sobre as colinas,

construída de cima para baixo

por chuvas e neblinas,

encontrava

a outra cidade que subia

do chão com o luar

das janelas acesas

e no ar

o choque as destruía

silenciosamente,

de modo que se via

apenas a cidade inexistente.


* * *

Aço na forja dos dicionários
as palavras são feitas de aspereza:
o primeiro vestígio da beleza
é a cólera dos versos necessários.


* * *
SONETO

Rudes e breves as palavras pesam
mais do que as lajes ou a vida, tanto,
que levantar a torre do meu canto
é recriar o mundo pedra a pedra;
mina obscura e insondável, quis
acender-te o granito das estrelas
e nestes versos repetir com elas
o milagre das velhas pederneiras.;
mas as pedras do fogo transformei-as
nas lousas cegas, áridas, da morte,
o dicionário que me coube em sorte
folheei-o ao rumor do sofrimento:
ó palavras de ferro, ainda sonho
dar-vos a leve têmpera do vento.



* * *


SONETO DA CHUVA

Quantas vezes chorou no teu regaço
a minha infância, terra que eu pisei:
aqueles versos de água onde os direi,
cansado como vou do teu cansaço?
Virá abril de novo, até a tua
memória se fartar das mesmas flores
numa última órbita em que fores
carregada de cinza como a lua.
Porque bebes as dores que me são dadas,
desfeito é já no vosso próprio frio
meu coração, visões abandonadas.
Deixem chover as lágrimas que eu crio:
menos que chuva e lama nas estradas
és tu, poesia, meu amargo rio.


* * *

ELEGIA EM CHAMAS

Arde no lar o fogo antigo
do amor irreparável
e de súbito surge-me o teu rosto
entre chamas e pranto, vulnerável:

Como se os sonhos outra vez morressem
no lume da lembrança
e fosse dos teus olhos sem esperança
que as minhas lágrimas corressem.

* * *

SALMO

A vida
É o bago de uva
Macerado
Nos lagares do mundo
E aqui se diz
Para proveito dos que vivem
Que a dor
É vã
E o vinho
Breve.





Carlos de Oliveira: Vida e Obra

Reunida em 1200 páginas de papel bíblia pela Editorial Caminho em 1992, a obra de Carlos de Oliveira comporta os seguintes títulos:
Trabalho Poético, O Aprendiz de Feiticeiro, Casa na Duna, Pequenos Burgueses, Uma Abelha na Chuva e Finisterra: Paisagem e Povoamento.

A Editora Angelus Novus publicou em 1996 uma boa Antologia do Trabalho Poético, complementada com um excelente ensaio e notas diversas sobre Carlos de Oliveira.


Nota do Centro de Documentação de Autores Portugueses:

A reduzida extensão da obra de Carlos de Oliveira – «um palmo de estante», como escreveu Mário Dionísio – é inversamente proporcional à sua importância no panorama literário português do século XX. Poeta e romancista, mas também cronista, crítico e tradutor, despertou para a escrita no seio da geração dos neo-realistas, em Coimbra. Através de um sólido trabalho de depuração e perfeccionismo, desenvolveu um estilo e uma consciência poética ímpares, que lhe valeram unânime reconhecimento pelos seus contemporâneos.
Filho de emigrantes portugueses, Carlos Alberto Serra de Oliveira nasceu no Brasil, em Belém do Pará, a 10 de Agosto de 1921. No Brasil só viveu os dois primeiros anos de vida: em 1923, os seus pais regressam a Portugal, acabando por se fixar na região da Gândara, concelho de Cantanhede, mais precisamente na aldeia de Febres, onde seu pai exerceu medicina. Em 1933, Carlos de Oliveira parte para Coimbra, onde completa os estudos liceais e universitários, concluindo em 1947 a sua licenciatura em Ciências Histórico-Filosóficas, com uma tese que denominou de Contribuição para uma estética neo-realista. No ano seguinte, o escritor ruma a Lisboa, onde passará a viver. Mantém colaborações esporádicas em vários jornais e revistas, e chega a tentar o ensino. A partir de 1972 dedica-se definitiva e exclusivamente à literatura. Morreu em 1981.


A arte e a personalidade deste autor foram profundamente marcadas por três vectores fundamentais: a sua infância num meio pobre, rural e isolado (a Gândara); uma perspectiva que, embora marxista na forma de ver a Economia como motor da História, não seria redutora, porque se manteve aberta a todos os aspectos da relação do homem com o mundo; e a ditadura e censura salazaristas. O primeiro ditou-lhe os alicerces geológicos da sua escrita, num cenário omnipresente, e referências pontuais ao imaginário infantil; o segundo permitiu-lhe não se circunscrever, apenas, à perspectiva neo-realista; o terceiro valeu-lhe ser caracterizado como «pessimista», mas uma análise mais profunda revela, antes, uma consciência da fatalidade por parte de um grande humanista. “




“Uma Abelha na Chuva”

É a leitura cinematográfica de Fernando Lopes do romance homónimo de Carlos de Oliveira, num filme que encena de forma admirável um Portugal rural, desencantado, sombrio e enclausurado, no final da década de 60, e que um crime brutal vem abalar. As paisagens desoladas, a impressionante fotografia e as inesquecíveis interpretações de Laura Soveral e João Guedes juntam-se numa obra de excelência do cinema português. Filme de 1971, é um marco histórico da cinematografia portuguesa.



1.10.07

INFORMAÇÃO AOS AMIGOS


Aos amigos que aqui vêm e estranham a falta de actualização do LUGAR ONDE, recordo: 
O meu blogue pessoal com entradas regulares é o AO RODAR DO TEMPO. Lá espero os meus amigos e aguardo as suas entradas/comentários/desabafos/etc.

Obrigado.