25.10.10

LUGAR ONDE - BADALADAS - 22 OUTUBRO 2010





POETAS DE AGORA




 NUNO JÚDICE : DO QUE É FEITO O POEMA?


«Um ritmo próprio regula a invenção das imagens
 que, sob a ilusão nascida da sua existência,
transmitem um nexo oculto. Ao escrever, então,
não me limito a designar realidades do mundo
aparente, antes dou uma ordem diversa aos elementos
que a tradição me legou e que,
através do sopro da imaginação, me sugerem o poema.»
(Nuno Júdice, A Condescendência do Ser, 1988)


Desde o início, em 1972 com o livro A NOÇÃO DE POEMA, Nuno Júdice imprimiu à sua escrita uma marca muito própria. O poema é uma construção de palavras – já o sabíamos. Mas ele instituiu a reflexão sobre o acto da escrita como um dos seus temas, perspectiva que é comum a toda a arte contemporânea, profundamente envolvida na teorização da sua génese. Daí a nossa dificuldade em entendê-la se nos limitarmos a uma leitura imediata. Todo a arte, hoje em dia, exige do receptor uma esforçada aproximação que passa, em primeiro lugar, pela superação da estranheza e, depois, pelo estudo das condições da sua elaboração.
Fernando Pessoa já levantara a ponta do véu: “O poeta é um fingidor…”. Queria ele dizer que o poeta transfigura a dor/emoção, modela-a, transforma-a em escrita. Mas ficou por explicar a poética, isto é, os modos como isso se faz. Nuno Júdice foi dos primeiros tentar fazê-lo desvendando o mistério da poesia através da própria poesia. Não por acaso, sendo criador literário, ele é, também, professor de Literatura.
Ao longo de 38 anos de actividade tem vindo a erigir uma obra imensa que se afirma como das mais notáveis no panorama da nossa literatura contemporânea, num ímpeto criador sempre acompanhado pela preocupação de encontrar respostas à interrogação inicial: de que matéria é feito o poema?

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Nuno Júdice estreou-se, como poeta, em 1972, com A Noção de Poema. Desse volume até ao muito recente O Breve Sentimento do Eterno vai um percurso marcado por um ritmo alto de publicação, na poesia mas também na ficção, no teatro ou ainda no ensaio,  uma vez que é também professor na Universidade Nova de Lisboa. Coligiu pela primeira vez a sua obra poética em 1991 (Obra Poética. 1972-1985), datando a última reunião dos seus versos de 2000. Poeta traduzido em várias línguas e na prestigiosa colecção da Gallimard, foram-lhe atribuídos já os mais significativos prémios literários portugueses. (in: Inquérito por OLAMblogue,  23-10-2008)


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POÉTICA NATURAL

Com os olhos do verso procuro a palavra
que, na terra de sílabas e fonemas,
arrasta a cesura, como quem lavra,
congeminando frases e teoremas.

Abstracto, o poema solta-se do berço,
como voam gaivotas, velas, asas de moinho,
e acaba em quadra seu movimento inverso
em música de cisco, nas palhas de um ninho.

Concreto, pousa o seu baraço de rimas,
como, na procissão, o relapso penitente.
Mas reza; e os seus lábios, como limas,
dão lhe uma cor de sinestesia dolente.

Mas um poema não vai buscar as suas flores
ao velho canteiro da retórica cega,
onde a estrofe é um enunciado de dores
em morna ladainha de cegarrega.

A inspiração roda nas mós de cada vogal,
até se desfazer em alcofas consoantes
que deito ao vento, na tarde outonal,
como nuvens brancas em céus brilhantes.

E é nesse horizonte que colho a única flor
que ao poema vem dar ritmo e sentido,
com as pétalas da vida e o pólen do amor
que em mim vestem o teu corpo despido.








VIAGEM
Na curva da estrada, um moinho
de velas abertas no ar sem vento: move-as
o eco das palavras esburacadas pelo
uso; empurra-lhe as pás um murmúrio
de asas queimadas pelo sol
da memória.
Subindo as escadas, sinto
um cheiro a mofo de farinha, a impressão
áspera da serapilheira dos sacos, um ténue
calor de barro no intervalo das pedras. Mós
num remoinho de sílabas
esmagadas.
Frestas por entre as telhas. Um
fragmento de céu limpo de nuvens. O
pássaro negro da eternidade
pousa no azul.

 

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