3.1.12

NADA PARA LER!



Quem não sofreu já da "síndrome de Jacinto", aquela coisa que às vezes acontece antes de ir ler para a cama?

 (in: A CIDADE E AS SERRAS, Eça de Queirós, final do cap. VII)

«Suspirei, Jacinto preguiçava. E terminámos por remexer lan­guidamente os jornais que o mordomo trouxera, num monte facundo, sobre uma salva de prata — jornais de Paris, jornais de Londres, semanários, magazines, revistas, ilustrações... Jacinto desdobrava, arremessava: das revistas espreitava o sumário, logo farto; às ilustrações rasgava as folhas com o dedo indiferente, bocejando por cima das gravuras. Depois, mais estirado para o lume:

— É uma seca... Não há que ler. — E de repente, revoltado contra este fastio opressor que o escravizava, saltou da pol­trona com um arranque de quem despedaça algemas, e ficou ereto, dardejando em torno um olhar imperativo e duro, como se intimasse aquele seu 202, tão abarrotado de Civilização, a que por um momento sequer fornecesse à sua alma um inte­resse vivo, à sua vida um fugitivo gosto! Mas o 202 permane­ceu insensível: nem uma luz, para o animar, avivou o seu brilho mudo: só as vidraças tremeram sob o embate mais rude de água e vento.

Então o meu Príncipe, sucumbido, arrastou os passos até ao seu gabinete, começou a percorrer todos os aparelhos completadores e facilitadores da Vida — o seu Telégrafo, o seu Telefone, o seu Fonógrafo, o seu Radiómetro, o seu Grafofone, o seu Microfone, a sua Máquina de Escrever, a sua Máquina de Contar, a sua Imprensa Elétrica, a outra Magnética, todos os seus utensílios, todos os seus tubos, todos os seus fios... Assim um suplicante percorre altares donde espera socorro. E toda a sua sumptuosa Mecânica se conservou rígida, relu­zindo frigidamente, sem que uma roda girasse, nem uma lâmina vibrasse, para entreter o seu Senhor.

Só o relógio monumental, que marcava a hora de todas as capitais e o curso de todos os planetas, se compadeceu, batendo a meia-noite, anunciando ao meu amigo que mais um dia partira levando o seu peso — diminuindo esse sombrio peso da Vida, sob que ele gemia, vergado. O Príncipe da Grã-Ventura, então, decidiu recolher para a cama — com um livro... E durante um momento, estacou no meio da Biblioteca, considerando os seus setenta mil volumes estabelecidos com pompa e majestade como Doutores num Concílio — depois as pilhas tumultuárias dos livros novos que esperavam pelos can­tos, sobre o tapete, o repouso e a consagração das estantes de ébano. Torcendo molemente o bigode caminhou por fim para a região dos Historiadores: espreitou séculos, farejou raças: pare­ceu atraído pelo esplendor do Império Bizantino: penetrou na Revolução Francesa donde se arredou desencantado: e palpou com mão indeliberada toda a vasta Grécia desde a criação de Atenas até à aniquilação de Corinto. Mas bruscamente virou para a fila dos Poetas, que reluziam em marroquins claros, mostrando, sobre a lombada, em ouro, nos títulos fortes ou lânguidos, o interior das suas almas. Não lhe apeteceu nenhuma dessas seis mil almas — e recuou, desconsolado, até aos Bió­logos... Tão maciça e cerrada era a estante de Biologia, que o meu pobre Jacinto estarreceu, como ante uma cidadela inaces­sível! Rolou a escada — e, fugindo, trepou até às alturas da Astronomia: destacou astros, recolocou mundos: todo um Sistema Solar desabou com fragor. Aturdido, desceu, começou a procurar por sobre as rimas das obras novas, ainda brochadas, nas suas roupas leves de combate. Apanhava, folheava, arre­messava: para desentulhar um volume, demolia uma torre de doutrinas: saltava por cima dos Problemas, pisava as Religiões: e relanceando uma linha, esgravatando além num índice, todos interrogava, de todos se desinteressava, rolando quase de rastos, nas grossas vagas de tomos que rolavam, sem se poder deter, na ânsia de encontrar um Livro! Parou então no meio da imensa nave, de cócoras, sem coragem, contemplando aqueles muros todos forrados, aquele chão todo alastrado, os seus setenta mil volumes — e, sem lhes provar a substância, já absolutamente saciado, abarrotado, nauseado pela opressão da sua abundância. Findou por voltar ao montão de jornais amar­rotados, ergueu melancolicamente um velho «Diário de Notí­cias», e com ele debaixo do braço subiu ao seu quarto, para dormir, para esquecer.»




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