18.7.06

LUGAR ONDE 2006 -- Semanário BADALADAS, Torres Vedras

Faz este mês 4 anos que iniciei no BADALADAS a página LUGAR ONDE. Não sei o que isto significa. Há leitores interessados? A página, como está, interessa a alguém? Muitas vezes tenho dúvidas se valerá a pena continuar... Mas vou persistindo, na ideia de que a Literatura pode ser um veículo de fruição espiritual para alguns interessados.
Continuemos, pois.
Este mês a página é sobre o livro de Cervantes "D. Quixote".
Aqui fica a transcrição.
LER OS CLÁSSICOS?
SIM! PORQUE MERECEMOS O MELHOR!

Há livros que resistem ao tempo como monumentos de pedra. São “os clássicos”, designação que assusta muitos leitores enganados pela ideia comum de que isso significa “livro maçador”.

Esta frase já aqui foi escrita no ano passado, a propósito de «Moby Dick». Este ano o que propomos para livro de Verão é o célebre – e celebrado - «Dom Quixote».

- Essa história de “ler os livros clássicos” já me aborrece. Quero lá saber... Livros escritos há séculos, alguma vez podem ter interesse para quem vive no século XXI?!!...
- Já percebi... para ti o que interessa é o imediato, o aqui e agora. Assim não vais longe...
- Pois claro que não vou longe, eu nem quero sair daqui...A mim bastam-me os livros escritos por gente do meu tempo! Não me interessa nada essa treta do D. Quixote, um homenzinho maluco que viveu há 400 anos e atacava moinhos de vento...
- Cada um lê o que quer, tudo bem. Mas acho que tu mereces mais...
- Não percebo...
- Sem querer armar-me em teu mestre, só te digo: os chamados livros clássicos são reconhecidos como tal porque são livros de todos os tempos. Falam do Homem intemporal e têm o condão de serem entendidos por leitores de todas as épocas.
- Mas nós estamos numa época especial. Temos computadores, somos um mundo global, agora é tudo diferente de antigamente.
- Será? As circunstâncias mudam com rapidez mas o ser humano permanece mais tempo... Embora também evolua, claro. O que os grandes livros clássicos nos mostram é a riqueza e a variedade do ser humano ao longo do tempo. Tu hoje abres a Bíblia – um grande texto clássico, para além da Fé de cada um - numa página qualquer e parece que te está a falar dos problemas que tens hoje. Abres a «Odisseia» e tens a mesma sensação. O mesmo com uma peça de Shakespeare ou o magnífico «Moby Dick.».
- Estás a meter tudo no mesmo saco...
- A grande qualidade dos livros clássicos é que eles podem ser lidos de muitas maneiras. Sabias que «Os Lusíadas» já foram estudados como livro de Ciências Naturais? Por ele sabemos o que o homem do século XVI conhecia sobre esse assunto...
- E o D. Quixote serve para estudar o quê? Como se não deve atacar moinhos de vento?
- Isso é um preconceito. As pessoas só pensam nos moinhos de vento quando falam do D. Quixote. A verdade é que este é um dos mais divertidos e variados livros de sempre. A história dos moinhos é um grão de areia no meio daquele mar de histórias, diálogos, situações. E há a figura do Sancho Pança, uma espécie de Zé-povinho, só que muito mais esperto.
- Já sei: daqui a pouco estás a dizer que todos temos um bocadinho de Quixote e de Sancho dentro de nós... Bahh! Conversa intelectualóide...
- Deixa-te de bocas patetas. Já reparaste? O grande prejudicado és tu! Eu divirto-me à grande com um livro fabuloso – um clássico, caramba! - e tu contentas-te com ... sei lá o quê? Mereces mais... Acredita: mereces muito mais!






“O melhor e também o primeiro de todos os romances”(H. Bloom)

"O Engenhoso Fidalgo D. Quixote de La Mancha" - o romance espanhol escrito por Miguel de Cervantes e publicado em duas partes (a primeira em 1605 e a segunda em 1615) - descreve, de forma satírica, a história de um homem de idade avançada que pensa ser um cavaleiro andante. A primeira parte do romance retrata a saída de D. Quixote da sua pequena aldeia, acompanhado do seu criado Sancho Pança, rumo às florestas da Serra Morena e apresenta o seu regresso à aldeia onde recupera da exaustão das "batalhas". Na segunda parte os dois viajantes encontram personagens que já leram a primeira parte do romance e têm conhecimento das aventuras que os dois protagonizaram e termina com D. Quixote a recuperar a razão. Este livro, que considero o melhor e também o primeiro de todos os romances, envolve uma grande variedade de personagens, de camponeses a nobres, de criminosos a padres, de prostitutas e amantes insanos a mulheres enganadas e homens ciumentos. Na sua maioria, as personagens oferecem a oportunidade para uma sátira social violenta, feita sempre sob um tom de enorme humor.
É a maior criação de Cervantes. O processo adoptado pelo autor – a paródia – permite dar relevo aos contrastes, através da deformação grotesca.
O conflito surge do confronto entre o passado e o presente, o ideal e o real, o individual e o social. D. Quixote e Sancho Pança representam valores distintos, embora sejam participantes do mesmo mundo. Estas figuras depressa conquistaram a imaginação popular. No entanto, os contemporâneos da obra não a levaram tão a sério como as gerações posteriores. Passou a ser vista como uma prosa épica de escárnio, em que "o ar sério e grave" da ironia do autor começou a ser bastante apreciado. O herói grotesco de um dos livros mais cómicos tornou-se no trágico herói da tristeza. Contudo, apesar de alguma distorção, a novela de Cervantes começou então a revelar a sua profundidade. Na história literária o «Dom Quixote» é reconhecido como o grande inspirador de grande parte da ficção moderna.
D. Quixote tem sido também uma notável fonte de inspiração para os criadores noutros campos artísticos. Desde o século XVII que se têm realizado peças de teatro, óperas, composições musicais e bailados baseados no D. Quixote. No século XX, as artes plásticas, o cinema, a televisão e os cartoons inspiraram-se igualmente nesta obra. (Adaptação de um texto de Harold Bloom, crítico literário e prof. universitário).


MITO DA CULTURA OCIDENTAL

Com ressonâncias do que à época se chamava livros de cavalarias medievais, a partir do sec. XIX designadas novelas de cavalaria, D.Quixote é em todo o caso por muitos historiadores da literatura considerado o primeiro romance moderno, na medida em que articula a componente imaginativa da narrativa de aventuras tradicional – e, até formalmente, pelo ritmo que lhe advém da adopção de um estilo coloquial e de uma redundância vocabular ou sintáctica, típicos dos relatos ou romances em verso transmitidos oralmente – com a notação mais ou menos irónica, quase sempre arguta, da realidade e da natureza humana.(…)
A intenção moral que lhe preside é com certeza um dos ingredientes fundamentais do texto do D. Quixote e do seu protagonista. Mas D. Quixote impõe-se enquanto mito da cultura ocidental, sobretudo a partir do Romantismo (cf. Almeida Garrett, Viagens na Minha Terra, cap.II), mais como anti-herói do que como herói: ele é o cavaleiro que persiste em lutar contra moinhos de vento ou rebanhos de ovelhas, como quem teima em defender “sonhos maiores do que nós” (Eduardo Lourenço, “Portugal, Identidade e Imagem”, in Nós e a Europa ou as duas Razões, 1988) contra os limites de uma realidade pequenina e chã representada por Sancha Pança. (Maria Teresa Arsénio Nunes, ensaísta)

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