19.9.10

Jornal BADALADAS - 24 de SETEMBRO DE 2010



MEMÓRIAS DE SANTA CRUZ
AS PINTURAS DE MESTRE PERES NA CASA DOS MOTAS

 Agosto de 1993, férias em Santa Cruz. Alguém me falou de pinturas antigas existentes na casa do senhor Joaquim Alberto Mota, que teriam sido feitas no tempo em que Antero de Quental esteve naquela praia, convidado de Jaime Batalha Reis. E logo se combinou uma visita à casa.

O senhor Mota recebeu-me muito bem e desatou a desfiar memórias dos seus 85 anos. “Meu pai comprou aqui uma casa que tinha sido convento de freiras e fez a Pensão Mira-Mar que depois vendeu à Maria Sabe-Tudo.” A casa em que estávamos a ter esta conversa “foi construída por João Pinto Mendes, que teve um estabelecimento onde hoje é a casa das bicicletas, no Largo do Grilo, em Torres Vedras. Deixou esta casa às primas, uma delas era minha avó.” Joaquim Mota ia contando mas eu já estava absorvido na contemplação das tais pinturas, de que já me recordava por ter lido um trabalho de Andrade Santos na revista “Torres Cultural” de Novembro de 1991. Eram três círculos com cerca de dois metros de diâmetro cada um, pintados sobre o estuque, na sala de fora, que ocupavam os espaços de duas paredes entre as portas de ligação com as outras dependências da casa. O que eu estava ali a ver era um precioso documento iconográfico da Santa Cruz dos anos 70 do século XIX.
Olhei melhor o nosso anfitrião. Homem de palavra fácil, culto, muito conhecido em Torres Vedras. Funcionário da Caixa Geral de Depósitos durante mais de trinta anos, Presidente da direcção da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo, mesário da Misericórdia. “Sempre ouvi dizer que Antero de Quental assistiu à feitura destas pinturas por Mestre Peres. Ele falou disto a Jaime Batalha Reis numa carta. Esse pintor também esteve na Igreja da Ponte do Rol. Ainda hoje tem família em Torres Vedras, a Cesária Hipólito, o Alberto Peres Alves…”
Nessa visita não tirei fotografias, apenas alguns apontamentos. Dois anos depois o senhor Mota morreu. Não voltei a ver as pinturas mas pensava nelas amiúde e na necessidade de guardar um registo fotográfico de qualidade para o Arquivo Municipal. A oportunidade surgiu agora, em conversa com amigos em Santa Cruz, e logo me foi dada a ligação com a filha do Sr. Mota, dona Maria Manuela. De novo fui bem recebido, desta vez com um amigo munido de máquina para o necessário registo. E o encanto renovou-se. Apesar da ingenuidade da composição, o conjunto tem um poderoso efeito evocativo. Santa Cruz, há 140 anos, era assim. | JMD



«A povoação reduzia-se então a poucas casas espalhadas sobre as arribas, como se sabe muito pito­rescas, altas e de estratos viva­mente coloridos, donde, para no­roeste, se avista Peniche, ao lar­go a Berlenga.» (Jaime Batalha Reis, Gazeta de Torres, 5/5/1929.)
 




Penedo do Guincho

Casa actual da família Mota, em Santa Cruz

Pela observação da pintura principal, podemos identificar a ermida de Santa Helena, com a cruz na empena, fachada diferente da actual. Identifica-se também a casa da família Mota, na parte esquerda da pintura, que na altura tinha uma porta ao meio e três janelas de cada lado.

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ANTERO EM SANTA CRUZ
(Jaime Batalha Reis na “Gazeta de Torres”,  5/5/1929, excertos *)

«Em 1870, Antero de Quental e eu vivíamos juntos em Lisboa. No mês de Agosto fomos, por al­guns dias, para casa de meu Pai no Turcifal, e, em seguida pas­sar dois meses à Praia, então quase desconhecida, de Santa Cruz.» (…)

«Morávamos numa casinhola térrea, das últimas habitações, ao sul, que voltava as costas a todas as outras, de telha vã e adobes rebocados, porta sempre aberta para um campo valado por pitei­ras, à beira duma quebrada pro­funda, por onde, de inverno a água corria em torrente. O pe­quenino prédio pertencia ao Fran­cisco Banheiro que, com a Ma­dalena, sua mulher, nos tratava dos quartos, da cozinha e da roupa.»

«São de Santa Cruz al­guns dos Sonetos filosóficos, en­tre eles me parece o Justitia ma­ter em que se cita o mar:
No espaço constelado passa o vulto / Do inominado Alguém que os sois aviva: / No mar ouve-se a voz grave e aflitiva / Dum Deus que luta, poderoso e inculto.»

«(…) Tinha em Torres Vedras um antigo companheiro de Uni­versidade, — o Dr. Philemon da Silva Avelino, que às vezes nos aparecia em Santa Cruz, e gos­tava muito o Antero de conversar com o Francisco Banheiro, a quem contava casos das Ilhas dos Açores, que este, interessado, es­cutava e comentava com gestos vagos e misteriosos para o mar.»

* Transcrito em fac-simile na revista “TORRES CULTURAL”, nº 4, Nov. 1991
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