24.8.11

PÁGINAS ESQUECIDAS -1

Não, não é um poema tétrico, lúgrube. Nem tem nada a ver com uma pretensa "estética gótica".
É, sim, um hino ao Amor, vencedor da morte.
Não por acaso, este poema era de apresentação quase obrigatória nos saraus da segunda metade do século XIX, declamado por jovens perante o olhar enternecido da assistência. O ritmo magestoso, a cadência do verso decassílabo, a expressão sonora das palavras, tudo contribui para fazer deste poema um clássico da chamada estética ultra-romântica. Seu autor:
(António Augosto) SOARES DE PASSOS





O NOIVADO DO SEPULCRO
Balada
Vai alta a Lua! Na mansão da morte
Já meia-noite com vagar soou;
Que paz tranquila; dos vaivéns da sorte
Só tem descanso quem ali baixou.


 Que paz tranquila!... Mas ao longe, ao longe
Funérea campa com fragor rangeu;
Branco fantasma semelhante a um monge,
De entre os sepulcros a cabeça ergueu.


 Ergueu-se, ergueu-se!... Na amplidão celeste
Campeia a lua com sinistra luz;
O vento geme no feral cipreste,
O mocho pia na marmórea cruz.


 Ergueu-se, ergueu-se!... Com sombrio espanto
Olhou em roda... não achou ninguém...
Por entre as campas, arrastando o manto,
Com lentos passos caminhou além.


 Chegando perto duma cruz alçada,
Que entre os ciprestes alvejava ao fim,
Parou, sentou-se e com a voz magoada
Os ecos tristes acordou assim:


 Mulher formosa, que adorei na vida,
E que na tumba não cessei de amar
Porque atraiçoas, desleal, mentida,
O amor eterno que te ouvi jurar?


 Amor! Engano que na campa finda,
Que a morte despe da ilusão falaz:
Quem de entre os vivos se lembrará ainda
Do pobre morto que na terra jaz?


 Abandonada neste chão repousa
Há já três dias, e não vens aqui...
Ai, quão pesada me tem sido a lousa
Sobre este peito que bateu por ti!


 «Ai, quão pesada me tem sido!». E em meio
A fronte exausta lhe pendeu na mão,
E entre soluços arrancou do seio
Fundo suspiro de cruel paixão.


 Talvez que rindo dos protestos nossos,
Gozes com outro de infernal prazer;
E o olvido cobrirá meus ossos
Na fria terra sem vingança ter!


— Oh nunca, nunca!—de saudade infinda,
Responde um eco suspirando além...
— Oh nunca, nunca! — repetiu ainda
Formosa virgem que em seus braços tem.


 Cobrem-lhe as formas divinais, airosas,
Longas roupagens de nevada cor;
Singela coroa de virgíneas rosas
Lhe cerca a fronte de um mortal palor.


 Não, não perdeste, meu amor jurado:
Vês este peito? Reina a morte aqui...
E já sem forças, ai de mim, gelado,
Mas ainda pulsa com amor por ti.


 Feliz que pude acompanhar-te ao fundo
Da sepultura, sucumbindo à dor;
Deixei a vida... que importava o mundo,
O mundo em trevas sem a luz do amor?


 Saudosa ao longe vês no céu a Lua?
—Oh! Vejo, sim... recordação fatal!
— Foi à luz dela que jurei ser tua
Durante a vida, e na mansão final.


 Oh! Vem! Se nunca te cingi ao peito,
Hoje o sepulcro nos reúne enfim...
Quero o repouso do teu frio leito,
Quero-te unido para sempre a mim!


 E ao som dos pios do -cantor funéreo.
E à luz da lua de sinistro alvor,
Junto ao cruzeiro, sepulcral mistério
Foi celebrado, de infeliz amor.


 Quando risonho despontava o dia,
Já desse drama nada havia então,
Mais que uma tumba funeral vazia,
Quebrada a lousa por ignota mão.


 Porém mais tarde, quando foi volvido
Das sepulturas o gelado pó,
Dois esqueletos, um ao outro unido,
Foram achados num sepulcro só.

* * *


 
CONTEXTUALIZAÇÃO DO POEMA

«Noivado do Sepulcro é um poema do autor ultrarromântico Soares de Passos (1826-1860). Sofrendo da doença da época, a tuberculose, nunca deixou, contudo de se afirmar como um defensor dos ideais do progresso e da liberdade, circunstâncias que vão espelhar-se na sua obra. Autor de muitos outros textos poéticos, nomeadamente O Firmamento, é, sem dúvida, O Noivado do Sepulcro, o seu mais célebre poema. Constituindo as delícias de um gosto da época, caracterizado pelo apego ao sofrimento hiperbolizado, resultado das contrariedades do amor e das vidas, este texto poético era frequentemente recitado nos saraus burgueses, acompanhado ao piano. É considerado um dos momentos altos do ultrarromantismo português.
Integrado numa estética assente na hiperbolização dos sentimentos, a compreensão deste poema só pode ser clara, se visto como uma unidade do conjunto da sua obra que tematicamente atira o leitor para "o pressentimento de uma morte precoce, associado ao desgosto patriótico".
Fruto da escola ultrarromântica, O Noivado do Sepulcro e a obra de Soares de Passos, embora caracterizados por alguma banalidade substantiva, conseguem sair das linhas piegas e lamechas que caracterizam esta estética. Apresentando uma majestade, uma magia e uma doçura rítmica, permitem a sua associação com o mundo da música.»
Noivado do Sepúlcro. In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2011. [Consult. 2011-08-24].
Disponível na www: .

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