20.6.06

Ainda António Nobre, um poeta a não esquecer


O SONO DO JOÃO
António Nobre

Inicialmente o poema parece uma cantiga de embalar, melopeia de expressão ingénua, muito próxima da fala das crianças. Mas depois entra pelos desvãos da vida e da morte e somos confrontados com as mais sérias interrogações metafísicas. A vida? A morte? Onde começa e onde acaba a interrogação? Assim se constrói um grande poema.

O João dorme... (Ó Maria,

Diz àquela cotovia
Que fale mais devagar,
Não vá o João acordar...)

Tem só um palmo de altura
E nem meio de largura:
Para o amigo orangotango
O João seria... um morango!
Podia engoli-lo um leão
Quando nasce! As pombas são
Um poucochinho maiores...
Mas os astros são menores!

O João dorme... Que regalo!
Deixá-lo dormir, deixá-lo!
Calai-vos, águas do moinho!
Ó Mar! Fala mais baixinho...

E tu, Mãe! E tu, Maria!
Pede àquela cotovia
Que fale mais devagar,
Não vá o João acordar...
O João dorme, o inocente!
Dorme, dorme eternamente,
Teu calmo sono profundo!
Não acordes para o Mundo,
Pode levar-te a maré:
Tu mal sabes o que isto é...

Ó Mãe! Canta-lhe a canção,
Os versos do teu irmão:
"Na vida que a Dor povoa,
Há só uma coisa boa,
Que é dormir, dormir, dormir...
Tudo vai sem se sentir".
Deixa-o dormir, até ser
Um velhinho... até morrer!

E tu vê-lo-ás crescendo
A teu lado (estou-o vendoJoão!
Que rapaz tão lindo!)
Mas sempre, sempre dormindo...
Depois um dia virá
Que (dormindo) passará
Do berço onde agora dorme,
Para outro, grande, enorme:
E as pombas que eram maiores
Que João... ficarão menores!

Mas para isso, ó Maria!
Diz àquela cotovia
Que fale mais devagar,
Não vá o João acordar...

E os anos irão passando.
Depois, já velhinho,
quando (Serás velhinha também)
Perder a cor que, hoje, tem,
Perder as cores vermelhas
E for cheiinho de engelhas,
Morrerá sem o sentir,I
sto é, deixa de dormir:
Acorda e regressa ao seio
De Deus, que é donde ele veio...

Mas para isso, ó Maria!
Pede àquela cotovia
Que fale mais devagar:
Não vá o João acordar...

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