20.11.07

MEMÓRIA


NOVEMBRO DE 1807: PRIMEIRA INVASÃO FRANCESA

O tempo corre, permanece a memória. Quem por aqui vivia, há 200 anos, enfrentou tempestades e sofrimentos de que ainda nos chegam os gritos.
Um exército estrangeiro invade e arruína, os mandantes caem de joelhos e fogem, o povo aturdido ensaia a resistência.

Estava-se em 1807. Napoleão varria a Europa central com a política do ferro e do fogo. Nada parecia resistir. Mas faltava-lhe aniquilar a Inglaterra. Esta, acantonada na ilha e dominadora dos mares, não se dobrava e tinha em Portugal um ancoradouro fiel.
Dominada a Espanha, o reduto português parecia alvo fácil. Escrevinha-se em Fontainebleau o vergonhoso tratado que retalha a nesga lusitana a distribuir pelos grifos da rapina. E um exército de 25 000 homens põe-se em marcha, atravessa a Espanha, irrompe pela Beira. Era já Novembro. Andoche Junot, General de Napoleão, sonha uma entrada de triunfo com remate memorável: prisão da família real portuguesa, domínio do território e suas gentes. Faltava chegar a Lisboa. Uma barreira formidável se lhe opõe: não de exércitos mas de tempestades torrenciais que inundam os poucos caminhos que por aqui havia e transformam a marcha do seu exército numa espantosa calamidade humana. Soldados – homens! – arrastam-se, devoram o que encontram, matam, saqueiam, sobrevivem na lama, , no frio, no dilúvio. Raul Brandão descreve com pinceladas impressionantes este drama que envolve invasores e invadidos.
Que fazem os chefes portugueses? Organizam a defesa? Uma testemunha da época diz que teriam bastado mil espingardas para deter Junot. Mas nem uma se lhe opôs. Ouro e pedras preciosas – os restos da rapina do Brasil – foram enviados em desespero para comprar a benevolência de Napoleão. De nada serviram. Diplomatas desdobraram-se em simulações grotescas: fingiam aos franceses que estavam contra os ingleses, imploravam aos ingleses que os defendessem dos franceses. Farsa de país desgovernado, sem exército, sem lei, sem rei. D. João VI, bom e ignorante homem, bronco, veado da rainha Carlota Joaquina que todos conheciam pela devassidão, matava moscas à palmada em pleno Conselho de Estado, sem perceber o alcance da solução que os ingleses impunham: fugir para o Brasil!
E quando percebeu, lá foi ele, de escantilhão, com mais 15 000 nobres, clérigos, juízes, militares, comerciantes, políticos, e mais as respectivas mulheres, e os servos, os criados, as bagagens. Indiferentes ao desespero do povo, safavam a pele. Tudo o que navegava foi tomado de assalto por esta horda amedrontada que uma nesga de temporal amainado permitiu sair do Tejo, direcção do Brasil. Junot e os 1 500 homens que sobraram da marcha forçada falharam a captura real por uma tira de horas. Foi nos dias finais de Novembro de 1807. Há 200 anos.
JMD


Primeira invasão francesa. Gravura da época


A marcha do exército francês

«A 18 de Novembro (1807), daí a poucas horas, calcam os franceses terra de Portugal. Lá em baixo agitam-se em vão, numa atmosfera de ridículo, a corte, os frades, os pregadores, os poetas, os ministros. Vem aí uma horda desordenada: a animalidade estreme, generais, histriões, o Caraffa com um barrete de algodão na cabeça, uma garrafa de caldo e uma seringa de clisteres suspensa dos coldres do cavalo, Loison agitando o coto furioso, Delaborde, este, aquele, e a turbamulta que desfila e irrompe como um esguicho humano de cóleras e paixões.
Chove sempre. Anos depois Thiébault (general de Napoleão) evoca com terror esses dias de espanto e classifica a marcha sobre Lisboa – de fome, esgotamento, dilúvio e causa inicial dos desastres do Império.
(…) Depois do exército vêm ainda os restos, a escumalha, a jolda: mulheres, judeus, bandos de traficantes, figuras sinistras, essência de pesadelo que forma, no último plano do quadro, a massa esboçada, e que por isso mesmo impressiona, como cotos de asa dum sonho disforme que a realidade tivesse partido… É parte deste inferno que avança sobre o país.»

( Raul Brandão, El-Rei Junot, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1982. 1ª ed.:1912)



Um testemunho daquela época

« O horizonte político cada vez mais se enevoava. O ministério português e o Regente ( futuro D. João VI, pela mãe, D. Maria I, que havia enlouquecido), colocados entre duas forças, igualmente opressoras, que eram as de França e Inglaterra, não sabiam decidir-se, e pensavam que trapaceando, e ganhando tempo, impediam o golpe que se estava a descarregar sobre eles.. Junot à frente do exército francês entrava pelas nossas fronteiras, e já estava quase às portas de Lisboa, sem que os estúpidos governantes dessem fé da sua marcha. D. João, Príncipe Regente, toda a sua corte, e muito mais gente, que quis seguir-lhe a sorte, corriam espavoridos a meter-se nos navios como homens que, vendo a casa incendiada, saltam pelas janelas.(…) O Regente, fugindo, só teve boca para nomear uma Regência, e pedir aos portugueses, que cobardemente desamparava, recebessem como amigos os seus conquistadores; recomendação que ao depois serviu de título para perseguir os que a tinham cumprido!»
(Memórias da Vida de José Liberato Freire de Carvalho, Ed. Assírio & Alvim, 1982. 1ª ed.: 1855. O autor das memórias tinha 33 anos aquando da primeira invasão)



D. João VI e D. Carlota Joaquina

FUGA OU JOGADA ESTRATÉGICA?


A decisão de transferir a família real portuguesa para o Brasil, em 1807, ainda hoje é motivo de polémica. Para uns tratou-se de uma fuga cobarde. O rei deveria ter organizado a defesa e a resistência do país, arriscando a vida mas dando exemplo de coragem e patriotismo. Em vez disso abandonou-o à sua sorte com a agravante de ter incitado os portugueses a receberem o invasor como amigo e protector. Os defensores desta tese sublinham que o seu acto arrastou consigo toda a elite governante, deixando para trás um país entregue à lei da selva. Outra corrente de opinião entende que esta foi a decisão acertada, pois permitiu que se mantivesse a soberania portuguesa. Citam as memórias de Napoleão, escritas no exílio da Ilha de Santa Helena, nas quais ele refere que o rei português “foi o único que me enganou”. E acrescentou:” A Inglaterra pode assim continuar a guerra; os mercados da América meridional foram-lhe abertos; constituiu um exército na Península e daí passou a ser um agente de vitória, o elo poderoso de todas as intrigas que se formaram no Continente…Foi o que me perdeu.”
JMD


Monumento comemorativo da batalha do Vimeiro

A RESISTÊNCIA E O FIM DA 1ª INVASÃO

Na Primavera de 1808, revoltado pelas atrocidades cometidas pelo exército ocupante, de norte a sul do país o povo levanta-se contra os franceses. Entretanto os ingleses desembarcam um exército que inicia o confronto, em aliança com as forças portuguesas. Em Agosto desse ano os franceses são derrotados na Roliça e no Vimeiro. Em vez de explorarem a vitória, os vencedores deixam que Junot organize a defesa, acantonado nos pontos elevados do Oeste, perto de Torres Vedras. Entra-se num impasse militar que leva os oponentes a assinarem uma Convenção de paz. Vergonhosamente os ingleses permitem a retirada incondicional do exército francês, reconhecendo-lhe a propriedade das imensas riquezas saqueadas durante a permanência em Portugal. Caía o pano sobre a tragédia que assolou Portugal nos anos de 1807/1808.
JMD


Soldado português da época