28.12.08

PERTO DO FIM...

Encostado a um antigo palacete rústico, já foi uma das adegas mais bem equipadas da antiga vila de Torres Vedras. Mais tarde virou oficina de automóveis, que ainda é.

Agora o velho edifício vai agonizando e já poucos se lembram da antiga grandeza...

(Rua Raimundo Porta)Foto © Méon

22.12.08

Recordar o Padre Américo



PRESÉPIO DE NATAL TODOS OS DIAS

Comece-se a ler Páginas Escolhidas. Ao fim dos primeiros parágrafos, acontece aquilo que só é possível nos grandes escritores: estamos presos ao livro. Que há de assinalável nele? Trazer, transportado de meados do século XX, algo que interpela o que andamos a fazer hoje. A obra coloca-nos, sem aviso prévio, perante o mais fundo dos problemas das sociedades, o da desigualdade e o da indiferença perante a sua evidência. (Luís Fernandes in jornal PÚBLICO, 23 Out 2008)

O livro de que se fala é um conjunto de textos, agora reeditado, que traz para a actualidade a acção extraordinária da Padre Américo, o criador da Obra da Rua e das Casas do Gaiato. Textos escritos por ele, - Pai Américo e Procurador-geral dos pobres, como gostava que lhe chamassem, - que nos transportam ao cerne de uma vivência humana comovente.
Este homem, nascido em 1887 de família abastada de Penafiel, que foi empregado de comércio em Portugal e em Moçambique, torna-se frade franciscano aos 36 anos e aos 42 é ordenado Padre! Vocação tardia, mas muito a tempo de erguer uma Obra que permanece como um hino à solidariedade e ao bem-fazer. Profundamente imbuído do espírito evangélico incarnado por Francisco de Assis, P. Américo vê nas crianças abandonadas dos bairros miseráveis das grandes cidades os meninos do Presépio e transformou em Natal todos os dias do ano. Perante os ricos e os poderosos proclamou desassombradamente os direitos dos marginalizados, os pobres, os mendigos, os doentes sem recursos.
Sem dinheiro e praticamente sozinho, funda as Casas do Gaiato de Miranda do Corvo (1940), Paço de Sousa (1943), Santo Antão do Tojal (1948) e Paredes (1955), além das obras «Património dos Pobres» e «Calvário».
Confia no poder da Palavra. Com ela, vai percorrer o país, acordando consciências, despertando generosidades, suscitando seguidores. Morre, vítima de acidente de viação, em 1956.
Pobre, como escolhera viver. Pobre como as personagens do Presépio.




AS CASAS DO GAIATO

A finalidade de cada Casa do Gaiato é acolher, educar e integrar na sociedade crianças e jovens que, por qualquer motivo, se viram privados de meio familiar normal. No dizer do fundador, P. Américo Monteiro de Aguiar, " somos a família para os que não têm família".A população média de cada Casa do Gaiato é de 150 rapazes distribuídos pelas diferentes idades desde o nascimento até cerca dos 25 anos. São Instituições totalmente particulares vivendo dia a dia o risco evangélico da solidariedade humana.Aceita Voluntariado a tempo inteiro e também a tempo parcial. Neste caso pede-se que sejam pessoas totalmente disponíveis para as crianças e jovens, com sentido de maternidade e paternidade. Naturalmente que será útil terem conhecimentos de pedagogia e psicologia.Quanto aos funcionários são exigidas as qualificações para que são contratados.As actividades de cada casa são sempre orientadas para a realização dos fins em vista proporcionando aquilo que é melhor para o desenvolvimento de cada rapaz: saúde, alimentação, estudos, formação profissional, emprego, férias, tempos livres, cultura...

PRINCÍPIOS PEDAGÓGICOS

1 . Regime de autogoverno: Os chefes são eleitos pela comunidade - OBRA DE RAPAZES, PARA RAPAZES, PELOSRAPAZES.
2 . Liberdade e espontaneidade: " Ninguém espere fazer homens de rapazes domados". "Porta sempre aberta"
3 . Responsabilidade: "Em nossas casas todos e cada um tem a sua responsabilidade"
4 . Virtudes humanas: Solidariedade, generosidade, camaradagem, amor ao próximo "Os mais velhos cuidam dos mais novos"
5 . Vida familiar: "Não somos asilo, nem reformatório, nem colónia penal. Não há nem nunca houve fardas ou uniformes. " A família é o modelo da Obra".
6 . Ligação à natureza
7 . Formação religiosa

(do site A Obra da Rua)



O P. AMÉRICO, ESCRITOR ADMIRÁVEL:

Escreveu, sobretudo, no jornal O Gaiato:

Estas páginas do «Pão dos Pobres» foram escritas muitas vezes, rentinho à cama onde sofrem os irmãos, por isso te feres nas letras e vens acusar a tua presença, no lugar onde eu estiver. Sim, há-de ser o teu livro de horas.
Será dedicado ao Pobre; ao Pobre com letra maiúscula, de sentido absoluto, que abrange a legião dos famintos e dos escorraçados, por amor de quem tenho sangue nos pés e desejaria dar todo o das veias, para melhor os servir e mais perfeitamente os amar.

Como tudo começou…

Esta paixão nasceu-me dentro da alma no tempo em que me ocupava a ver presos na cadeia; e aprendi de cor que aquele homem repelente, dado como incorrigível pelos oficiais da justiça e entregue aos ferros por tempo sem fim – esse homem foi uma adorável criança nascida num berço triste. Aborrecida da Mãe, que viu nele uma desgraça; aborrecida do Mundo que a toma por um ser perigoso – como e a quem podia aquela criança amar?! E aqui mesmo, nesta ausência do amor, começou a série de crimes (?) praticados pelo nosso condenado!

A Casa do Gaiato era a sua casa, a sua família:

Regressar. Depois de uns dias de ausência, no transporte do peso da minha cruz, por becos e vielas de Portugal, o que eu gosto mais é de regressar. Este verbo é bonito e sonoro, sobretudo quando se regressa para Paço de Sousa. Comigo é assim. Ainda vou a caminho e já me sinto aliviado. (…) É o regressar de um mundo que não vive, nem faz caso dos que vivem. Regressar a um mundo espumante de vida e de beleza – o mundo da nossa Aldeia. (…) É por isso que, quando eu venho por aí fora, trago sempre vontade de chegar. Eles chamam-me pai e sabem que eu os amo. Eles são meus filhos e eu sinto-me bem no meio deles. Sinto-me feliz.

Quando o acusaram de não ser como os outros, escreveu:

Eu detesto e abomino essa paz podre das sacristias, que estraga o sol e apaga a luz. O sal é para salgar; a luz para dar claridade. Detesto aquela paz. Por causa dela é que o mundo anda às escuras e cheira a podre. E não sei como se pode andar em paz, debruçado sobre os ficheiros dos arquivos, enquanto que aqueles mesmos que ali têm seus nomes, vivem no mundo sem nomes, ignorados. Não compreendo.

A Obra da Rua edita quinzenalmente o jornal O GAIATO. Os escritos de P. Américo, aí publicados e no "Correio de Coimbra", estão coligidos em livros que podem ser pedidos à editora (obradarua@iol.pt).Livros Publicados: Pão dos Pobres ( 4 volumes); Obra da Rua; Isto é a Casa do Gaiato (2 Volumes); Barredo; Ovo de Colombo; Viagens; Doutrina (4 volumes); Cantinho dos Rapazes; Notas da Quinzena; De como eu fui….; Correspondência dos Leitores

Bibliografia para esta página:
O Pai Américo era assim
, Padre Elias, Gráfica de Coimbra, 1958
Padre Américo – páginas escolhidas e documentário fotográfico, coord. José da Cruz Santos, Modo de Ler – editores e livreiros, Porto, 2008



6.12.08

CHOUPAL E RIO SIZANDRO: a nossa tristeza!


Página LUGAR ONDE no BADALADAS, 21 Novembro 2008

O Rio Sizandro e o Choupal são duas faces do mesmo problema.
O abandono do Choupal por parte da população torriense é uma acusação silenciosa à incapacidade autárquica para resolver o problema do Rio. Não há uma política eficaz de “integração dos recursos naturais e dos valores ambientais no quadro do ordenamento do território”. Porque “os rios são mais do que um simples sistema biofísico. Eles são, e através dos tempos sempre foram, um elemento de cultura e de civilização” (in O RIO COMO PAISAGEM, Maria da Graça Saraiva)
Os projectos para o Choupal estão prometidos há anos e é com cepticismo que aguardamos a sua concretização. Mas, enquanto isso não acontece, achamos inaceitável o estado de abandono do Parque e da sua Bica histórica. Trata-se da simples manutenção e limpeza daqueles espaços, ao lado dos quais passam diariamente centenas de pessoas. É uma tristeza!





Torre Vedras também tem um Choupal!
É um espaço onde o Outono poisa todos os anos com as cores que só ele tem.Mas para que serve? Para estar abandonado! Raramente se vê alguém por lá, apesar de rodeado por zonas habitacionais.





Neste Choupal há uma Bica centenária, com uma inscrição de 1665. Foi valorizada há mais de um ano por uns vândalos, com intervenções artísticas cuidadosamente preservadas pela autarquia local...
Diz Júlio Vieira, na conhecida obra “Torres Vedras, Antiga e Moderna”:
Refira-se ainda o Chafariz de São Miguel, hoje situado no Choupal, cujo nome se deve à igreja de São Miguel, que se encontrava de fronte, ao Sul, na margem esquerda do rio Sizandro.
A sua presença é atestada por uma carta de emprazamento, datada de 1267, relativa a um olival, situado a São Vicente a par do Chafariz de São Miguel.
O chafariz tinha igualmente um brasão de armas moderno, não datado, mas que seria, muito provavelmente, do século XVI, encontrado em um monte de pedras, junto à igreja da Graça.



Ainda podem ser apreciadas as ruínas de antigas gaiolas e capoeiras onde, há vinte anos, viveram alguns animais. E há vestígios de um parque infantil, de um campo de jogos, um coreto sem préstimo e um depósito de água meio arruinado. As casas de banho públicas metem medo…
Porque é que as pessoas ignoram o Choupal?
Talvez seja altura de olhar para o rio que corre ali perto.





O Rio Sizandro está a ser alvo de nova limpeza. Isto é: arrasa-se toda e qualquer vegetação, rapam-se os taludes, mata-se qualquer hipótese de vestígios biológicos. No meio corre um líquido negro, pestilento, com garrafas de plástico, pneus, lixo…
Leia-se o que, a este propósito, escreveu uma estudiosa dos rios:


Sujeitos à poluição e à artificialidade pelas obras de regularização, muitos rios assumem uma degradação crescente que se reflecte no condicionamento das utilizações, no afastamento das actividades urbanas de maior prestígio e na profunda alteração dos sistemas biológicos a eles associados. Canalizados e poluídos, transformam-se em elementos indesejáveis pelas populações e autoridades decisoras do ordenamento do espaço. Quando a sua dimensão o permite, são cobertos e eliminados da superfície do solo, criando-se gravíssimos e crescentes problemas, sobretudo face à ocorrência de cheias e inundações, agravando os prejuízos e efeitos pela obstrução e redução da sua capacidade de escoamento. Quando de maiores dimensões, e, na impossibilidade da sua cobertura, transformam-se em canais artificializados, de cor e cheiro desagradáveis, sem vida animal ou vegetal ou com a presença de vegetação invasora e desadequada ecologicamente. (O RIO COMO PAISAGEM, Maria da Graça Amaral N. Saraiva, Fundação C. Gulbenkian, Lisboa, 1999)
SUGESTÃO

Agora que a estrada para Santa Cruz está a ser alargada, sugiro à população que exija da Câmara Municipal o abate das árvores do Choupal, a substituição da Bica por um bebedouro como o que foi feito na Praça 25 de Abril, o nivelamento por terraplanagem e a implantação, finalmente, da rotunda distribuidora de trânsito de que Torres Vedras tanto precisa.
Torres Vedras tem direito ao progresso, de modo a implementar o desenvolvimento, com vista às sinergias nas duas vertentes concomitantes: o conceito e a atitude! ! !

Fotos © Méon

27.11.08

HERBERTO HÉLDER: obscura luminosidade

Página LUGAR ONDE no jornal BADALADAS em 24 Outubro 2008




Aventura radical da linguagem poética

Não é fácil a convivência com a obra deste autor, até porque ele foge ao convívio. Homem reservado, recusa a exposição mediática. Há muito que escolheu o silêncio contra o ruído social e os holofotes da fama. Nem mesmo quando foi distinguido, em 1994, com o maior galardão literário português – o Prémio Pessoa – H. Hélder transigiu, recusando até os sete mil contos do prémio. Snobismo? Quem o conhece diz que não. Trata-se de uma opção estética e ética. Veja-se o que diz o poeta: O prestígio é uma armadilha dos nossos semelhantes. Um artista consciente saberá que o êxito é prejuízo. Deve-se estar disponível para decepcionar os que confiaram em nós. Decepcionar é garantir o movimento. A confiança dos outros diz-lhes respeito. A nós mesmos diz respeito outra espécie de confiança. A de que somos insubstituíveis na nossa aventura e de que ninguém a fará por nós. De que ela se fará à margem da confiança alheia.

Ler H. Hélder é uma aventura. Muitos acusam-no de ser hermético, obscuro, temem a torrencialidade desta escrita que tanto se expressa em verso como em texto corrido. Mas a aventura está precisamente na capacidade para entrar nos seus textos com a mente livre e o coração aberto. (“Poesia: liberdade livre” – escreveu António Ramos Rosa…) É uma escrita que não tem paralelo, que cria um universo próprio – tal como acontece com toda a grande Arte dos nossos dias. Sem referente directo com o mundo real, cria outra realidade, isto é, enriquece o mundo.

CITAÇÕES
(...) um elemento recorrente na obra do poeta português: a concepção da criação lírica como uma atividade corporal, sangüínea, resultado do anseio pela expressão mais adequada, pela palavra que não existe – ou que, se existe, não está ao alcance do poeta.

A ressaltar apenas a recorrência de temas do amor carnal (‘o êxtase’, ‘o beijo’ etc.) e da natureza (‘a árvore’, ‘o pássaro’) – usuais na poética helderiana e representativos do sincretismo entre o físico e o transcendente que se dá no universo do poeta.

Se é ponto pacífico o fato de a leitura de um texto literário não deixar nenhum receptor indiferente, da poesia de Herberto Helder é impossível não se sair com um grande sentimento de inquietação, e, face à linguagem calculadamente caótica proposta pelo poeta, não apenas ver as palavras – e lembremos que a poesia helderiana é essencialmente sensorial (especialmente visual) – por se oporem umas às outras, mas sim em sua própria essência, em sua faceta material, em sua corporeidade. (...)

Antony Bezerra

A irredutibilidade desta poesia converge para a aglutinação total, transgredindo os cânones da tradição e ultrapassando as fronteiras. Poesia decisiva e órfã, a insubmissão de Herberto Helder é única. Poeta sábio e lúcido, a sua obra faz-se distante das luzes dos acontecimentos, sob a égide da "solidão essencial" proclamadapor Blanchot(…)
Jorge Henrique Bastos

[ O grande poema O AMOR EM VISITA pode ser lido AQUI ]




RETRATO ESCRITO



Herberto Helder Luís Bernardes de Oliveira, nasceu a 23 de Novembro de 1930 no Funchal, ilha da Madeira, no seio de uma família de origem judaica. Em 1946, com 16 anos, viaja para Lisboa para freqüentar o 6º e o 7º ano do curso liceal. Em 1948, matricula-se na Faculdade de Direito de Coimbra e, em 1949, muda para a Faculdade de Letras onde freqüenta, durante três anos, o curso de Filologia Romântica, não tendo terminado o curso. Três anos mais tarde regressa a Lisboa, começando por trabalhar durante algum tempo na Caixa Geral de Depósitos e depois como angariador de publicidade, sendo que durante este tempo vive, por razões de ordem vária e pessoal, numa «casa de passe».
Em 1954, data da publicação do seu primeiro poema em Coimbra, regressa à Madeira onde trabalha como meteorologista, seguindo depois para a ilha de Porto Santo. Quando em 1955 regressa a Lisboa, freqüenta o grupo do Café Gelo, de que fazem parte nomes como Mário Cesariny, Luís Pacheco, António José Forte, João Vieira e Hélder Macedo. Durante esse período trabalha como propagandista de produtos farmacêuticos e redactor de publicidade, vivendo com rendimentos baixos. Três anos mais tarde, em 1958, publica o seu primeiro livro, O Amor em Visita. Durante os anos que se seguiram vive em França, Holanda e Bélgica, países nos quais exerce profissões pobres e marginais, tais como: operário no arrefecimento de lingotes de ferro numa forja, criado numa cervejaria, cortador de legumes numa casa de sopas, empacotador de aparas de papéis e policopista. Em Antuérpia, viveu na clandestinidade e foi guia dos marinheiros no sub mundo da prostituição.
Repatriado em 1960, torna-se encarregado das bibliotecas itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian, percorrendo as vilas e aldeias do Baixo Alentejo, Beira Alta e Ribatejo. Nos dois anos seguintes publica os livros A Colher na Boca, Poemacto e Lugar. Em 1963 começa a trabalhar para a Emissora Nacional com redactor de noticiário internacional, período durante o qual vive em Lisboa. Ainda nesse mesmo ano publica Os Passos em Volta e produz A máquina de emaranhar paisagens. Em 1964 trabalha nos serviços mecanográficos de uma fábrica de louça, datando desse ano a sua participação na organização da revista Poesia Experimental. Nesse ano reedita ainda Os Passos em Volta, escreve «Comunicação Acadêmica» e publica Electronicolírica. Em 1966 participa na co-organização do segundo número da revista Poesia Experimental e no ano seguinte publica Húmus, Retrato em Movimento e Ofício Cantante. Data de 1968 a sua participação na publicação de um livro sobre o Marquês de Sade, o que o leva a ser envolvido num processo judicial no qual foi condenado. Porém, devido às repercussões deste episódio consegue obter suspensão de pena, fato este que não conseguiu evitar que fosse despedido da Rádio e da Televisão portuguesas. Refugia-se na publicidade e, posteriormente, numa editora onde desempenha o cargo de co-gerente e director literário. Ainda nesse ano publica os livros Apresentação do Rosto, que foi suspenso pela censura, O Bebedor Noturno e ainda Kodak e Cinco Canções Lacunares.
Em 1970 viaja por Espanha, França, Bélgica, Holanda e Dinamarca, publicando nesse ano a terceira edição de Os Passos em Volta e escreve Os Brancos Arquipélagos. Em 1971 desloca-se para Angola onde trabalha como redactor numa revista. Enquanto repórter de guerra é vítima de um grave desastre tendo que ser hospitalizado durante três meses. Data ainda desse ano a publicação de Vocação Animal e a produção de Antropofagias. Regressa a Lisboa e parte de novo, desta vez para os E.U.A., em 1973, ano durante o qual publica Poesia Toda, obra que contém toda a sua produção poética, e faz uma tentativa frustrada de publicar Prosa Toda. Em 1975 passa alguns meses na França e Inglaterra, regressando posteriormente a Lisboa onde trabalha na rádio e em revistas, meios restritos de sobrevivência económica. Em 1976, Herberto Helder participa na edição e organização da revista Nova que, sendo posterior à revolução de 25 de Abril de 1974, reconhecia na Literatura portuguesa características que a aproximaram às Literaturas latino-americana, africana e espanhola, declinando uma direcção literária revolucionária cuja actividade não ultrapassou o plano teórico devido à instabilidade política portuguesa que se fazia sentir na altura. Nos anos que se seguiram publicou as obras Cobra, O Corpo, O Luxo, A Obra e Photomaton e Vox. A última referência encontrada da instabilidade biográfica de Herberto Helder referia-se ao fato de o poeta ter abandonado todas as suas anteriores actividades e de viver no mais cioso dos anonimatos.

Texto biográfico publicado no site daUniversidade Nova de Lisboa - FCSHCentro de Investigação para Tecnologias Interativas

21.9.08

FIM DO VERÃO

Rasgou-se a folha do tempo. Nova página espera, como se os dias procurassem outra dimensão e as noites já não coubessem no sopro das horas.
Palavras regressam. iluminadas de outras brisas, como gente que tem saudades e traz recordações do sul.
Escorre a luz pelas tardes. Imperceptível, o Verão saiu e é de água que o tempo agora fala. Os lagos da memória guardam astros e sombras, sinais do vento ou de quando o sol se erguia mais alto e mais quente, e cada manhã trazia silêncios e perfumes.
É o Outono que aí vem? Já é o Outono?
Transfigura-se o verão. Mais doce, mais serena, chega a luz de Setembro envolta nas folhas que caem.
Hoje é o LUGAR ONDE guardamos alguns poemas que falam do Outono.


SE DESTE OUTONO

Se deste outono uma folha,

apenas uma, se desprendesse
da sua cabeleira ruiva,
sonolenta,e sobre ela a mão
com o azul do ar escrevesse
um nome, somente um nome,
seria o mais aéreo
de quantos tem a terra,
a terra quente e tão avara
de alegria.
Eugénio de Andrade



CANÇÃO DE OUTONO



Perdoa-me, folha seca,

não posso cuidar de ti.

Vim para amar neste mundo,

e até do amor me perdi.



De que serviu tecer flores

pelas areias do chão,

se havia gente dormindo

sobre o próprio coração?



E não pude levantá-la!

Choro pelo que não fiz.

E pela minha fraqueza

é que sou triste e infeliz.

Perdoa-me, folha seca!

Meus olhos sem força estão

velando e rogando àqueles

que não se levantarão...



Tu és a folha de outono

voante pelo jardim.

Deixo-te a minha saudade

- a melhor parte de mim.

Certa de que tudo é vão.

Que tudo é menos que o vento,

menos que as folhas do chão...

Cecília Meireles



UMA NÉVOA DE OUTONO

Uma névoa de Outono o ar raro vela,

Cores de meia-cor pairam no céu.

O que indistintamente se revela,

Árvores, casas, montes, nada é meu.



Sim, vejo-o, e pela vista sou seu dono.

Sim, sinto-o eu pelo coração, o como.

Mas entre mim e ver há um grande sono.

De sentir é só a janela a que eu assomo.



Amanhã, se estiver um dia igual,

Mas se for outro, porque é amanhã,

Terei outra verdade, universal,

E será como esta [...]

Fernando Pessoa

TRISTÃO E ISOLDA

Sobre o mar de Setembro velado de bruma
O sol velado desce
Impregnando de oiro e espuma
Onde a mais vasta aventura floresce.

Tristão e Isolda que eu sempre vi passar
Num fundo de horizontes marítimos
Trespassados como o mar
Pela fatalidade fantástica dos ritmos
Caminham na agonia desta tarde
Onde uma ânsia irmã da sua arde.

Tristão e Isolda que como o Outono,
Rolando de abandono em abandono,
Traziam em si suspensa
Indizivelmente a presença
Extasiada da morte.

Sophia de Mello Breyner Andresen


Os mortos aconchegam-se, no Outono,
Aonde, sendo mais secas,
As folhas juntam o pródigo tesouro
Da tristeza.
O seu distúrbio, em torno
Dos negros troncos, festeja
O fragilíssimo lugar, o modo
De estar cedendo, a transparência
Ao movimento universal do sono
Que acorda adequação de inteligência.
E é desse lado que os mortos
Sua inocência irrequieta
Avivam. E aventam o ouro
Outonal das folhas secas.

Fernando Echevarría



OUTONO

Tarde pintada
Por não sei que pintor.
Nunca vi tanta cor
Tão colorida!
Se é de morte ou de vida,
Não é comigo.
Eu, simplesmente, digo
Que há tanta fantasia
Neste dia,
Que o mundo me parece
Vestido por ciganas adivinhas,
E que gosto de o ver, e me apetece
Ter folhas, como as vinhas.

Miguel Torga

23.8.08

RUY BELO, TRINTA ANOS DEPOIS


S. João da Ribeira ( freguesia do concelho de Rio Maior): Casa onde nasceu Ruy Belo.





“Procurava nas palavras uma chave para o código genético da angústia: a dor de saber quão precária é a nossa condição de seres viventes e de como o tempo nos é tão pouco”.(Lugar Onde, Julho 2003)
Sim, foi pouco o tempo de vida de Ruy Belo. Nascido em 1933, morreu em Agosto de 1978, faz agora trinta anos. O suficiente, porém, para nos deixar uma vasta obra poética que marcou a poesia portuguesa contemporânea:
Aquele Grande Rio Eufrates (
1961) / O Problema da Habitação (1962) / Boca Bilingue (1966) / Homem de Palavra(s) (1969) / Transporte no Tempo (1973) / País Possível (1973) / A Margem da Alegria (1974) / Toda a Terra (1976) / Despeço-me da Terra da Alegria (1978).
Obra publicada pela editorial Presença e pela Assírio & Alvim, está hoje praticamente esgotada e é difícil de encontrar. Por isso está a ser preparada uma nova edição da obra completa, a sair em Outubro.
A nossa homenagem ao grande poeta Ruy Belo!








À MEMÓRIA DE RUY BELO




Provavelmente já te encontrarás à vontade


entre os anjos e, com esse sorriso onde a infância


tomava sempre o comboio para as férias grandes,


já terás feito amigos, sem saudades dos dias


onde passaste quase anónimo e leve


como o vento da praia e a rapariga de Cambridge,


que não deu por ti, ou se deu era de Vila do Conde.


A morte como a sede sempre te foi próxima,


sempre a vi a teu lado, em cada encontro nosso


ela aí estava, um pouco distraída, é certo,


mas estava, como estava o mar e a alegria


ou a chuva nos versos da tua juventude.


Só não esperava tão cedo vê-la assim, na quarta


página de um jornal trazido pelo vento,


nesse agosto de Caldelas, no calor do meio-dia,


jornal onde em primeira página também vinha


a promoção de um militar a general,


ou talvez dois, ou três, ou quatro, já não sei:


isto de militares custa a distingui-los,


feitos em forma como os galos de Barcelos,


igualmente bravos, igualmente inúteis,


passeando de cu melancólico pelas ruas


a saudade e a sífilis do império,


e tão inimigos todos daquela festa


que em ti, em mim, e nas dunas principia.


Consola-me ao menos a ideia de te haverem


deixado em paz na morte; ninguém na assembleia


da república fingiu que te lera os versos,


ninguém, cheio de piedade por si próprio,


propôs funerais nacionais ou, a título póstumo,


te quis fazer visconde, cavaleiro, comendador,


qualquer coisa assim para estrumar os campos.


Eles não deram por ti, e a culpa é tua,


foste sempre discreto (até mesmo na morte),


não mandaste à merda o país, nem nenhum ministro,


não chateaste ninguém, nem sequer a tua lavadeira,


e foste a enterrar numa aldeia que não sei


onde fica, mas seja onde for será a tua.




Agrada-me que tudo assim fosse, e agora


que começaste a fazer corpo com a terra


a única evidência é crescer para o sol.




Eugénio de Andrade, 1978






PARA A DEDICAÇÃO DE UM HOMEM
Terrível é o homem em quem o senhor
desmaiou o olhar furtivo das searas
ou reclinou a cabeça
ou aquele disposto a virar decisivamente a esquina
Não há conspiração de folhas que recolha
a sua despedida. Nem ombro para o seu ombro
quando caminha pela tarde acima
A morte é a grande palavra para esse homem
não há outra que o diga a ele próprio
É terrível ter o destino
da onda anónima morta na praia



(Aquele Grande Rio Eufrates)




A MÃO NO ARADO

Feliz aquele que administra sabiamente
a tristeza e aprende a reparti-la pelos dias
Podem passar os meses e os anos nunca lhe faltará


Oh! como é triste envelhecer à porta
entretecer nas mãos um coração tardio
Oh! como é triste arriscar em humanos regressos
e equilíbrio azul das extremas manhãs do verão
ao longo do mar transbordante de nós
no demorado adeus da nossa condição
É triste no jardim a solidão do sol
vê-lo desde o rumor e as casas da cidade
até uma vaga promessa de rio
e a pequenina vida que se concede às unhas
Mais triste é termos de nascer e morrer
e haver árvores ao fim da rua
É triste ir pela vida como quem
regressa e entrar humildemente por engano pela morte dentro
É triste no outono concluir
que era o verão a única estação
Passou o solidário vento e não o conhecemos
e não soubemos ir até ao fundo da verdura
como rios que sabem onde encontrar o mar
e com que pontes com que ruas com que gentes com que montes conviver
através de palavras de uma água para sempre dita
Mas o mais triste é recordar os gestos de amanhã
Triste é comprar castanhas depois da tourada
entre o fumo e o domingo na tarde de Novembro
e ter como futuro o asfalto e muita gente
e atrás a vida sem nenhuma infância
revendo tudo isto algum tempo depois
A tarde morre pelos dias fora
É muito triste andar por entre Deus ausente

Mas, ó poeta, administra a tristeza sabiamente




(O Problema da Habitação)




Ruy Belo repousa no cemitério da sua terra natal, S. João da Ribeira (Rio Maior).
Na pedra tumular lê-se este poema, do livro “Homem de Palavra(s)”


COLOFON OU EPITÁFIO

Trinta dias tem o mês
e muitas horas o dia
todo o tempo se lhe ia
em polir o seu poema
a melhor coisa que fez
ele próprio coisa feita
ruy belo portugalês
Não seria mau rapaz
quem tão ao comprido jaz
ruy belo, era uma vez


Entrada do cemitério de S. João da Ribeira, última morada do poeta. Foto Méon.


16.7.08

ADEUS A UM HOMEM BOM

ANTÓNIO CORDEIRO MELO



“Homem bom” – antiga designação daqueles que se distinguiam na vida cívica. Assim foi António Cordeiro Melo. Homem de ideais, de cultura, de estudo. Cultor das letras e das artes, foi um dos obreiros do já lendário SUPLEMENTO cultural do Badaladas, em 1961. Humanista íntegro, resistente da liberdade, solidário com os desprotegidos. Marcou a vida cultural e política do Oeste. Deixou-nos no passado 23 de Junho, tinha 82 anos.

Vinha muitas vezes a Torres Vedras mas residia na Merceana, concelho de Alenquer, onde desenvolveu uma vida dedicada ao ensino, à dinamização cultural e à participação política. Professor no antigo ensino primário, destacou-se como co-fundador e director da Tele-Escola da Merceana, e como pioneiro e dinamizador dos Centros de Apoio Pedagógico. Foi fundador, sócio nº 1 e o primeiro Presidente da Direcção do Clube Regional de Recreio e Cultura da Merceana, tendo também participado na Assembleia de Freguesia desta povoação. Fez parte da primeira Direcção do Sindicato dos Professores da Grande Lisboa.
Em Alenquer, onde nasceu em 1925, deixou marcas profundas da sua acção. Foi membro da Assembleia Municipal desde as primeiras eleições livres até ao anterior mandato, eleito pela CDU como militante do Partido Comunista Português. Participou como Vogal na Comissão Administrativa de Alenquer após a revolução de Abril, onde criou e foi titular do primeiro pelouro municipal da Cultura. Colaborou activamente no “Jornal de Alenquer”que ajudou a fundar. Foi co-autor da monografia “O Concelho de Alenquer”, uma obra de referência para o estudo da etnografia e do património construído daquele concelho. Publicou diversos estudos sobre os usos e costumes, lendas e trabalhos agrícolas da região.
Detentor do Curso de Artes Decorativas do Instituto António Arroio, destacou-se como artista plástico, na pintura e na marcenaria, tendo sido profissional desta arte desde os 18 anos. Cursou Filosofia e Letras na Universidade de Lisboa, onde completou, já depois de reformado do Ensino, a Licenciatura em História.
No Voto de Pesar, aprovado pela Assembleia Municipal de Alenquer em 27 de Junho passado, a sua memória foi largamente documentada, recordando-se que a António Cordeiro Melo já havia sido atribuída a Medalha de Mérito Concelhio, Grau Prata e propondo-se a perpetuação do seu nome numa rua da Merceana.



Cordeiro Melo no BADALADAS

Esteve entre os fundadores do “Suplemento” do BADALADAS, em 1961, juntamente com António Augusto Sales, Ruy Moura Guedes e outros. Para quem não se lembre, tratou-se de um suplemento cultural que teve enorme importância na época, pela audácia, inovação e até desafio ao obscurantismo reinante.
Em 1993, a Cooperativa de Comunicação e Cultura relançou uma nova série desse Suplemento, homenageando os fundadores. Cerca de trinta anos depois, Cordeiro Melo aceitou prontamente voltar a colaborar:

[…] Assim, e neste início dos anos 90, estamos perante outras formas de agir e pensar, novas linguagens, novos “campos experimentais de cultura”, em suma, estamos perante uma nova geração. Dele emerge, agora, um novo grupo para quem a vida, também, não faz sentido sem utopia, que vem dar o novo sinal de partida para a publicação deste novo Suplemento de Badaladas [...]

[...]Eu tive o privilégio de ser solicitado e a sorte de estar vivo para poder estabelecer o elo de ligação entre os dois actos inaugurais, com a convicção de que a questão de fundo e as razões fundamentais que deram origem ao primeiro, continuam actuais para este novo SUPLEMENTO, 30 anos depois…



AS VELHAS TORRES

Lá no alto, correm as cristas de Montejunto. Cá em baixo, no fundo da cova e ao centro daquelas abas da serra, ergue-se, imponente, o Santuário.
As torres do templo enchem os olhos a toda a gente. A seus pés, afunda-se e rasteja uma aldeia calafetada de vinhedos.
Por cima, uma nesga de céu dá passagem às agulhas dos cata-ventos em busca de infinitos…
- Ninguém pode perder as torres de vista – já diziam os antigos.
Vivências milenárias afloram aos gestos e às palavras em cada esquina.
Lobisomens, almas penadas e espíritos maus andam a monte noite e dia; mas à noite zurram, uivam, piam, batem asas sobre as almas adormecidas e fazem mal. Fazem muito mal. Bruxedos, presságios, forças ocultas eclipsam auroras de claridade nascente em terras sagradas do Boi Marciano.
- Ninguém pode perder as torres de vista – clamam os velhos convictos.
Os olivais, as rendas da casa dos Romeiros e algumas cobranças aos mercadores que vêm fazer a feira todos os meses no Terrado, lá vão equilibrando as posses da Casa Santa; as quotas dos irmãos, esmolas e quetes dominicais fazem crescer, ao fim do ano, um pão feito de migalhas.
- Ninguém poder perder as torres de vista – dizem os novos desalentados.
A alegria e a tristeza dobram e repicam no alto das torres. Ecoam lá longe nas gargantas da serra. Vozes de bronze, cavas e fundas, tenórias ou finas – vibram no ar: clamores, preces, aleluias, finados, rebates; boas novas também.
A voz do tempo é a voz dos campanários. É uma voz que governa, anuncia, chama, recreia e dita. Voz que acerta o passo; enrola cigarros com lentidão de cava a dois ferros em terra dura. Voz desejada ao sol-poente para endireitar a espinha; o repique ao dia e à hora de receber a féria.
- Ninguém pode perder as torres de vista – aprendem as crianças.
O electricista deixa a luz acesa até altas horas da noite, mas ela perde-se nos bancos da Praça sem viv’alma. Amortece na escuridão dos cerros e vales onde as almas do outro mundo conspiram e apagam faróis atrevidos…

*

Sereias, relógios, cimento, vidro e ferro gritam progresso por atalhos e caminhos em direcção aos quatro ventos das vinhas do Oeste. Porém, tudo se cala à voz do sino grande. O seu badalar é um badalar dos tempos. Voz de um passado medieval que anima e conduz o coração e as ideias dos povoados que branquejam entre retalhos verdes e castanhos-claros. Voz a quem se obedece de dentro para fora. É uma voz sagrada a falar dentro de um tempo e de um espaço sagrados. Não há ano de 365 dias; há quatro tempos sagrados: o Presépio, a Páscoa, a Procissão do Senhor dos Passos e a festa grande em honra do Santíssimo. É a festa da Casa. Estes quatro tempos não são quatro estações de três meses. Longe disso. O tempo de nascer é pelas searas de trigo ou de milho; casam-se pela azeitona ou vindima; morrem pelo tempo da «fruta do tarde». Este é o regimento da vida dos montes redondos, dos vales bem feitos, das rainhas milagreiras e misericordiosas. Quando a poda e a empa mais o sulfato e o enxofre correm de feição: há o S. Martinho regado e repiques canoros vibram o azul rutilante do céu. Luas más, lado suão, Berlenga contrária, o silvo do comboio galga para cá da serra: amanhos ruins, «provas» desapaladadas – os vinhos não valem. E o mercado de Outubro já não é a feira por excelência. Negócios fracos. Ninguém se chega a comprar.
- Quer alguma coisa freguês?

(Excertos do livro Contos Portugueses de que Cordeiro Melo foi co-autor)

19.6.08

"FAZER DA VIDA UMA OBRA DE ARTE"



ANTÓNIO ALÇADA BAPTISTA,
O PROFETA DOS AFECTOS

Nas antigas escrituras a divindade encarregava os sábios/profetas de avisar os homens. Portadores de uma mensagem nova, eram precursores do seu tempo. E o tempo dava-lhes razão.

António Alçada Baptista foi um precursor do primado dos afectos. Soube ler nos sinais da História os indícios de um novo tempo. Correndo o risco de ser mal entendido, denunciou o racionalismo estreito dos sistemas políticos redentores, defendendo a necessidade de começar pelos sentimentos, pelo culto das afeições e do amor, pela introspecção - peregrinação interior como forma de desenvolvimento espiritual. Apercebendo-se da armadilha fatal do consumismo, afirmou a prioridade absoluta do SER sobre o TER.A religião tradicional católica não ficou imune ao seu exame. Aliás, foi por ela que AAB iniciou o seu percurso de denúncia das verdades estabelecidas. A sua “Peregrinação Interior – Reflexões sobre Deus”, publicado em 1971, foi uma enorme pedrada no charco do regime político e das mentalidades retrógradas da época. Os subtítulos da portada interior do livro são esclarecedores: «Quadros da vida quotidiana numa sociedade em vias de desenvolvimento; fragmentos do memorial do combate que Jacob Alçada Baptista vem travando com o anjo que lhe foi atribuído».
O projecto de Alçada Baptista tinha dois propósitos. 1º: Examinar as bases da educação tradicional católica e confrontá-las com as realidades do tempo actual; 2º: Decifrar os sinais de inquietação do homem contemporâneo, procurando saídas para a sua angústia existencial.
Este programa de acção não era novo. A originalidade de A. Baptista está no modo como o abordou.: expondo-se! Ele, um filho da burgo-aristocracia beirã, com futuro garantido no regime da época, decidiu destapar o cenário da sua origem de classe e fazer o inventário da imensa hipocrisia que o sustentava. E fê-lo falando abertamente de si, verrumando impiedosamente o seu percurso pessoal, vazando-o publicamente nos muitos livros que escreveu. Um deles, o romance “Os Nós e os Laços” (1985) teve um enorme sucesso. Não pela sua qualidade literária - que era mediana – mas porque expunha, de forma simples e eficaz toda a teoria do autor sobre a humanidade, os seus sofrimentos e a forma de os enfrentar.
Ao reler os livros de AAB verificamos que o tempo lhe deu razão. Por isso eles continuam tão actuais.


Alçada Baptista em discurso directo

A cultura do feminino

«A nossa sociedade vive na cultura do masculino por causa do poder. Toda a nossa educação foi feita à base dos grandes heróis, dos homens que detinham muito poder — Napoleão Bonaparte, Alexandre, o Grande, ou Afonso de Albuquerque. Certas constantes fisiológicas, como a menor força física e o embaraço periódico da maternidade, decretaram que o homem monopolizasse o poder. Como este tem sido o instrumento determinante da escrita e da edificação da História, foi construído um universo de valores ditos “masculinos”.
Aquilo que de mais importante aconteceu na minha vida foi a entrada da mulher na História. Ela não estava na História quando eu nasci. Sou do tempo em que, quando uma mulher passava a conduzir, se dizia: “Olha uma mulher a guiar!”.»
. «O homem deve assumir sem vergonha o mundo dos afectos. Porque hoje acabou o poder absoluto e as pessoas têm muito mais poder, de muitas naturezas, a nível individual.»

O amor

«Os comportamentos do amor estão a modificar-se e isso fundamentalmente pela intervenção do feminino na sociedade: a liberdade sexual, o direito ao prazer e ao uso do corpo, tudo isso modificou a liturgia do desejo porque impôs novas regras na aproximação da mulher com o homem»

«O mais importante: saber ter com os outros uma relação afectuosa no tempo e isso só é possível se nos dispusermos a dar e a compreender a singularidade de cada um.
A felicidade humana tem que ser construída a partir da consciência que um homem ou uma mulher tiverem de si próprios e da sua liberdade para poderem talhar com ela o seu próprio destino. Mas liberdade não é libertinagem, não há liberdade sem responsabilidade e sem a consciência de que somos solidários. Isso, a meu ver, modificaria radicalmente a relação entre as pessoas, porque um dos dramas do amor é que as pessoas não se respeitam. Respeitar os outros é reconhecer que eles são pessoas livres e agir em conformidade com esse reconhecimento. Creio que isso pode dar relações muito mais duradouras do que este jogo de sedução e astúcia com que são feitos os quadros culturais do amor.»
(Declarações retiradas de diversas entrevistas a órgãos de comunicação social escrita)

Vida e obra
Nascido na Covilhã, em 1927, estudou num colégio de Jesuítas em Santo Tirso. Licenciou-se em Direito pela universidade de Lisboa. Foi um dos fundadores da revista O Tempo e o Modo, que dirigiu entre 1963 e 1969. De 1957 a 1972 foi director da prestigiada Moraes Editora. Foi presidente do Instituto Português do Livro de 1979 a 1985. Exerceu o jornalismo em vários periódicos (A Capital, O Semanário, O Dia, A Tarde, por exemplo) com publicação regular de crónicas, algumas das quais já reunidas em livro. O reconhecimento público pela sua acção cívica e cultural valeu-lhe diversas condecorações: Oficial da Ordem de Santiago, a Ordem Militar de Cristo, e a Grã-Cruz da Ordem do Infante.

A sua obra literária reparte-se entre a ficção e o ensaio de memórias pessoais e colectivas:
Documentos políticos, 1970 / Peregrinação Interior – I, Reflexões Sobre Deus, 1971 (reflexão pessoal e social) / O Tempo nas Palavras, 1973 (Crónicas no jornal “A Capital”) / Conversas com Marcelo Caetano, 1973 / Peregrinação Interior – II, O Anjo da Esperança 1982 / Uma Vida Melhor, 1984 / Os Nós e os Laços, 1985 (Romance) / Catarina ou o Sabor da Maçã, 1988 (Romance) / Tia Susana, Meu Amor, 1989 (Romance) / O Riso de Deus, 1994 (Romance) / A Pesca à Linha – Algumas Memórias, 1988 / O Tecido de Outono, 1999 (Autobiografia romanceada / Um Olhar à Nossa Volta, 2002 (crónicas nos jornais “O Dia” e “A Tarde” / A Cor dos Dias – Memórias e Peregrinações, 2003. Edições Presença.



CITAÇÕES

“A autobiografia espiritual que são, efectivamente, os dois volumes de Peregrinação Interior, contestando com subtil ironia e transparência ideológica o ambiente que rodeou a sua infância e juventude, foi considerada na altura, pela crítica, uma obra-prima do seu género, à qual se associava a vasta cultura filosófica, bem travejada e profundamente actualizada.”
(Dicionário da Literatura Portuguesa, ed. Presença, 1996)

“ O que mais admiro no A Alçada B. é o facto de ser um homem livre, que usa os afectos, os rituais da amizade, a arte do diálogo e da conversa como método para compreender e aproximar pessoas. É um praticante activo da aristocracia do comportamento - «a vida é a nossa obra de arte» - por isso lhe encontramos uma coerência, uma generosidade, uma dúvida serena, uma prática permanente de procura do sentido da dignidade humana.”
(Guilherme d’ Oliveira Martins, Jornal de Letras e Artes, 26 / 6/ 2002)

21.5.08

UM LUGAR PARA A HISTÓRIA - O Arquivo Municipal de Torres Vedras




Vivemos um tempo de experiências imediatas e consumos de urgência, como se o amanhã não existisse e o passado não contasse mais… Mas é neste tempo, curiosamente, que a História exerce uma atracção poderosa. Sucedem-se as edições de estudos e romances de carácter histórico, como se toda a gente tivesse ficado subitamente cansada da ficção pura e procurasse no passado uma compensação para o vazio do presente.
Este fenómeno interessante verifica-se também entre nós, torrienses e pouco significado teria se fosse uma moda de circunstância. Mas, felizmente, não é.

Já o LUGAR ONDE de Fevereiro de 2004 chamava a atenção para o facto de que “é tempo de falar de uma historiografia torriense”. E fazia uma listagem das obras históricas mais significativas. De então para cá o panorama enriqueceu-se, com a publicação de outras obras que constituem um repositório valiosíssimo para o conhecimento do nosso passado. O que queremos salientar hoje é que, a este facto, não é alheia a reorganização do Arquivo Municipal cujos objectivos a médio prazo foram assim definidos:
Conclusão da organização física dos fundos do Arquivo Municipal;
Promoção de projectos de investigação de interesse local e regional, em parceria com a FCT (Fundação para a Ciência e a Tecnologia)
Edição de fontes documentais e estudos on-line;
Elaboração de um Plano Cultural Específico:
Organização de exposições temáticas;
Organização de visitas de estudo ao Arquivo;
Acções de formação sobre gestão documental para as Juntas de Freguesia, Paróquias, Escolas e Associações;
Colóquios e Encontros sobre história e identidade locais.
Orientação de estágios
Microfilmagem e Digitalização de algumas séries documentais.
Ao propor-se dinamizar um Plano Cultural e assegurar a orientação de estágios, entre outros objectivos, o Arquivo Municipal passou a protagonizar uma acção de enorme alcance e de resultados bem visíveis na área da cultura e, mais especificamente, na historiografia torriense.
Sem pretendermos fazer agora o levantamento rigoroso dessa acção, lembramos duas
iniciativas do Arquivo Municipal: a realização das “Sopas de Pedra” – no claustro do Convento da Graça, em que se divulga História Local como sobremesa de autênticas sopas tradicionais…; e os Encontros de História sob o título genérico de “TURRES VETERAS”, o mais recente dos quais se realizou na passada semana e que foi o XIº!
Destes Encontros têm vindo a ser publicadas as respectivas actas que, no seu conjunto, constituem um importantíssimo acervo documental e de investigação histórica, tanto do ponto de vista nacional como local. Podem ser adquiridos na Biblioteca Municipal por preços quase simbólicos. Cada volume versa um tema específico: I – História Medieval; II – História Moderna; III – História Contemporânea; IV – Pré-História e História Antiga; V – História Militar e da Guerra; VI – História da Morte; VII – História das Figuras do Poder; VIII – História das Festas; IX – História da Alimentação; X – História do Sagrado e do Profano.


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ENTREVISTA
Missão cultural dos Arquivos

Carlos Guardado da Silva é o Director do Arquivo Municipal de Torres Vedras, onde tem realizado uma notável e intensa actividade de organização e divulgação dos acervos documentais. Pusemos-lhe algumas questões:

LUGAR ONDE (L.O.): A imagem tradicional que temos dos arquivos é a de lugares sombrios onde se guardam papeladas velhas que só interessam aos estudiosos da História, e onde está vedada a entrada do público. A realidade actual é muito diferente desta ideia?
Carlos Guardado (C.G.): Nas últimas décadas do século XX os arquivos tornaram-se verdadeiros “centros” culturais, associando este papel com a função da comunicação e o acesso democrático à cultura, direito garantido pela Constituição da República.
L.O. – Qual é a função actual dos Arquivos?
C.G. – A sua função continua a ser a de gestão patrimonial, gestão de um património específico – o documental – produzido pelas diversas entidades (colectivas, pessoas, famílias…), garantindo a salvaguarda dos direitos dos cidadãos, ao mesmo tempo que conservam a memória. Os Arquivos, tal como as Bibliotecas e os Museus, fazem parte das chamadas «instituições memorizadoras», a quem cabe a função de recuperação da memória. Esta recuperação e a sua valorização constituem uma verdadeira tarefa educativa, cultural e cívica, cabendo aos arquivos a responsabilidade de fazer perdurar no tempo um património único.
L.O. – Qualquer cidadão pode ter acesso aos arquivos?
C.G. – Cada vez mais os indivíduos sentem necessidade de conhecer as suas origens – pessoais ou sociais – com as quais se identificam, permitindo a construção ou o reforço dos laços de pertença. Os deveres e direitos dos cidadãos em relação à cultura estão constitucionalmente garantidos, como já disse, e a legislação sobre Arquivos definem-nos como “instituições culturais”. Por isso os arquivistas estão cada vez mais abertos ao aumento e diversificação dos perfis dos clientes, isto é, dos utilizadores, o público em geral.
L.O. – Essa diversidade é compatível com o trabalho diário dos arquivistas?
C.G. – Interessa a cada arquivo satisfazer as necessidades e expectativas dos utilizadores externos, assim como captar novos utilizadores que desconhecem muitas vezes quer a existência dos arquivos, quer de determinados documentos, ou determinados serviços. Esta é uma mudança iniciada “timidamente” em França, no início da década de 50 do século passado, vindo os investigadores profissionais a ceder protagonismo em favor de estudantes e de curiosos, tendo estes uma formação variável, que não apenas a da História, procurando investigar temas de âmbito genealógico ou de história local.
L.O. – Aos arquivistas pede-se, então, uma multiplicidade de tarefas?...
C.G. – Pois, já não chega ao arquivista ser um gestor de documentação (a documentação de arquivo) e de informação. As suas competências têm de se desenvolver para ir ao encontro das funções de comunicação e de difusão e de dinamização cultural. E o arquivista não pode igualmente descurar as técnicas de marketing, o conhecimento do mundo multimédia, assim como a planificação e a gestão de recursos, quer sejam materiais, quer sejam de informação, quer sejam financeiros, quer sejam, ainda, recursos humanos.
Cabe também ao Arquivista comunicar os documentos aos diferentes públicos. É aliás a comunicação, enquanto função, a dimensão da profissão que justifica todas as outras dimensões. A finalidade da conservação dos arquivos é poder, dentro dos ditames da lei, comunicar os documentos ao maior número possível
.


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Nos dias 16 e 17 de Maio decorreu mais uma edição do Encontro de História, desta vez sob o tema da Guerra Peninsular, evocando o Bicentenário das Invasões Francesas. Iniciativa de diversas entidades, com destaque para a Câmara Municipal de Torres Vedras através do seu serviço de Arquivo. De sublinhar a participação das universidades de Aix en Provence, Varsóvia e Oviedo, para além da presença habitual das universidades de Lisboa e de Coimbra.
Salientamos a qualidade excepcional dos materiais de promoção – cartazes e desdobráveis com o programa – da autoria de Olga Moreira. Vale a pena seguir com atenção as belíssimas criações estéticas desta profissional do design gráfico.





Em cada TURRES VETERAS é feito o lançamento do livro com as comunicações do Encontro do ano anterior. A “História do Sagrado e do Profano” foi o tema do ano passado, agora em livro com 284 páginas, em que se transcrevem os textos das 19 comunicações apresentadas.

16.4.08



MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO:
Um poeta em trágico desencontro com a vida

Escreveu poesia entre os 22 e os 25anos, num estilo único, enquanto cultivava uma grande amizade por Fernando Pessoa. Depois suicidou-se. Tanto bastou para marcar de forma indelével a Literatura Portuguesa.

Para quem gosta de análise psicológica, a vida de Mário de Sá-Carneiro é um paradigma: nascido numa família de posses, ficou órfão de mãe aos dois anos. Com o pai quase sempre ausente por razões profissionais, mas materialmente generoso, foi criado por uma velha ama. Havia ordens para que todas as dificuldades fossem aplanadas e o menino cresceu em abundância, preguiça, ignorância das dificuldades da vida. As tentativas frustradas de cursar Direito em Coimbra e depois em Paris revelam a sua absoluta incapacidade para superar dificuldades práticas. Uma hipersensibilidade rara juntou-se ao alheamento da vida real e Mário S-C, acabou por encontrar na Literatura a única via possível para chegar ao mundo exterior.
Mas aqui foi, de facto, único.


O ESTILO POÉTICO

“O motivo central da sua obra é o da crise de personalidade, a inadequação do que sente ao que desejaria sentir” (Hist. da Literat. Portug, A.J.Saraiva e Óscar Lopes) Mas esta carga subjectiva acaba por se assumir como expressão de um mal-estar social e colectivo, prenúncio profético da crise de valores do homem contemporâneo. Por isso a sua poesia, escrita no início do século XX, mantém uma estranha actualidade.
Massaud Moisés, na sua “Literatura Portuguesa” aponta algumas características do estilo deste poeta:

«Poeta sempre e acima de tudo, inclusive nas obras em prosa, Sá-Carneiro plasmou pela primeira vez em Língua Portuguesa realidades até então insuspeitadas. Para tanto violentou a ineficaz e espartilhante gramática tradicional e passou a usar uma sintaxe e um vocabulário novos, que lhe permitissem manipular fórmulas expressivas absolutamente pessoais, plásticas, maleáveis e aptas a surpreender o fluxo das ondas oníricas, o vago, o alucinado, as febres, o incêndio dos sentidos, a desmaterialização das coisas, a materialização das sensações, os sentimentos mais abstrusos e subtis, as sinestesias mais inusitadas, as associações mais inesperadas.» Exemplos: “Mastros quebrados, singro num mar de Ouro / Dormindo fogo, incerto, longemente… / Tudo se me igualou num sonho rente, / E em metade de mim hoje só moro…”
Na época, pela transgressão dos padrões dominantes, esta escrita foi um escândalo, naturalmente circunscrito ao pequeno mundo intelectual português. Mas viria a ter repercussões enormes em toda a nossa Literatura.

OBRA

Figura importante do Modernismo português, Mário de Sá-Carneiro fundou, com Fernando Pessoa, a revista Orpheu, de que saíram apenas dois números. Os suficientes para fazerem vingar o movimento do primeiro modernismo em Portugal, ao qual estiveram também ligados os nomes de Almada Negreiros e Santa-Rita Pintor.
Escreveu: Princípio (1912) – novelas; A Confissão de Lúcio (1913) – novela; Dispersão (1914) – poesia; Céu em Fogo (1915) – 12 novelas; Indícios de Oiro (1937) – poesia; Correspondência, quatro volumes, em 1958, 1977 e 1980. Há diversas edições da “Poesia Completa”. Uma edição boa e barata é a da Ulisseia , col. Biblioteca dos Autores Portuguesas, com um extenso estudo introdutório por Maria Ema Tarracha Ferreira.

Nasceu em Lisboa em 1890; suicidou-se em Paris em 1915

(Escultura do poeta no "Parque dos Poetas", Oeiras)

P O E MA S

QUASE

Um pouco mais de sol – eu era brasa,
Um pouco mais de azul – eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num baixo mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho – ó dor! - quase vivido...

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo... e tudo errou...
- Ai a dor de ser - quase, dor sem fim... –
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...

Momentos de alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei..
.
Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol – vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...

............................................................
............................................................

Um pouco mais de sol – e fora brasa,
Um pouco mais de azul – e fora além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa..
.Se ao menos eu permanecesse aquém...




O Lord

Lord que eu fui de Escócias doutra vida
Hoje arrasta por esta a sua decadência,
Sem brilho e equipagens.
Milord reduzido a viver de imagens,
Pára às montras de jóias de opulência
Nem desejo brumoso – em dúvida iludida...
(- Por isso a minha raiva mal contida,-
Por isso a minha eterna impaciência.)

Olha as Praças, rodeia-as...
Quem sabe se ele outrora
Teve Praças, como esta, e palácios e colunas –
Longas terras, quintas cheias,
Iates pelo mar fora,
Montanhas e lagos, florestas e dunas...

(--- Por isso a sensação em mim fincada há tanto
Dum grande património algures haver perdido;
Por isso o meu desejo astral de luxo desmedido –
E a Cor na minha Obra o que ficou do encanto...)


Além-tédio

Nada me expira já, nada me vive –
Nem a tristeza nem as horas belas.
De as não ter e de nunca vir a tê-las,
Fartam-me até as coisas que não tive.

Como eu quisera, enfim de alma esquecida,
Dormir em paz num leito de hospital...
Cansei dentro de mim, cansei a vida
De tanto a divagar em luz irreal.

Outrora imaginei escalar os céus
À força de ambição e nostalgia,
E doente-de-Novo, fui-me Deus
No grande rastro fulvo que me ardia.

Parti. Mas logo regressei à dor,
Pois tudo me ruiu... Tudo era igual:
A quimera, cingida, era real,
A própria maravilha tinha cor!

Ecoando-me em silêncio, a noite escura
Baixou-me assim na queda sem remédio;
Eu próprio me traguei na profundura,
Me sequei todo, endureci de tédio.
E só me resta hoje uma alegria:
É que, de tão iguais e tão vazios,
Os instantes me esvoam dia a dia
Cada vez mais velozes, mais esguios...

25.3.08

ARTE CONTEMPORÂNEA: INTERROGAÇÕES E EQUÍVOCOS



O centro histórico de Torres Vedras, em volta dos Paços do Concelho, tornou-se lugar de paragem obrigatória. Galeria Municipal, Doispaços, Transforma e Cooperativa de Comunicação e Cultura constituem um núcleo apelativo de contacto com as artes plásticas. Mas estes espaços tornaram-se, também, lugares de incomodidade porque temos dificuldade em entender o que vemos. Chegamos a sentir-nos gozados ou, até, agredidos. E saímos sem resposta para as nossas interrogações.

O título “Gozo” foi, aliás, o que deu o mote a uma instalação de Nuno Vaza, há uns meses atrás, na Cooperativa de Comunicação e Cultura. Uma série de vinte e quatro diapositivos completamente negros, precedidos de uma legenda/aviso – «algumas destas imagens são extremamente chocantes e susceptíveis de ferir a sensibilidade» – pretendia abalar a nossa percepção do mundo, saturado de imagens, numa espécie de acto purificador naquele olhar para coisa nenhuma. Mas esta “provocação” ao público nem era original. Em 1915 já o artista russo Kazimir Malevitch expusera um quadro completamente negro que se anunciava como “a libertação absoluta do olhar”. Talvez Nuno Vaza quisesse fazer uma nova leitura desta ideia. Mas podemos perguntar: conseguiu o que pretendia? Libertou os nossos olhos da tirania da imagem? Ele próprio parece duvidar quando se antecipa e nos diz que aquilo, afinal, é gozo. E nós saímos para a rua com a ideia de que andamos a brincar à arte.


(O quadrado negro de K. Malevitch)

O QUE É ISSO DE ARTE?

Os estudiosos não se cansam de avisar: nós, público, estamos agarrados a ideias feitas, por isso limitamos o nosso entendimento e cristalizamos em preconceitos: a boa pintura é a clássica, de entendimento imediato, a representação da realidade… já aceitamos umas formas abstracta bem desenhadas e bem coloridas, desde que possam condizer com a decoração da sala… O mesmo para a escultura… etc…
E afirmam: essa arte oficial era, tão só, a arte das classes dominantes numa sociedade espartilhada por sujeições e hierarquias.
Mas – lembram eles – o impetuoso movimento da arte moderna, desde o início do século XX, estilhaçou os preconceitos e afirmou uma nova arte. De forma mais ou menos escandalosa os artistas abriram perspectivas ilimitadas - e recordam sempre o urinol que Marcel Duchamp enviou em 1917 para uma exposição de Nova Iork com o título de “Fonte” e que foi, obviamente recusado… Do campo estreito das regras académicas esses artistas libertaram a arte para a criatividade sem barreiras: novos materiais, novas formas, novos espaços. E também novos públicos, consequência da democratização da sociedade, liberta enfim das cadeias dos Antigos Regimes. Todo o século XX foi uma sucessão ininterrupta de inovações, transgressões, invenções, para as quais foram construídos novos museus um pouco por todo o lado. No entanto nós, público, continuamos a interrogar: Arte? Mas que arte é esta?


(Urinol / Fonte, de Marcel Duchamp)



A ARTE CONTEMPORÂNEA

Neste movimento de dessacralização da arte tinha de haver limites. E eles acabaram por ser ultrapassados com as novas expressões artísticas surgidas a partir dos anos 60 do século passado e que os historiadores chamam de “arte contemporânea”. Que limites? Os da própria ideia de arte. E de tal modo assim foi que o célebre urinol de Duchamp acabou por ser entronizado no Centro Georges-Pompidou, – um dos mais prestigiados centro de arte contemporânea! - em Paris, sessenta anos depois, numa retrospectiva sobre o seu autor, já visto como “um clássico”. Fechou-se o círculo e esta arte parece ter caído na sua própria armadilha.
No entanto, esta contradição não destruiu a arte. O que fez foi mudar radicalmente a ideia que temos dela. Não já o espaço solene do Sublime, do Belo, do Transcendente, das grandes propostas ideológicas, das visões redentoras. A arte dos nossos dias tornou-se a arte da vida, e a vida foi transformada em arte. O criador da obra espera do público uma participação activa que o leve não só a olhar mas, sobretudo, a VER. Operação muitas vezes impossível porque o autor disfarça o código de decifração, num jogo de escondidas que exaspera o público mas motiva os críticos de arte para leituras que só os entendidos percebem.
O móbil do acto artístico passou a assumir formas cada vez mais variadas e, não raro, delirantes. Provocar o público parece ser a mais imediata mas ela esconde muito mais, o que exige a nossa perspicácia e disponibilidade total. Surgiram infinitas expressões de arte que os historiadores já catalogaram, na ânsia de encontrar sentidos, linhas de rumo, enquadramento para a sua compreensão: “arte conceptual”, “arte bruta”, “arte povera”, “body art”, “pop art”, “ready made”, “arte cinética”, “novo realismo”…etc…



A MERCANTILIZAÇÃO DA ARTE

Neste jogo de espelhos autor/público em que se tornou a arte contemporânea, um fenómeno ganhou enormes proporções: a transformação da arte em objecto de investimento. A colecção Berardo é um exemplo típico. Um homem medianamente inculto mas invulgarmente esperto percebeu o mecanismo e jogou a fundo nele. Rodeou-se de conhecedores, especialistas em perceber os sentidos das modas artísticas, e foi comprando obras de arte. Reuniu uma numerosa colecção e propôs ao Estado um negócio de milhões: exposição no Centro Cultural de Belém e posterior aquisição por uma quantia astronómica.
Somos tentados a leituras redutoras deste fenómeno, que nos levariam a considerar a arte como vítima da engrenagem capitalista. Mas, tal como o lucro dos bancos, que denunciamos incansavelmente sem vermos que eles se devem também à nossa excessiva dependência deles…a transformação da arte em valor de investimento é o resultado da sociedade em que vivemos. Tudo aquilo a que se reconhece valor – mesmo espiritual – transforma-se em dinheiro. Veja-se o fenómeno do santuário de Fátima, por exemplo… Como poderia a arte subtrair-se a esta tendência?




(Milionário e amante da arte!)


(in)CITAÇÕES

“Todo o objecto artístico tem uma razão de ser. Mais trivial ou mais séria, só o seu criador a conhece. O público, na contemplação da obra, desespera em busca da sua razão de ser: «O que é que isto quer dizer? O que significa?». O público não sabe olhar apenas, simplesmente olhar. Precisa sempre de razões, racionalizações, explicações…
Nós, artistas, não temos de explicar. O público deve aprender a olhar, a deixar-se penetrar, a sonhar, a pensar, a divagar, a especular. É para isso que serve a arte, só para isso…”

(Osvaldo de Andrade, artista plástico brasileiro)

“Há uma ânsia dos artistas em surpreender pela novidade absoluta. Cada artista procura a forma mais ousada, mais chocante. Os críticos de arte definem modas, promovem amigos e conhecidos, influenciam as cotações dos mercados da arte, ganham comissões…A arte actual é, em grande parte, um mundo de alianças manhosas em que cada um tenta chegar-se o mais à frente possível, na mira de atingir a glória: ser reconhecido como um bom investimento, passar às caves dos bancos, tornar-se reserva artística que um dia verá a glória num leilão de arte, em que milionários pedantes disputam quinquilharias em lances de milhares de euros. Eis o que é a grande arte contemporânea!”
( Evan Shipman, marchand de arte na ARCO de Madrid, 2006 )

«Enquanto a arte moderna havia provocado rupturas, a arte contemporânea empenha-se, pelo contrário, em reatar a ligação entre a arte e o público.
A corrida pelo progresso das vanguardas terminou e, num tempo suspenso, cada obra aplica a sua própria perspectiva e cada espectador torna-se num ponto de referência. De onde um campo artístico que se alarga cada vez mais, mas que se vê, também, cada vez mais atomizado.»
(A Arte Contemporânea, Catherine Millet, Ed. Inst. Piaget, )



(Escultura de João Castro Silva, Galeria Municipal de Torres Vedras, 23 Fev a 5 de Abr )

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CONCLUSÃO PARADOXAL: quando se fala em arte apenas podemos interrogar e nada concluir. Porque a arte não serve para concluir mas para iniciar.


NOTA FINAL: uma palavra de apreço aos responsáveis pelas Galerias de Arte que referimos no início. O seu bom trabalho tem-nos proporcionado experiências muito enriquecedoras e motivam-nos para novas visitas.