19.5.09

PEDRO TAMEN E A SUA OFICINA DE PALAVRAS



PEDRO TAMEN: 50 ANOS DE TRABALHO POÉTICO

Toda a vida tem trabalhado com as palavras. Formado em Direito, foi jornalista, professor, director da Editora Moraes, colaborador da revista “O Tempo e O Modo”, administrador da Gulbenkian. Sempre escreveu e publicou poesia, reunida sob o título “Retábulo das Matérias”. É um dos nossos melhores tradutores, numa actividade que ele considera um exercício mental necessário para apurar a escrita própria – quando se reformou, em 2002, lançou-se à tradução do esplendoroso romance em sete volumes, de Marcel Proust, “Em Busca do Tempo Perdido, um trabalho que veio a ser reconhecido como de altíssima qualidade.
Em cinquenta anos de criação poética Pedro Tamen conseguiu uma enorme variedade e diversidade de temas, de ritmos e de processos. Há quem o acuse de escrever uma “poesia difícil”, mas essa é uma acusação comum a todas as grandes realizações literárias, como o sabem os leitores mais atentos. A qualidade normalmente é exigente, pede disponibilidade e não se dá com o preconceito. A recompensa vem depois, quando as cortinas do nosso entendimento se entreabrem para espaços inesperadamente luminosos. Pegue o leitor nos escritos deste grande poeta contemporâneo e veja lá se não temos razão.


POESIA: PODE ISTO INTERESSAR A ALGUÉM?

Percebo a tua dúvida, meu amigo! Nos tempos que correm parece uma futilidade falar/escrever sobre poesia, ainda para mais numa página de jornal… Quando há desemprego, criminalidade, medicamentos caros e pensões baratas, a grande crise!
Mas é por isso mesmo! Calma, não se trata de “trazer a beleza das palavras à fealdade da vida”, porque poesia não é isso, não é fugir para as nuvens, escolher o sonho, pairar sobre a realidade.
A verdade é que a linguagem nunca foi tão importante como é hoje, porque nunca tantos tiveram tanto acesso a ela, como hoje. É esta evidência que torna a arte poética cada vez mais actual e necessária. Perguntas porquê? Repara: os políticos, os professores, os advogados, os profissionais da publicidade, os jornalistas, os escritores, os ministros da religião, todos fazem da linguagem o grande veículo que une ou desune os homens. Ora a poesia é a realização mais avançada da linguagem humana porque explora todas as suas potencialidades: sentidos, sons, ritmos, ambiguidade, rigor, experimentalismo, transgressão. As grandes realizações de uma língua são as dos poetas que usam a palavra em toda a sua dimensão humana e a elevam à condição de arte.
Já vês porque insisto em trazer a poesia para aqui. Ler os poetas, mergulhar na complexidade dos seus versos, deixar-se conduzir pelas múltiplas veredas dos sentidos que nos propõem, descobrir ressonâncias interiores que nos sugerem, eis a aventura que melhor nos prepara para o entendimento do mundo em que vivemos.



POESIA DE PEDRO TAMEN:


“Escrevo com a volúpia de esquadrinhar os múltiplos sentidos de cada palavra, do ponto de vista sonoro e semântico”

1.
Adiro à tua mão como ter nome,
como ter medo e osso de ser homem.
Nas noites, essas luzes que me comem
são os olhos fechados desta fome.

Alicio a cidade como em jura,
ou exorcismo, ou esbracejar quieto.
Respiras baixo e tomas-me desperto
dos anos de silêncio e de secura.

Quando não falas falas, e conheces
as palavras que digo e não digo.
No teu gesto de lar em que me aqueces

são as ilhas achadas; e prossigo
a viagem sozinho, em que te esqueces
de mim, amor, teu nado-vivo amigo.

2.
Formado em direito e solidão,
às escuras te busco enquanto a chuva brilha.
É verdade que olhas, é verdade que dizes.
Que todos temos medo e água pura.

A que deuses te devo, se te devo,
que espanto é este, se há razão para ele?
Como te busco então se estás aqui,
ou, se não estás, porque te quero tida?
Quais olhos e qual noite?
Aquela
em que estiveste por me dizeres o nome.

3.
Por me dizeres o nome nascem fontes
noutro lugar do dia e verdadeiro.

E as ilhas são irmos para elas,
são montes de silêncio e liberdade
que levamos na boca e em segredo
nos nossos dedos cegos e cientes.

No fundo, não procuro nem procuras;
é na viagem mesma que nos temos.


BOCAGE

Já não sou. Já não serei
se fui. Agora à cova
além dos ossos e caroços
muito mais descerá..
O verso, o riso, o vinho,
a mão ladina sobre a carne morna,
tantas coisas sentidas, ressentidas,
intenções, bolandas, entreactos,
entradas por saídas, choros finos:
muito mais descerá.

Não sou, é certo, e não serei,
mas no descer de tudo
já nem fui.



OS NAUTAS

Quando até sobre o tarde navegavam

a luz que dentro vinha sobrepunha

a lantejoula aguda de outro sol

ao passo opaco, idêntico, cercando

os braços intranquilos, a surpresa

que só de pressentida lhes doía.


Ao frio sal que sob os pés sentiam

e à escuridão mais fundo, ao sonolento

e bruto som da corda e da madeira,

às dores de fome e ao gemido fraco

duma saudade parda, à solidão

sem espelho, à gula insaciada, ao medo


— a tudo combatia uma paixão

neles tão nova, nevoenta outrora,

qual a de ver, de ver de olhos abertos

até sentir no roçagar dos dedos,

a mínima paisagem, mais total

que os montes lerdos, pátrios e trocados:



a crispação da vela, o peixe lento

de súbito surgindo, ignotas flores,

cores purulentas, vasto e escasso espaço

para estrídulos pássaros abertos

e outra vida mor,e ainda bruma

que não sabem se é deste ou doutro sonho.

8.5.09

LUGAR ONDE - ABRIL 2009


VALEU A PENA?
Carta a um jovem da geração traída *

Pego no teu livro, meu caro Luís, e sinto a boca seca apesar da leitura silenciosa que faço dos teus versos: “Sou apenas mais um daqueles / de quem se poderá dizer /que pertencem / a uma geração traída.”Vi-te crescer por entre os nossos comícios e sessões de esclarecimento, as eleições primeiras para essa novidade absoluta que eram as autarquias nas mãos do povo ou as intermináveis reuniões das comissões de moradores. Tínhamos a ilusão de construir um mundo novo sobre as ruínas de um Estado Velho que nos empurrara para o beco do «orgulhosamente sós» da guerra colonial, esse absurdo histórico. Provavelmente não nos preocupámos muito contigo, ocupados que estávamos em te garantir a herança de um país bem diferente, radicalmente melhor, onde tu fosses, finalmente, feliz!Mas, trinta e cinco anos depois, leio o teu profundo desencanto:«E aqui onde me encontro, / onde nos encontramos, / eu e a minha geração, / sabemos agora que tudo isso valeu nada / porque sentimos / exactamente / as mesmas dores / as mesmas balas / mas em forma de / desemprego / salário mínimo nacional / emprego desqualificado / & etc e tal.»Procuro consolar-te com a LIBERDADE em que vives, que nós não tínhamos antes daquele ano de 1974. E recebo em pleno rosto o teu desabafo, irónico e tão doloroso:«Fizeram-nos infelizes / ou felizes sem razão / fizeram-nos fanáticos da bola / ignorantes da filosofia / sem partido / sem religião / sem entrada / e / sem saída profissional. / Agora casamo-nos / e divorciamo-nos/ rapidamente. // Tudo é uma questão / de margem de lucro.»Deixa-me que te diga, meu jovem Luís: nós não traímos a tua geração! Naqueles anos 74/75, acreditámos ingenuamente num futuro melhor para nós e para ti. Não sabíamos ainda que os exércitos marcham à velocidade dos mais lentos ou dos mais manhosos e calculistas. Os capitães que partiram as grades não quiseram parecer interesseiros e entregaram as chaves aos velhos carcereiros. E agora, que é de novo madrugada e o calendário diz que passam 35 anos depois daquele memorável 25, vemos passar na rua um jaime general enquanto todos os salgueiros maias vivem em presídios bolorentos. Os chefes desta república bebem, outra vez, o sangue fresco da manada e o povo, desiludido, deixou de gritar que “jamais será vencido”.Sim, Luís, ainda há quem acredite que o 25 de Abril valeu a pena. Mas muitos limitam-se a verificar que ganharam a liberdade mas perderam a segurança – trucidados pela eterna oposição entre esses dois pólos da vida humana!Agora, que se faz tarde para mim, quero acreditar em ti e na tua geração. Que vocês não vão ficar aí parados a gemer queixumes. Que têm uma palavra a dizer, uma carta a jogar, um país a refazer. Eu sei que não são fáceis as madrugadas redentoras. Mas ainda acredito, ainda acredito. Porque sem esperança a História é uma engrenagem sem sentido.
* A partir do livro A Cabeça de Fernando Pessoa, de Luís Filipe Cristóvão. O autor nasceu em 1979. Edição Ardósia, S/L, 2009.
Cartaz de Sebastião Rodrigues, 1977




O REI DE ÍTACA

A civilização em que estamos é tão errada que
Nela o pensamento se desligou da mão
Ulisses, rei de Ítaca, carpinteirou seu barco
E gabava-se também de saber conduzir
Num campo a direito o sulco do arado.




REVOLUÇÃO - DESCOBRIMENTO

Revolução isto é: descobrimento
Mundo recomeçado a partir da praia pura
Como poema a partir da página em branco
- Catarsis emergir verdade exposta
Tempo terrestre a perguntar seu rosto.




25 DE ABRIL

Esta é a madrugada que eu esperava
o dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substãncia do tempo.



OS ERROS
A confusão a fraude, os erros cometidos
A transparência perdida - o grito
Que não conseguiu atravessar o opaco
O limiar e o linear perdidos.

Deverá tudo passar a ser passado
Como projecto falhado e abandonado
Como papel que se atira ao cesto
Como abismo fracasso na esperança
Ou poderemos enfrentar e superar
Recomeçar a partir da página em branco
Como escrita de poema obstinado?

POEMAS DE SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESSEN, 1974/75