24.3.13

LUGAR ONDE - Jornal BADALADAS - nº 128 - 22 MARÇO 2013




DOR E DESESPERANÇA

ONDE ESTÃO OS ESCRITORES DO MEU PAÍS?

O poeta e ensaísta Eduardo Pitta interrogava há dias o que pensam e o que fazem os nossos escritores contemporâneos em relação ao momento político que vivemos. "Que pensam da falácia europeia, do desemprego sem freio, do empobrecimento geral..."? - Lançava ele na revista LER de Março 2013. Estranhava o alheamento de tantos nomes conhecidos das Letras, nossos contemporâneos, e recordava os das gerações precedentes que deram testemunho de insubmissão: Aquilino Ribeiro, José Gomes Ferreira, Miguel Torga, Sophia de Mello Breyner, Natália Correia, Urbano Tavares Rodrigues, muitos outros ( Daniel Filipe, Carlos de Oliveira, Manuel Alegre, Alexandre O’Neill...) Escritores que, antes de 1974, davam a cara, tomavam posição, tinham lugar na luta pela dignificação do homem. E eram presos, respondiam em tribunais políticos.

Perguntas pertinentes. Parece que os autores, agora, preferem resguardar-se, não se comprometem. Procuram safar-se, vender. Aparecem nos Encontros de escritores e cultivam a glória do texto mais original que marque posição no campeonato dos famosos. Há que aparecer, escrever no Jornal de Letras, na Ler e na Actual, fazer parte de júris. Narcisos literários, alheados do sentir colectivo.

Já no final, Eduardo Pitta,  prevendo dias negros em que os desempregados virão finalmente para a rua, concluía: "Nesse dia ninguém vai querer saber do sexo dos anjos para nada".

Hoje, tempo de dor sem esperança, regressemos aos poetas que não calam.




Roga por nós, ó pátria, ó sonho sem fronteira!
por nós a quem recusam a alegria,
a liberdade, o pão de cada dia,
a vida verdadeira!

Ó pátria, canta! Do teu presepe imaginário
ergue a voz dulcíssima, magoada,
e estilhaça de -esperança as paredes do aquário,
ó pacífica pomba engaiolada!

Contigo iremos pela noite fora,
cantando «Erguendo rútilas bandeiras
por sobre aldeias, campos, sementeiras,
como os arcanjos portadores da aurora».
Daniel Filipe,
Pátria, Lugar de Exílio, 4ª Canção


*

SONETO

Acusam-me de mágoa e desalento,
como se toda a pena dos meus versos
não fosse carne vossa, homens dispersos,
e a minha dor a tua, pensamento.

Hei-de cantar-vos a beleza de um dia,
quando a luz que não nego abrir o escuro
da noite que nos cerca como um muro,
e chegares a teus reinos, alegria.

Entretanto, deixai que me não cale:
até que o muro fenda, a treva estale,
seja a tristeza o vinho da vingança.

A minha voz de morte é a voz da luta:
se quem confia a própria dor perscruta,
maior glória tem em ter esperança.

Carlos de Oliveira


*

URNA ÁUREA


Ó Pátria amada minha misteriosa
que da Europa és a esfinge! És o rebate
de uma última pedra preciosa
ou és cedo demais num tempo acre?

Sempre em tua estação de desditosa
deste mirtos em campos de vinagre.
Dá-nos consolação ó nebulosa!
sepultada no ovo do milagre.

Serás morte? serás a comovente
despedida do Anjo do Ocidente
que a flor perdeu anunciando balas?

Nas quinas és a urna de um segredo:
guardas a noite? o dia? és tarde? és cedo?
Louca e triste, ó Mãe, porque te calas?

Natália Correia
Epístola aos iamitas, Urna Áurea


* * *

A CORAGEM DE SOPHIA





“Não é possível distinguir a poeta da cidadã. Sophia de Mello Breyner foi exemplarmente as duas coisas. E a coragem foi uma das marcas do seu percurso humano” (Guilherme de Oliveira Martins).
Quando, nos convívios clandestinos, a resistência cantava “Vemos, ouvimos e lemos / não podemos ignorar” – eram de Sophia esses versos. A poesia não se refugiava na torre de marfim. 

(O Nome das Coisas, 1972):

 (…)
Sei que seria possível construir a forma justa
De uma cidade humana que fosse
Fiel à perfeição do universo

Por isso recomeço sem cessar
a partir da página em branco
E este é meu ofício de poeta
para a reconstrução do mundo

A voz de Sophia prolonga a de Camões na denúncia do “vil interesse e sede imiga / do dinheiro que a tudo nos obriga” (VIII,96) e dos que não hesitam “Por contentar o Rei no ofício novo / a despir e roubar o pobre povo”(VII, 85). Voz que ressoa nestes versos bem explícitos:


Nestes últimos tempos é certo a esquerda fez erros
Caiu em desmandos confusões praticou injustiças

Mas que diremos da longa tenebrosa e perita
Degradação das coisas que a direita pratica?

Que diremos do lixo do seu luxo — de seu
Viscoso gozo da nata da vida — que diremos
De sua feroz ganância e fria possessão?

Que diremos de sua sábia e tácita injustiça
Que diremos de seus conluios e negócios
E do utilitário uso dos seus ócios?

Que diremos de suas máscaras álibis e pretextos
De suas fintas labirintos e contextos?

Nestes últimos tempos é certo a esquerda muita vez
Desfigurou as linhas do seu rosto

Mas que diremos da meticulosa eficaz expedita
Degradação da vida que a direita pratica?
             Julho de 1976


 ***

1968: Sophia visita a prisão política de Caxias e disso deixou testemunho:


CAXIAS 68

Luz recortada nesta manhã fria
Muros e portões chave a pós chave
O meu amor por ti é fundo e grave
Confirmado nas grades deste dia


***

Os poetas, os escritores do meu país, calam a desgraça, 
já não semeiam "trovas no vento que passa", já não dizem NÃO!
Porquê?

[Fotos da net]


23.3.13

ADEUS A ÓSCAR LOPES






Aprendi Literatura Portuguesa nos seus escritos, nomeadamente na HISTÓRIA DA LITERATURA PORTUGUESA (que escreveu em co-autoria com António José Saraiva e que já vai em 20 edições), ainda hoje de consulta imprescindível.

Ver aqui:
http://portugaldospequeninos.blogs.sapo.pt/3372492.html

Uma entrevista muito interessante, para melhor se conhecer quem era Óascar Lopes:
http://www.publico.pt/cultura/noticia/testemunhas-do-seculo-portugues-o-comunista-que-continua-a-acreditar-na-revolucao-1588782

Depoimento de Carlos Reis:
http://www.publico.pt/cultura/noticia/sobre-oscar-lopes-1588789




16.3.13


Foto J Moedas Duarte, Castelo de Vide, 2012


CROMO

Esta janela dá
para coisa nenhuma.
Não é janela, é vago
orifício na bruma.

Orifício por onde
se alicerça de espuma
a líquida vereda
que vai a parte alguma.

E onde aflora a paisagem
certa voz matutina,
que se quebra de espanto
feita coisa, dor fina.

E como dor resvala
e, dócil, se insinua
entre a camisa leve
e a pele do Poeta, nua.

Daniel Filipe
Pátria, Lugar de Exílio,
Ed. Presença
Vila da Feira, 1974

13.3.13

LIÇÃO DO "C"



O meu quarto de miúdo, em Alpiarça, era interior. A luz vinha de uma fresta no forro do tecto, por baixo de uma telha de vidro. Entende-se pois o fascínio desta gravura do livro de leitura da 1ª Classe. Eu não podia ver o nascer do sol, nem os galos que ouvia cantar nos quintais vizinhos.
Acordava e só via paredes e um pouco acima o pequeno rasgão de luz frouxa por onde nunca passava o sol.
Que inveja eu tinha de ti, ó Cândido!

11.3.13

SEXO, ANJOS E NARCISOS: PERGUNTAS PERTINENTES.


                                       


Eduardo Pitta é poeta e ensaísta. Escreve em jornais e revistas. Tem o blogue DA LITERATURA
Da LER deste mês anoto as interrogações que deixou no seu espaço HETERODOXIAS: o que pensam e o que fazem os nossos escritores contemporâneos em relação ao momento político que vivemos? "Que pensam da falácia europeia, do desemprego sem freio, do empobrecimento geral..."?

Nomes como Rui Cardoso Martins, Gonçalo M. Tavares, Valter Hugo Mãe, João Tordo, José Luís Peixoto, muitos outros: qual o seu lugar como cidadãos?

Eduardo Pitta recorda José Gomes Ferreira, Miguel Torga, Virgílio Ferreira, Sophia de Mello Breyner, Natália Correia, Urbano Tavares Rodrigues, muitos outros. Escritores que, antes de 1974, davam a cara, tomavam posição, tinham lugar na luta pela dignificação do homem. E eram presos, respondiam em tribunais políticos.

Perguntas pertinentes, sim. Actualmente os autores refugiam-se, resguardam-se. Procuram safar-se, vender. Aparecem nos Encontros de escritores e a sua preocupação é encontrar o texto original que marque posição no campeonato dos mais famosos.
Aparecer, escrever no JL, na Ler e na Actual, fazer parte de júris literários. Narcisos literários, alheados do sentir colectivo.

Eduardo Pitta prevê dias negros em que os desempregados venham finalmente para a rua. E conclui: "Nesse dia ninguém vai querer saber do sexo dos anjos para nada".

10.3.13

MALANDRAGENS



Helder Macedo é tema de capa da LER de Março 2013.
Ler de fio a pavio, é claro.

H. Macedo gosta de malandrices. Para além de fumar que nem um cavalo ( dos que fumam...)acha que Camões é "o malandro maior da literatura portuguesa" - está na capa e vem lá dentro, na entrevista feita pela Ana Sousa Dias.

Concordo em parte - acho que o Bocage era ainda mais..
Já nos meus idos do Liceu de Santarém o professor Brás ( Reis Brasil, pseudónimo literário) esfalfava-se a explicar que era uma patetice falar em amor platónico em Camões. "Qual platónico! Ele era pelo amor puro, isto é, amor inteiro, o que supõe também a carne!"
E lembrava que Camões o diz no episódio da morte de Inês de Castro:

" Tu, só tu, puro Amor, com força crua
Que os corações humanos tanto obriga,
Deste causa à molesta morte sua, "

O puro Amor de Inês dera-lhe três filhos de Pedro, como bem lembrava o bom do dr. Brás.

Volto ao Helder Macedo. Diz ele que há versos de Camões que roçam a obscenidade:


“O Ca­mões é o malandro maior da literatura portuguesa. Basta ler aquilo que até há pouco tempo - e eu escre­vi bastante sobre isso - as pessoas rejeitavam como sendo o Camões que não interessa, as Cartas que são de uma hilariante obscenidade e perfeitamente ex­traordinárias. A maneira como ele descreve a vida de Lisboa, com uma crítica social acérrima, e não apenas quando fala da vida boémia dos prostíbulos que ele frequentava ativamente, chamando aliás às prostitu­tas, porque estavam à janela, as «ninfas de água doce». E muita da poesia lírica, mesmo nos sonetos mas sobretudo nas redondilhas, há poemas que, se des­codificamos, são profundamente obscenos. Há um exemplo extraordinário que parece a coisa mais inocente do mundo. Orgulho-me de ter sido a primei­ra pessoa que entendeu o significado da redondilha: o mote é «Quem disser que a barca pende, dir-lhe-ei, mana, que mente». E as voltas - «esta barca é de car­reira, tem seus aparelhos novos, boa de leme e veleira». Quando descodificamos, a barca é fálica e a água é a coisa feminina. É um poema de alta propaganda da sua virilidade. Traduzindo isto em linguagem corren­te, é obsceno em extremo e, assim, é lindo.
(…)
Num poema feito por ele, é uma obscenidade radiosa e nada negativa. Traduzido em linguagem de rua, aí os pudicos e as pudicas ofendiam-se muito. Assim, dizem «cena misteriosa à beira de um rio». São aqueles exe­getas tradicionais do Camões (…)”


Ops! Interessante!
Que versos são esses?



Mote
Quem disser que a barca pende
Dir-lhe-ei, mana, que mente.

Voltas

Se vos quereis embarcar
— E pera isso estais no cais —
Entrai logo. Que tardais?
Olhai que está praia-mar:
E se outrem, por vos fretar,
Vos disser que esta que pende,
Dir-lhe-ei, mana, que mente.

Esta barca é de carreira,
Tem seus aparelhos novos;
Não há como ela outra em povos,
Boa de leme e veleira.
Mas se, por ser a primeira,
Vos disser alguém que pende,
Dir-lhe-ei, mana, que mente.

Luís de Camões
OBRA COMPLETA, Redondilhas



Quem sou eu para contestar Helder Macedo, professor catedrático de Estudos Portugueses durante 33 anos no King's Colledge?
Sempre a aprender!