29.3.09

MIA COUTO




[Página LUGAR ONDE, jornal Badaladas, 20 de Março de 2009)

ESCREVIVÊNCIAS NA FRONTEIRA DE DOIS MUNDOS


O que se nota numa primeira leitura de Mia Couto é a capacidade para inventar ou adaptar palavras. Efeito de surpresa que é depois suplantado pela descoberta da sua mestria em contar histórias. Contudo, estas impressões iniciais não explicam, só por si, a extraordinária projecção de Mia Couto como escritor.
O que o torna um grande escritor da Língua Portuguesa, para além das características apontadas, é o que poderemos chamar a sua “escrevivência”: Mia Couto exprime admiravelmente pela palavra a situação original de um branco, filho de portugueses, que nasceu em África e fez dela seu berço, sua pátria e seu destino. Para o bem e para o mal. Primeiro como militante da Frelimo quando havia PIDE e guerra colonial; depois como construtor da independência na Cultura e na Ciência. Na escrita percebeu desde cedo que o caminho teria de ser o da inovação, na rota do que já faziam grandes escritores brasileiros como Guimarães Rosa e Graciliano Ramos ou Luandino Vieira em Angola. Inovação que significa “necessidade de desarranjar aquela norma gramatical, para deixar passar aquilo que era a luz de Moçambique, uma cultura de raiz africana” (entrevista à revista brasileira ISTOÉ, 2007).
Noutra ocasião Mia Couto afirmou:”A escrita que eu faço está na fronteira entre a prosa e a poesia. A poesia, mais do que uma técnica da escrita, mais do que um género literário, é uma visão do mundo, para mim é uma filosofia.” (Revista LER, Verão 2002). Ora, a poesia - sabemo-lo bem - transgride e supera, transforma e recria, é veículo privilegiado para o novo e o indizível. É na superação destas fronteiras – Europa / África; prosa / poesia - que se plasma a sua obra. Tão importante como o que se diz, é o modo de o dizer, pelo que não se pode usar o Português clássico como veículo de culturas tão diferentes. Há que o recriar e nisso a Língua de Camões mostra uma versatilidade espantosa. A comprová-lo, mais ma vez, aí está a obra fulgurante de Mia Couto.



PERCURSO

Filho de pais portugueses que fizeram vida em Moçambique, Mia Couto nasceu, vive e trabalha naquele território, sua pátria na luta que partilhou pela libertação e na construção do novo país independente. Foi jornalista. Formado em Biologia, dedica-se a projectos de defesa ecológica e preservação dos últimos santuários naturais daquele país. Escritor, está traduzido em diversas línguas. Entre outros prémios e distinções, foi galardoado, pelo conjunto da sua obra, com o Prémio Virgílio Ferreira; e com o Prémio União Latina de Literaturas Românicas, em 2007. Ainda nesse ano recebeu o Prémio Passo Fundo Zaffari & Bourbon de Literatura. Foi escolhido para ocupar, como Sócio Correspondente, a Cadeira nº 5 da Academia Brasileira de Letras.
Mia Couto tem 22 títulos publicados, abarcando poesia, crónica, contos e romance. Terra Sonâmbula, 9ª ed. em 2008, é considerada um dos 12 melhores livros africanos do século XX. Outros títulos conhecidos: Vozes Anoitecidas; Cada Homem é uma Raça; Estórias Abensonhadas; A Varanda do Frangipani; Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra; O Outro Pé da Sereia;Raiz de Orvalho e Outros Poemas; Venenos de Deus, Remédios do Diabo.

MIA COUTO POR ELE MESMO

«Não sou niilista, acredito que as respostas para os assuntos sérios podem ser encontradas também naquilo que faço nos meus livros, nesta brincriação, neste desafio aos sistemas de pensamento que até agora usámos e pelos quais fomos usados. Temos que inventar outros sistemas de pensar, autorizarmo-nos a pensar em poesia. Aquilo que faço é também a experimentação do próprio pensamento, dos modelos de pensamento, é uma ligação a esses universos para os quais não existe idioma. Para dar expressão a esses universos invisíveis é preciso criar mais do que palavras, é preciso criar um outro idioma.» [Entrevista ao jornal PÚBLICO, 15 Junho 1996]

SONO COLOQUIAL


Da velhice
sempre invejei
o adormecer
no meio da conversa.

Esse descer de pálpebra
não é nem idade nem cansaço

Fazer da palavra um embalo
é o mais puro e apurado
senso da poesia.

(Do livro
“Idades/cidades/divindades”, 2007)

[Entrevista à revista brasileira, 26 Julho 2007]

Revista ISTOÉ – Quando e por que começou a inventar palavras? Couto – É uma coisa que me acontece, meus pais sempre lembram disso, desde menino – uma certa desobediência em relação àquilo que era norma. Começa pelo meu próprio nome. Nasci António e, quando tinha dois anos e meio, decidi que queria me chamar Mia, pela relação de afecto que tinha com os gatos. Eu pensava que era um deles (risos). Mais tarde, a poesia foi uma escola de desobediência, de transgressão. E havia uma outra condição: o português de Moçambique, sendo o mesmo do de Portugal, não fala àquela cultura. Senti desde sempre a necessidade de desarranjar aquela norma gramatical, para deixar passar aquilo que era a luz de Moçambique, uma cultura de raiz africana. A descoberta dos escritores brasileiros foi uma felicidade imensa para mim, pois eles já estavam fazendo isso: usando a língua portuguesa, mas com uma outra marca cultural.


O FORASTEIRO

«Era um lugar que ficava para além de todas as viagens. Por ali só o vento passeava, aguamente. Naquele solitário chão há muito que o tempo envelhecera, avô de outroras.
Certa vez, porém, passou por ali um forasteiro. Era homem sem retrato nem versões. Se muito chegou, mais ficou. Todos receavam o medonhável intruso, o irreputado intromissionário. Nos olhos dele, em verdade, não aparecia nenhuma alma, parecia o cego espreitando fora das órbitas.
Quando as tardes se inclinavam, ele se aproximava da aldeia em busca de coisa que só ele sabia. Os aldeantes se perguntavam:
- Mas esse homem: de onde veio, quem é o nome dele?
Ninguém sabia. Ele aparecera sem notícia. Chegara em Fevereiro, disso se lembravam. O mês já se molhava, de água plantada. O estranho trazia um cão, seus passos se uniam um a dois. Homem e bicho multipingavam. Foram atravessando a terra matopada mas quando mais iam menos se afastavam. Quando desapareceram, além-árvores, a chuva parou, em súbito desmaio. Todos entenderam, todos se inquietaram.» (…)
[ Início do conto “A lenda da noiva e do forasteiro”, do livro Cada Homem é Uma Raça]