23.2.13

Zeca Afonso - Quanto é doce



Saudades de Zeca Afonso. Hoje, 26 anos depois da sua morte ( 23 Fev 1987).
Imortal nas baladas que nos deixou.

16.2.13

AQUILINO, ESSA GRANDE CASA LITERÁRIA


Revisitar Aquilino, sempre! Nem que seja sob pretexto - e é o caso, duas datas redondas para lembrar: 50 anos da sua morte, 100 anos do primeiro livro.
Lucinda Canelas, no PÚBLICO de ontem, ajuda-nos a lembrar: 

«Conferências, jantares e tertúlias marcam os 50 anos da morte de Aquilino Ribeiro. Um escritor gourmet que só sabia ser livre
Lucinda Canelas



La Closerie des Lilas era ponto de paragem obrigatória para artistas e poetas. Era neste café de Montparnasse que estabelecera a sua reputação com Émile Zola, Paul Cézanne e Théophile Gautier no final do século XIX que Aquilino Ribeiro parava muitas vezes no seu primeiro exílio parisiense. Tinha 23 anos e, como não era ainda casado, "o seu coração podia pertencer a muitas mulheres", diz Luís Machado, o escritor que coordena o programa que marca os 50 anos da morte do autor de Terras do Demo e d"O Malhadinhas. "Ao lado do café havia um espaço de bailes populares, os artistas andavam por ali, Lenine jogava lá xadrez e é até possível que Aquilino o tenha conhecido. Mas não sabemos ao certo."

Conferências, tertúlias e percursos inspirados na vida e nos livros de Aquilino Ribeiro (1885-1963) é o que propõe a Associação Portuguesa de Escritores (APE) para que este aniversário - que coincide com o centenário do seu primeiro título publicado, Jardim das Tormentas - se transforme numa oportunidade para divulgar a obra deste homem livre.

"Aquilino está injustamente esquecido, apesar das reedições a conta-gotas", garantiu ontem Luís Machado, na conferência de apresentação do programa, referindo-se a uma extensa bibliografia (mais de 100 títulos, 69 editados em vida) que abrange vários géneros, do romance ao ensaio, passando pela novela, o teatro e a narrativa histórica. "Conhecê-la é acompanhar um republicano, revolucionário e amante da liberdade. É conhecer um homem profundamente independente que combateu todas as ditaduras" - a de João Franco na monarquia, a de Sidónio Pais na I República e, claro, a de Salazar com o Estado Novo - e que, por causa disso, foi perseguido, preso e exilado.

São precisamente os exílios do escritor que Alfredo Caldeira, Fernando Rosas, José Manuel Mendes e Mário Cláudio vão explorar a 19 de Março, na Assembleia da República, em Lisboa, no segundo momento de uma homenagem que começa a 25 de Fevereiro com Aquilino - O Homem e o Escritor, encontro que leva ao Panteão Nacional, onde está sepultado, vários especialistas na sua obra.

Homem de convicções fortes que deixou para trás o seminário para se tornar jornalista, Aquilino teve um vida cheia de aventuras, que incluiu guardar dinamite que viria a explodir no seu quarto, duas fugas da prisão, anos de exílio e temporadas na clandestinidade, escondido na Beira e no Minho, territórios que conhecia bem e cujas paisagens descreve demoradamente em muitos dos seus livros.

É pelas terras do autor de O Romance da Raposa e Quando os Lobos Uivam, cuja circulação foi proibida pelo Estado Novo, que passam dois dos itinerários que o programa da APE propõe a 20 e 21 de Abril. O primeiro, guiado pelo jornalista Henrique Monteiro, tem Terras do Demo por referência, o segundo, com o escritor Mário Cláudio, passa por um dos seus romances mais populares, A Casa Grande de Romarigães.


É neste livro, centrado no dia-a-dia de um solar do Minho e em todo o ambiente rural que o rodeia, que Aquilino faz algumas das suas mais pormenorizadas referências à gastronomia tradicional portuguesa. "Aquilino é um perfeito gourmet", diz Luís Machado. "N"A Casa Grande..., onde aliás ele viveu [pertencia ao antigo Presidente Bernardino Machado, cuja filha viria a casar com o escritor], ele fala muito de gastronomia, explica os pratos, diz como e quando se devem comer."

É o interesse por gastronomia que está por trás de outro dos momentos do programa: a 27 de Maio, no Café Martinho da Arcada, em Lisboa, António Valdemar e Luís Machado conduzem um jantar cuja ementa será inspirada na obra do escritor. "Ainda não decidimos o que vamos servir, mas haverá caldo verde e bolinhos de bacalhau. Aquilino era louco por bolinhos de bacalhau." E também por lebre, carne de porco em vinha-d"alhos e, claro, truta (são célebres as suas descrições de partos com este peixe de rio), explica o coordenador do programa, que a 24 de Maio fará em Paris uma evocação histórica dos cafés por onde Aquilino passou nos seus dois exílios. "Os cafés eram palco de discussão e de criação. Lugares ideais para quem como Aquilino gostava de olhar."»

14.2.13

LUGAR ONDE - Pagina do BADALADAS - 15 Fev 2013





VASCO GRAÇA MOURA

A poesia ensina a perder o fôlego


Fica já dito: quem só gosta de quadras populares com rimas chochas não leva nada desta poesia. Porque ela é exigente. Não por ser difícil mas por exigir outra disponibilidade. Rica de referências culturais e de ironias subtis, a poesia de Vasco Graça Moura escora-se numa incomum técnica de fabricação de versos e rimas que chegam a lembrar os poetas do séc. XVII – o que ele logo desmente com uma temática actualíssima. Nem aqui faltam letras para Fados – mas que letras!
Agora que saiu a POESIA REUNIDA(Quetzal, vol 1, Lisboa, 2012), em que se juntam 50 anos de labor poético, é que é possível abarcar o imenso horizonte desta escrita, torrente caudalosa de milhares de versos que ensinam a perder o fôlego – porque só a leitura nos faculta o ar para a vida.
Tenho pena de não dispor de mais dez páginas do jornal…
De perder o fôlego, a leitura desta obra!


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CITAÇÕES

«Vasco Graça Moura (. 1942) que o grande público se habituou a identificar com o comentarismo ideológico. E, no entanto, desde Jorge de Sena, talvez seja ele – com a possível excepção de David Mourão-Ferreira – a personalidade literária mais completa. Ensaísta, tradutor laureado, ficcionista, dramaturgo, cronista, é como poeta que atinge maior conseguimento»

«Estudioso não-ortodoxo de Camões e tradu­tor celebrado de Shakespeare, Dante, Enzensberger e Gotfried Benn, (…) sempre fez da sua poesia «um lugar de cul­tura [...] e por outro lado transforma a escrita poética numa caixa de ressonância e reminiscências», como bem observou Clara Rocha. Nos seus versos, as reminiscências denunciam quase sempre uma vasta erudição»(Eduardo Pitta, in “Comenda de Fogo, Círculo de Leitores, Braga, 2001)

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POEMAS


nova meditação sobre a palavra

assim a palavra se prestasse
ao jade ao jogo  ao jugo de uma toda
arte poética e nunca ripostasse
em golpes repentinos de judoka

assim nunca o poema se traísse
na trama aleatória de uma aposta
perdida  seu hábil mecanismo
traria o juro ao artesão que o monta

mas por precisa que seja a utensilagem
e a mão que a usa  por grande a qualidade
que tenha o material severo da palavra
por completa que fique a engrenagem

porque é que a ultrapassam as palavras
e ficam sendo sempre mais do que isso?


medusa

é quando a musa às vezes é medusa
hipnótica na noite, a que nos ladra
se o sono que não temos não lhe quadra
e dos nossos destinos se descruza,

e nos converte então em pedra-pomes
de atroz inconsistência o coração,
e fica duro e calcinado e não
se acalmam sofrimentos, ânsias, fomes,

e nos gela o seu gélido desprezo
que fica a rodear-nos como um halo,
ou um silêncio vil só de escutá-lo,
ou um eco mais torpe que traz preso,

e a apagar tudo o mais que se recorde,
com os dentes em sangue, morde, morde.


ofélia

é no vaivém da lua que naufraga
uma rosa nocturna assim perdendo
o lume e o perfume em que se apaga
o despegar das pétalas na vaga
vagarosa em que voga estremecendo,
com as grinaldas frouxas que inda traga,
ofélia entre nenúfares descendo,
vestida de palavras e morrendo.


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QUEM VAI À GUERRA…


Sou contrário à tese de que os escritores devem abster-se de tomar posições políticas públicas. O escritor é um cidadão como os outros, embora com a responsabilidade acrescida de dominar instrumentos de comunicação de que a escrita é o mais óbvio.
Vasco Graça Moura é figura destacada no panorama cultural português. Tem desempenhado variadíssimos cargos de gestão administrativo-cultural: Administrador da Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Comissário-geral para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses ou Director do Serviço de Bibliotecas e Apoio à Leitura da Fundação Gulbenkian, entre outros. É, actualmente, Presidente da Fundação Centro Cultural de Belém. E foi Deputado no Parlamento Europeu durante 10 anos, eleito pelo PSD.
Escreve regularmente na imprensa e não se coíbe de defender opiniões polémicas, seja sobre a actualidade política, seja sobre questões culturais, caso do último Acordo Ortográfico de que se tem assumido opositor feroz.
É claro que o seu desassombro e truculência lhe têm valido reacções de sinal contrário. Na guerra de argumentos, tal como na outra, quem dá também leva.

A título de exemplo, há tempos VGM opinou sobre a CPLP – Comunidade de Países de Língua Portuguesa, com estas palavras:
«O Instituto Internacional da Língua Portuguesa não está em funcionamento porque nenhum dos países membros da CPLP lhe dá meios para o fazer», disse Vasco Graça Moura, a propósito da VIII Cimeira de chefes de Estado e de Governo da CPLP, que decorre sexta-feira, em Luanda. «Isto corresponde a uma coisa chamada CPLP, que é uma espécie de fantasma que não serve para rigorosamente nada, que só serve para empatar e ocupar gente desocupada».

«Engraçado ver o pomposo Vasquinho, ex-deputado do PSD, a dizer isto quando o Sr. (Cavaco) Silva tinha acabado de dar uma longa entrevista onde realçou a importância e a influência da CPLP, muito especialmente após o seu mandato como seu Presidente e do grande trabalho por ele realizado.
PS: Claro que isto não tem importância nenhuma, mas não gosto muito do Vasco Graça Moura, que me parece preconceituoso e elitista, mas na prática poucos ligam com o que diz. Talvez por isso poucas vezes lhe pude fazer aqui um boneco e …apeteceu-me.»
A mim, que preparo esta página em plena época de carnaval, também me apeteceu transcrever esta brincadeira… 




5.2.13

CHOVEU NA ILHA DA BOA VISTA...




Foto:
http://www.africanidade.com/content_images/africanidade_new.png


Ontem choveu na ilha da Boa Vista, Cabo Verde. Nada de parecido com as chuvas torrenciais de há dois ou três anos...
Comentário do Diogo, nas descobertas dos seus cinco aninhos:

«A chuva já estava com saudades da terra! »

4.2.13

LUGAR ONDE -- 18 Janeiro 2013 - jornal BADALADAS



A DOS CUNHADOS:
               QUE NÃO SE PERCA A MEMÓRIA

Quem esteve há dias em A dos Cunhados, numa iniciativa da Pró-Memória, Associação Cultural e Etnológica, decerto ficou encantado com o que viu. Partindo da compra das ruínas de uma antiquíssima azenha e juntando pecúlios vários – colectas, subsídios, PEDIP e patrocínios diversos – aquela Associação iniciou a reconstrução do equipamento de moagem bem como a da Casa do Moleiro, mesmo ao lado. Embora ainda incompleto, o projecto de fazer ali um espaço museológico de cariz etnográfico está muito adiantado. Por isso foi possível aos visitantes apreciarem a Casa do Moleiro com os objectos e mobílias do quotidiano rural de outrora e verem o primeiro casal de mós que já moem farinha. Nesse dia puderam também assistir a um concerto de música coral numa sala da azenha, que é usada para todo o tipo de iniciativas culturais e pedagógicas.
Tem 15 anos esta associação e o rol de actividades é impressionante, como pudemos comprovar no opúsculo “15 anos de História”. Sempre com o objectivo de preservar e divulgar o património local e de promover a cultura. Para que não se perca a Memória.


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EDIÇÕES

Uma das actividades mais assinaláveis da Associação Pró-Memória tem sido a edição de obras de estudo do Património edificado. Para além da monografia sobre a Azenha de Santa Cruz, em 2006, destacamos as que tratam de A dos Cunhados.





A dos Cunhados – Itinerários da Memória
Coordenação de João Luís Inglês Fontes
Edição Pró-Memória, A dos Cunhados, 2002

«A dos Cunhados - Itinerários da Memória é obra que se apresenta a si própria. Basta folheá-la com algum cuidado para reparar na amplidão do assunto, na sistematização da matéria, na qualidade das fontes...
O resultado aí está. A freguesia de A dos Cunhados, o concelho de Torres Vedras e a respectiva zona estremenha dispõem, a partir de agora, dum estudo de que muitas outras zonas importantes do país carecem ainda. »(D. Manuel Clemente, Bispo do Porto)
Produto do trabalho de uma equipa de 10 autores coordenada por João Luís Fontes, esta monografia de A dos Cunhados é exemplar e nada tem a ver com algumas de duvidosa qualidade que ultimamente têm aparecido por aí. 


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Azenha de A dos Cunhados
5 séculos de História

Maria Natália da Silva
Maria da Graça Santa Cruz Lourenço
Ed. Câmara Municipal de Torres Vedras,
colaboração da Associação Pró Memória
de A dos Cunhados,
Torres Vedras, 2012

Notável trabalho de pesquisa histórica e etnológica. Reconstitui-se a História desta Azenha que recua até ao séc. XV. A posse da propriedade é acompanhada ao longo dos séculos até chegar ao séc. XX e ao último proprietário, Lino Fernandes, que em 1969 terminou a actividade da Azenha que caiu em ruinas. A Associação Pró Memória adquiriu-a com a finalidade de a reconstruir e transformar em Museu inter-activo, o que se explica na segunda parte em que texto, fotos e esquemas explicam em detalhe o funcionamento da azenha. Excelente apresentação gráfica de Olga Moreira.


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MEMÓRIA COLECTIVA, CONDIÇÃO DE SOBREVIVÊNCIA

Se é verdade que ninguém esbanja uma herança, então a Defesa do Património deveria ser uma atitude natural. Porém, é com a maior das facilidades que nos desfazemos de coisas que julgamos sem utilidade ou valor.
O grande dilema do nosso tempo é que as coisas se alteram muito rapidamente — os cenários, os objectos, os costumes — não dando tempo para que o Tempo faça a sua selecção natural.
Normalmente tendemos a desvalorizar aquilo que nos é próximo ou fa­miliar e a valorizar o distante e o inacessível.
A questão parece residir em saber aquilo que tem ou não tem valor, e que tipo de valor. De outro modo, trata-se de saber o que se esconde por detrás de cada objecto, que história nos pode ele contar. Em resumo, de saber o que é o Património Cultural!
(…)
O património Cultural é como um gigantesco icebergue cuja face visível é apenas uma pe­quena parte do todo. À tona da água está aquilo a que qualquer pessoa reconhece inegável valor — pela sua quali­dade artística ou monumental, quer pela nobreza dos seus ma­teriais, quer pelo seu significado histórico preciso — como é o caso de uma catedral, de um casti­çal de prata, ou de uma carta de foral.
Mas submersa está uma in­finidade de outras peças, por­ventura menos brilhantes, mas que no seu todo são importantíssimas para o conhecimento da vida dos povos - tais como uma pedra facetada, um candeeiro a petróleo, uma azenha caída em desuso, uma fotografia antiga.
É graças a estes elementos "pobres" do nosso património que podemos hoje saber tantas coisas sobre vida dos que nos antecederam.





A Memória é a mais funda­mental das faculdades humanas. Foi por ela que evoluímos. Será com ela que sobreviveremos.
Se isto é válido para o indi­víduo, também o é para as so­ciedades, que têm no Património Cultural a sua memória colec­tiva.
Quer se trate da grande obra de arte ou da humilde ferramen­ta de trabalho, é o Homem que, através delas, se nos revela!»
                                                                                        (J. Pedro Sobreiro, in: Torres Cultural, Dezembro 1988)




NOTA

Os livros aqui referidos encontram-se à venda na sede da Pró-Memória, na Azenha de A dos Cunhados.
Mais informações podem ser encontradas em www.promemoria.pt


Fotos(C)J Moedas Duarte

3.2.13

LUGAR ONDE - 28 Dezembro - jornal BADALADAS ( TORRES VEDRAS)




LITERATURA PORTUGUESA DO SÉC. XX

UM DESASSOSSEGO DE LIVRO

Conheço quatro edições do "Livro do Desassossego" de Fernando Pessoa, aliás Bernardo Soares, ou ainda Vicente Guedes/Bernardo Soares, seus heterónimos. E há ainda as edições brasileiras e a que foi publicada por Jerónimo Pizarro em edição crítica na Imprensa Nacional - Casa da Moeda, em 2010, para além das edições noutras línguas. Todas divergem na organização e, até, em alguns conteúdos. Que estranho livro é este - cuja primeira edição é de 1982, 47 anos depois da morte do autor?

É um “livro que não é livro”, como diz J. Pizarro no seu recente "PESSOA EXISTE?" (Ática /Babel, 2012). Pessoa tinha em mente escrever um livro com aquele título mas nunca passou da fase de escrever fragmentos. Foi amontoando papéis a esmo, nos mais diversos suportes - subscritos, apontamentos, notas soltas misturadas com assuntos totalmente diferentes, folhas inteiras ou rasgadas, papel de embrulho... Muitas vezes deixava a indicação abreviada "L. D. ", outras vezes nem isso. Sem numeração nem indicações de precedência. E tudo isso ficou amontoado na célebre arca que o autor nunca organizou.
Cada LIVRO DO DESASSOSSEGO é, pois, o resultado de um conjunto de critérios definidos pelos estudiosos e editores que meteram ombros à tarefa ciclópica de compor o puzzle. O que faz a diferença é a definição e a hierarquização desses critérios, estabelecidos a partir de diversas metodologias.
Daí que seja possível ler diversas versões do livro, e todas aceitáveis, pois foram trabalhadas por experimentados pessoanos. Como diz Pizarro, " a sua forma depende de uma idealização" e as diversas edições "não existem senão como imitações de um Livro inexistente" - passe o paradoxo, que afinal corresponde ao que o próprio F. Pessoa escreveu sobre o projecto deste livro, em 1914, em carta a Armando Côrtes-Rodrigues: " Tudo fragmentos, fragmentos, fragmentos".
Sendo um livro tão estranho, como se explica a sua aceitação universal - é um dos mais conhecidos no estrangeiro - traduzido em 37 idiomas, “melhor livro do ano” na feira de Frankfurt de 1985?
A verdade é que os mais de 500 fragmentos dispersos na célebre arca de Pessoa, misturados com outros de obras diferentes, são textos de uma actualidade e profundidade psicológica que os tornam incrivelmente sedutores para o homem contemporâneo. É a angústia de viver, o desassossego de não saber para quê e como viver, as grandes interrogações sobre a vida e a morte, as reflexões com tema ou simplesmente banais mas carregadas de sinceridade desarmante - é tudo isto que encontramos nestas páginas muitas vezes arrebatadoras.
Um desassossego de livro, este Livro. Mas, curiosamente, é o seu carácter fragmentário e descontínuo que lhe confere inegável contemporaneidade, num tempo marcado pelos ritmos sincopados e pela desconstrução dos géneros literários.
Eu diria que este LIVRO DO DESASSOSSEGO é como uma sinfonia de jazz que todas as noites fosse tocada por músicos diferentes. | JMD


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QUE LIVRO?

"O que temos aqui não é um livro mas a sua subversão e negação, o livro em potência, o livro em plena ruína, o livro-sonho, o livro-desespero, o anti-livro, além de qualquer literatura". (Ricardo Zenith)

"Nestas impressões sem nexo, nem desejo de nexo, narro indiferentemente a minha autobiografia sem factos, a minha história sem vida. São as minhas confissões, e, se nelas nada digo, é que nada tenho que dizer".(Fernando Pessoa, sobre o projecto “Livro do Desassossego”)


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DESASSOSSEGOS…
(in: Livro do Desassossego, F. Pessoa, Relógio d’Água Editores, 2008)

"Se penso, é porque divago; se sonho, é porque estou desperto. Tudo em mim se embrulha comigo, e não tem forma de saber, de ser." (p. 354)

"Escrevo com uma grande intensidade de expressão; o que sinto nem sei o que é. Sou metade sonâmbulo e a outra parte nada."(p. 355)

“Contento-me, afinal, com muito pouco: o ter cessado a chuva, o ha­ver um sol bom neste Sul  feliz, bananas más amarelas por terem nó­doas negras, a gente que as vende porque fala, os passeios da Rua da Prata, o Tejo ao fundo, azul esverdeado a ouro, todo este recanto do­méstico do sistema do Universo.
Virá o dia em que não veja isto mais, em que me sobreviverão as bananas da orla do passeio, e as vozes das vendedeiras solertes, e os jornais do dia que o pequeno estendeu lado a lado na esquina do ou­tro passeio da rua. Bem sei que as bananas serão outras, e que as vendedeiras serão outras, e que os jornais terão, a quem se curvar para vê-los, uma data que não é a de hoje.
Mas eles, porque não vivem, duram ainda que outros; eu, porque vivo, passo ainda que o mesmo.”(p. 463)

 "Escrever é esquecer. A literatura é a maneira mais agradável de ignorar a vida. A música embala, as artes visuais animam, as artes vivas (como a dança e o representar) entretêm. A primeira, porém afasta-se da vida por fazer dela um sono; as segundas, contudo, não se afastam da vida - umas porque usam de fórmulas visíveis e portanto vitais, outras porque vivem da mesma vida humana. Não é esse o caso da literatura. Essa simula a vida. Um romance é uma história do que nunca foi e um drama é um romance dado sem narrativa. Um poema é a expressão de ideias ou de sentimentos em linguagem que ninguém emprega, pois que ninguém fala em verso".(P. 559/560)

“Afinal eu quem sou, quando não brinco? Um pobre órfão abandona­do nas ruas das sensações, tiritando de frio às esquinas da Realidade, ten­do que dormir nos degraus da Tristeza e comer o pão dado da Fantasia.
De meu pai sei o nome; disseram-me que se chamava Deus mas o nome não me dá ideia de nada. Às vezes, na noite, quando me sinto só, chamo por ele e choro, e faço-me uma ideia dele a que possa amar… Mas depois penso que o não conheço, que talvez ele não seja assim, que talvez não seja nunca esse pai da minha alma…”(p. 250)



Fotos(C)J Moedas Duarte

Toponímia existente no concelho de Torres Vedras
1ª foto: Urbanização do Infesto, arredores da cidade de TVedras
2ª foto: aldeia da Carvoeira.