31.7.15

O "irmão corpo" da minha tia Ana


A tia Ana era irmã de meu pai. Camponesa, olhadeira da igreja paroquial de S. Vicente do Paul (Santarém), não tendo casado optou por consagrar a sua vida ao ideal franciscano. Pertencia à Ordem Terceira.
Uma manhã, em Alpiarça, onde por vezes nos visitava e se demorava alguns dias, respondeu-me assim, quando lhe perguntei se tinha dormido bem:
- Custou-me muito a adormecer, estranhei a cama. Mas quando isto me acontece eu digo assim:"Olha, irmão corpo, pus-te em posição horizontal, estás numa boa cama, tens roupa... se não dormes eu não tenho a culpa..."
- E depois, se não vem o sono, o que é que a tia faz?
- Eu fico à espera e vou rezando...- e o seu rosto abriu-se num sorriso de bondade.

Anos depois contei esta história à minha amiga Maria Laura Madeira. Mulher de  prosas e versos saborosos, passados dias ofereceu-me este soneto:


"IRMÃO CORPO" (dedicado à autora desta expressão)

Irmão corpo dorido e insubmisso
Já não sei se te quero se te aguento
O que tens por viver é pensamento
Debandas, e eu às vezes dou por isso

Está minada a raiz do compromisso
Se te deito tens medo do momento
Em que o sono te leve ao esquecimento
E não saibas voltar ao teu serviço

Que medo é esse à Fé que não renegas
Irmão corpo, se aos poucos tudo entregas
Do espólio tão terreno que tiveste

Leva-me duma vez ao meu destino
Tu foste só um pobre peregrino
Deixa sem pena as penas que me deste


Isto foi em 1997. Revi agora o poema na pequena edição que a Maria Laura distribui pelos amigos com o riso límpido com que  sublinha as suas dádivas.
Obrigado, Maria Laura.


27.7.15

NO LIMIAR DO MUNDO DE MARIA GABRIELA LLANSOL





Página a publicar no semanário BADALADAS no próximo dia 31 de Julho 2015.





“Sobre a sua ligação a Maria Gabriela Llansol e ao seu texto escreveu um dia José Augusto Mourão (e lembro-me de ter ouvido essas palavras da sua boca, num dos nossos encontros):
«Sou um legente que escreve desde há uns anos já sobre Maria Gabriela Llansol com o sentimento de ter sempre vagueado por uma inextricável linha de costa, portanto sem ter a presunção de alguma vez ter chegado a um terminal de mundos, sabendo que das ruínas da biografia não se pode erguer uma estátua, temendo ademais, e como Témia, a impostura da língua, fiado apenas na 'cordialidade' do sentido (Tauler), no puro amor do 'há', na equivalência entre estética e ética, nada sabendo em definitivo, apenas entrevendo. Sabe-se que se é legente quando o júbilo de existir e o ler se tocam.» | João Barrento “

Foto: J Moedas Duarte




Autógrafo de Maria Gabriela Llansol: "Para Virgílio Ferreira - meu companheiro na geometria da terra prometida". (in: http://espacollansol.blogspot.pt/ - post de 7/6/15.


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______________ nada é mais rápido do que a melancolia; é traiçoeira no ataque, inopinadamente ressurge diante dos olhos, e o turbilhão é tal que se extingue sem linhas precisas. O facto principal, determinante, é que a nossa forma, a forma com que somos receptivos ou agimos, é um corpo, todo o afecto nasce, perdura e se extingue nessa forma; a separação física dos corpos pode ser, por vezes, o facto mais notável: aquele contra o qual o conceito perde força e paciência. De nada me vale querer ser razoável. Quando me dou à nostalgia, é triste de morrer. A realidade da dor, até desejar a morte, não está na separação física (de que é feita a maior parte da vida senão de ausências presentes?) mas no simples efeito de imagens que não se sobrepõem. Não vou perguntar: “quem falta?” Sou eu que falto, o fragmento por que suspiro, e que está suspenso fora de mim. Eu queria ser ele, sem poder, como ____ como um resto de frase que se esquece | 

Maria Gabriela Llansol, Inquérito às Quatro Confidências. Lisboa: Relógio d´Água, 1996.



3.1.15



NÃO TE ESCREVAS
entre os mundos,

ergue-te contra
a variedade de sentidos,

confia no rasto das lágrimas
e aprende a viver.

Paul Celan,
A MORTE É UMA FLOR,
Livros Cotovia, 1998

Foto J. Moedas Duarte