30.3.11

MATARAM A TUNA!

Em ano de centenário do nascimento de Manuel da Fonseca, recordo o poema que foi minha porta de entrada na obra do escritor.
Continuo a lê-lo com o mesmo deslumbramento do início. A frescura da evocação, a capacidade sugestiva, a reconstrução cinematográfica dos ambientes. Tudo numa linguagem surpreendentemente simples, sem atavios. Absolutamente genial!






MATARAM A TUNA

Nos domingos antigos do bibe e pião
saía a Tuna do Zé Jacinto
tangendo violas e bandolins
tocando a marcha Almadanim.

Abriam janelas meninas sorrindo
parava o comércio pelas portas
e os campaniços de vir à vila
tolhendo os passos escutando em grupo.
Moços da rua tinham pé leve
o burro da nora da Quinta Nova
espetava orelhas apreensivo
Manuel da Água punha gravata!
Tudo mexia como acordado
ao som da marcha Almadanim
cantando a marcha Almadanim.


Quem não sabia aquilo de cor?
A gente cantava assobiava aquilo de cor ...
(só a Marianita se enganava
ai só a Marianita se enganava
e eu matava-me a ensinar ... )
que eu sabia de cor
inteirinha de cor
e para mim domingo não era domingo
era a marcha Almadanim!

Entanto as senhoras não gostavam
faziam troça dizendo coisas
e os senhores também não gostavam
faziam má cara para a Tuna:
- que era indecente aquela marcha parecia
até coisa de doidos:
não era música era raiva
aquela marcha Almadanim.

Mas Zé Jacinto não desistia.
Vinha domingo e a Tuna na rua
enchendo a rua enchendo as casas.
Voavam fitas coloridas
raspavam notas violentas
rasgava a Tuna o quebranto da vila
tangendo nas violas e bandolins
a heróica marcha Almadanim!

Meus companheiros antigos do bibe e pião
agora empregados no comércio
desenrolando fazenda medindo chita
agora sentados
dobrados nas secretárias do comércio
cabeças pendidas jovens-velhinhos
escrevendo no Deve e Haver somando somando
na vila quieta
sem vida
sem nada
mais que o sossego das falas brandas ...
- onde estão os domingos amarelos verdes azuis encarnados
vibrantes tangidos bandolins fitas violas gritos
da heróica marcha Almadanim?!

Ó meus amigos desgraçados
se a vida é curta e a morte infinita despertemos e vamos
eia!
vamos fazer qualquer coisa de louco e heróico
como era a Tuna do Zé Jacinto
tocando a marcha Almadanim!

25.3.11

LUGAR ONDE Nº 104 - Badaladas, 18 março 2011

ESCRITORES ESQUECIDOS


TRINDADE COELHO E OS SEUS AMORES.
Há muito que não aparece nas selectas de Língua Portuguesa. No entanto escreveu páginas de antologia sobre a vida campestre dos finais do século XIX, descrições coloridas de lugares e costumes que permanecem no nosso imaginário - filhos e netos de camponeses que todos somos…

O século XIX português é o lugar de todas as mudanças sociais e políticas que explicam o nosso modo de ser actual. A incipiente industrialização com o início do desenvolvimento das áreas urbanas de Lisboa e Porto determinou o início da decadência rural, numa sucessão lenta mas inexorável de transformações que se projectaram até aos nossos dias. Na balança de ganhos e perdas, a crueza da vida urbana, em contraste com os antigos modos de vida ligados à Natureza, suscitou uma visão idílica da vida campesina que teve grande expressão literária nos romances de tema campestre como os de Júlio Dinis, herdeiros de alguns textos românticos de Garrett e Herculano, ou nas abordagens mais complexas de Eça de Queiroz ou de Camilo C. Branco.
Trindade Coelho, não sendo um escritor de carreira, foi talvez o maior expoente do que ficou conhecido como “conto rústico”, pequena peça literária em que ele aborda a simplicidade e a autenticidade da vida no campo. O conjunto de contos que publicou em 1891 com o título de Os Meus Amores – Contos e Baladas é, ainda hoje, de leitura extremamente atractiva, pelo pitoresco, a capacidade descritiva e a evocação de costumes, tradições e modos de falar das aldeias transmontanas. Camilo Castelo Branco apreciava-o e fez questão de o manifestar publicamente.
Mas a obra deste escritor não se quedou no conto rústico. Para além das memórias da sua vida de estudante de Direito em Coimbra, insertas no engraçadíssimo livro In Illo Tempore, bem como de alguns tratados de Direito que fizeram escola, Trindade Coelho foi um republicano convicto e empenhado, ainda em tempo de Monarquia, com a preocupação pela educação cívica do povo e a erradicação do analfabetismo, o que deu origem a obras como Manual Político do Cidadão Português, o ABC do Povo e o Livro de Leitura.
Na colecção Livros de Bolso Europa-América podem os nossos leitores encontrar, a preço muito acessível, os livros Os Meus Amores – Contos e Baladas (nº 244) e In Illo Tempore (nº 287).

                                                                                          * * *

BIOGRAFIA BREVE
José Francisco Trindade Coelho (1861, Mogadouro – 1908, Lisboa). Formado em Direito pela Universidade de Coimbra, de cuja vivência deixa testemunho impressivo no livro In Illo Tempore. Actividade literária em jornais e revistas. Delegado do procurador régio em diversas localidades, fixa-se depois em Lisboa, já como juiz. Actividade intensa no plano jurídico e na formação cívica e pedagógica. A saudade da vida simples da terra natal leva-o à escrita de Os Meus Amores, obra-prima do conto rústico que lhe garante lugar de relevo na nossa Literatura.
                                                                                       * * *
HISTÓRIAS DE ESTUDANTES


UM HOMEM NÃO É DE PAU

Um dos livros mais conhecidos de Trindade Coelho tem título em Latim: In Illo Tempore, que significa “Naquele Tempo”. É um conjunto de narrativas muito engraçadas que documentam como era a vida dos estudantes em Coimbra no final do século XIX. Dessas memórias ainda hoje se alimenta uma certa mitologia coimbrã, que associa a boémia e a irreverência à vida académica. Trindade Coelho deixou neste livro as recordações do tempo em que estudou na Lusa Atenas, referindo aspectos característicos da época, figuras típicas, poemas cómicos e, até, anedotas que fizeram história. Como esta, que faz parte do capítulo “Um homem não é de pau”:

O pai de certo estudante, espantado com os extraordinários que lhe fazia o filho, escreveu para Coimbra a pedir-lhe contas! Queria o rol da despesa todos os meses: «Ao menos, que demónio!, p’ra saber em que se vai embora tanto dinheiro!»
Obediente, prega-lhe o filho a conta seguinte, p’ra começar:

Quarto e comida..................................................... 18$000
Roupa lavada.........................................................  1$800
Cosida e engomada.................................................. 1$200
Sapateiro e alfaiate.................................................. 7$000
Papel, estampilhas, etc............................................. 2$000
Barba e cabelo........................................................   $500
Um homem não é de pau.........................................90$0OO

Soma réis..................................................………      120$500


                                                                                       * * *

Trindade Coelho e Camilo C Branco


Trindade Coelho nascera remediado e o andar da vida fizera dele menos de remediado; no entanto, formara-se em direito, à custa de suar estopinhas e de trabalhar, já casado e com um filho.
Publicara artigos nos jornais e escrevera dois dos contos que enriquecem a jóia que é Os Meus Amores: O Sultão e Idílio Rústico.
Concorre, em 1886, ao lugar de Delegado do Procurador Régio.
E recebe uma carta de alguém que não conhece e é o maior romancista português, como ele  conta:
“Um dia de manhã recebo uma carta, de Camilo Castelo Branco, o grande escritor, que eu nunca tinha visto, nem ele a mim: dizia-me que vira nos jornais que eu fora a concurso e que escrevera ao ministro pedindo-lhe que me despachasse!
Caí das nuvens! Mas daí a poucos dias estava efectivamente despachado “delegado do Procurar Régio” do Sabugal, e eu ia ao Minho visitar o grande escritor, vê-lo pela primeira vez (primeira e última!) e beijar-lhe as mãos pelo seu tão grande favor”. (in: http://sobreorisco.blogspot.com/2011/03/camilo-e-trindade-coelho.html, acedido em 14 /03/2011)

                                                                                           * * *


A COLHEITA

«Eiras além, livres dos trilhos que ficavam em cima da palha, levas de bois caminhavam vagarosamente, as largas orelhas pendentes, caudas oscilantes afagando nas ancas espaçosas o luzidio pêlo. E lá vão encosta abaixo, roçando pelos troncos ásperos dos castanheiros a enorme corpulência, fartar o largo bandulho à serena água das ribeiras, sorvendo vagarosamente, impando a cada sorvo, pesadamente, monotonamente, parece que insaciáveis no meio da água em que se atolam, submissa...
Ao fundo da eira, rente aos castanheiros escuros, um rancho de mulheres cantava alegremente, em coro. Acabara de ensacar-se o último grão da farta colheita do Tomé da Eira.
— Colheita rica, sim senhor! —vinham dizer-lhe os vizinhos.— A primeira da aldeia!
— Qual?! Isso sim! Vão vocês ver a tulha! Muita palha é que vocês hão-de dizer, muita palha e pouco grão...
E muito azafamado, sem prosápias de maioral nem jeitos de soberba, as mangas arregaçadas pelos cotovelos, o Tomé ia e vinha, dando ordens, repetindo avisos, distribuindo aqui e além as últimas tarefas.» (Extracto do conto O SULTÃO, de Trindade Coelho)

9.3.11

PORTUGUÊS

Hélia Correia no romance LILLIAS FRASER, Ed. Relógio d´Agua, Lisboa, 2001:

"Ele não rezava, é claro. Mas ficara, na sua formação de português, aquela espécie de infantilidade que era a essência do catolicismo. Contava com favores de acaso."

"Mal adivinha um deslaçar da ordem que mantém cada classe em seu degrau, recai na insolência, o português."

4.3.11

CENTENÁRIO DA MORTE DE FIALHO DE ALMEIDA

Seara, de Van Gogh

AQUi deixei alguns dados sobre Fialho de Almeida, escritor alentejano que marcou as nossas letras com o traço grosso de uma prosa viril, truculenta, salpicada de vocabulário já em desuso mas de  sonoridade expressiva. Isso se pode ver neste extracto da descrição que ele faz do trabalho sobrehumano da ceifa, no tórrido verão alentejano:



Apenas os calores primeiros de Junho encinzeiram o céu de tintas baças, toda a seara, tornada em palha de repente, cobre os margios dum infindável preia-mar cheio de galgões. Em quatro dias, os aspectos desse oceano de espigas transmutam para uma sinfonia oftálmica de cores cáusticas, entre que a vida crocita, nas mordeduras da luz, que bebe o sangue das ervas, como louca.
Hálito do inferno, já duas vezes o suão, ou vento levante, passando o Estreito, todo abrasado da escandência das areias africanas, veio sobre esses grandes vales argilosos do distrito de Beja lançar a morte; e o Verão do país sem água, o Verão alentejano, martirizante, irradiante, começa a encher de angús­tias a província e prepara cenário à colheita cerealífera, que este ano foi, sempre lho digo, duma vitoriosa e esplêndida abundância.
Vem na vanguarda a debulha das favas, o primeiro cereal que seca, na escala dos cultivados no Alentejo; após, vêm as cevadas; e o trigo logo; e, no fim de todos, os tremeses, que ainda mal espigam, quando já todo o faval está no celeiro.
Seca a seara, forçoso é ceifá-la célere e mão-tente, pois, nas cevadas sobretudo, apenas o bago mirra, desagrega-se da cáp­sula e logo tomba, do que a formiga se aguarda, para poder dizer à cigarra: —«Agora dança!».
Para os lavradores retardatários estas perdas de sementes chegam a contar-se por dezenas de alqueires, sumidos pelo formigal no subsolo, caso de espanto que nesta província sem braços obriga a disputar, a poder de dinheiro, os ceifadores.
O usual é dar as searas grandes de empreitada. Formam-se então bandos de trabalhadores à voz dum chefe. Vilas e aldeias, em ranchos, amaltesam para os campos das herdades, que no Alentejo, lá baixo, têm quilómetros. E a horrível faina começa sob os cinquenta graus do Sol, num céu de chumbo irradiante.
Nos anos quentes, é de ordinário o primeiro domingo de Junho, cinco da tarde, já pela fresca, a hora propícia para a abalada das companhas de ceifeiros. Â boca das estradas, no adro das igrejas, pelos cerros jacentes aos casebres, vem o manajeiro tocar uma buzina espinhosa, das que se desenter­ram na praia de Sines, e que produz no ar apático das vilas alguma coisa do apelo soturno que ficou talvez da tradição, das guerras célticas.
Logo, a pouco e pouco, começam a chegar os troços de rapazes, vestidos de velho, cotins arremendados, jaleco e alforje às costas com as provisões da semana — seis pães de trigo rijo, queijo de cabra, e o tarro das azeitonas sapateiras —, e à cinta a foice ,e o chapeirão braguês sombreando faces doi­radas de morenos, tão árabes algumas, onde olhos pretos, pro­fundos, de animal, estrelam a nostalgia dessa casta poética e mercenária.
(…)

Eles entanto, em linha à borda do trigo, distanciando seis metros um dos outros, começaram em silêncio a terrível faina de ceifar. Trazem as pernas apolainadas de trapos, atados estes por cordas que se lhes entrecruzam, desde os sapatos até às coxas, por defesa aos abrolhos do restolho; trazem nos braços e mãos peúgas velhas, de que fizeram mite-nes contra as escoriações da palha ardente; e a cara mal se lhes vê sob as abas do chapeirão de feltro ou de palmeira, e o mover dos seus rins trai o derreamento de miseráveis envile­cidos pelas moedeiras da fome e do trabalho. Com a mão direita lançam a foice ao rés da terra; com a esquerda agarram nos caules e vão deixando atrás de si o trigo, em pequenos molhos paralelos. Aqui, além, inda os mais novos cantam, mas nas respirações opressas, cantiga e palestra entrecortam-se--lhes de pragas, quando o suor, trespassando a saragoça das calças e o pano cru das camisas, começa de se lhes pegar à carne, salgado e chamuscando-lhes as sarnas como fogo. As primeiras horas até ao almoço, são suaves, porque os 38 graus do Sol pouco fazem nessas índoles de salamandra, afeitas a torrar. Apenas alguma sede, um ou outro assopro aos mos­cardos que os perseguem, e olhadelas ao Sol para indagar se a meia hora de descanso do almoço, estará longe. Esse plácido interregno, porém, por pouco alcança, que a fornalha solar refila de brasidos, graduando o martírio na proporção da mais atroz perversidade. A oriente o Sol vem caminhando, saindo da fumarada do horizonte, passando da cor de sangue a bronze líquido; e os seus raios, à medida que se aprumam, trazem na escandescência náuseas de veneno, e a angústia horrorosa do metal derretido sobre a carne; rareia o ar, a aragem matinal cessa de todo, os cães arquejam de língua caída, as cavalga­duras cessam de rilhar; e calando-se os pássaros, e os voos mais lentos, os ares mais turvos, a sombra mais efémera — a hora do tormento diabólico da sede, não sede do paladar, tendo por centro de refrigério a gorja seca, mas sede do sangue espessado nas artérias, extenuadora sede dos tecidos, colossal, geral, que nada estanca, e sob cujo estertor o cérebro zumbe nos alucinantes delírios da insolação! Julgareis que a tempe­ratura, marcada ao Sol por 44 mortais riscos do termómetro, tocado este acume, regresse lentamente às virações mais frí­gidas da tarde.

Falando em ceifeiros do Alentejo, logo acode a lembrança de um comovente poema que viemos encontrar AQUI,  "Canta, ceifeiro, canta", com uma foto dos anos 30, num blogue muito interessante sobre o Alentejo esquecido...

SE ÁLVARO DE CAMPOS ESCREVESSE EM "O BARRETE"...

Encenação de "O Marinheiro" No Teatro de Almada



A Fernando Pessoa depois de ler o seu  drama estático «O Marinheiro»:

Depois de doze minutos
Do seu drama O Marinheiro,
Em que os mais ágeis e astutos
Se sentem com sono e brutos,
E de sentido nem cheiro,
Diz uma das veladoras
Com langorosa magia:

De eterno e belo há apenas o sonho. Porque estamos nós falando ainda?

Ora isso mesmo é que eu ia
Perguntar a essas senhoras...

(Poemeto de Álvaro de Campos,
no «Orpheu I» )