28.9.10

A TORRE DOS LIVROS

A Biblioteca Nacional sempre foi, para mim, um lugar mágico. "Templo do saber" - não sei evitar a expresão vulgar. Sinto-me bem lá dentro. Claro que me exasperava, em tempos idos, aquela vigilância de olhos que circulavam numa galeria superior, câmaras humanas de vigilância, pobres contínuos que passavam ali os dias a olharem cá para baixo, a ver se alguém rasgava uma folha e roubava uma gravura de uma edição única. ( Parece que isso chegou a acontecer...).

Mas uma biblioteca nacional é um monstro. Pelo tamanho, pela quantidade de livros, pelos problemas de manutenção e funcionamento.
Agora está em obras, o que vai acarretar um fecho temporário e enfurecer muitos utilizadores que fizeram uma petição à Assembleia da República...
Esperemos para ver o resultado. Que tem de ser melhor do que a situação actual, de quase ruptura.
A propósito aqui fica a reportagem do jornal I de hoje:



Biblioteca Nacional em obras. Livros salvos de uma morte anunciada

por Marta F. Reis, Publicado em 28 de Setembro de 2010  | Jornal I


A torre de depósitos não tem lavagem de ar há mais de dez anos

O director vagueia pelo telhado da livraria da Biblioteca Nacional, com uma vista privilegiada para a nova ala da torre de depósitos. "Uma semana e a fachada fica pronta", atira Jorge Couto. Para quem lidera a maior biblioteca pública do país, em Lisboa, a obra já vem tarde: está em causa a preservação dos livros e a falta de espaço. Para quem a utiliza como ferramenta de trabalho, o que veio tarde foi o aviso de encerramento, afixado só a 8 de Junho. Esgrimem-se argumentos e o tema ainda vai ser discutido no parlamento. Entretanto as obras continuam e a expectativa lá dentro é que não parem até 1 de Setembro do próximo ano, o dia em que a biblioteca voltará a funcionar.

Por fora, a nova ala parece acabada. Por dentro, faltam acabamentos. Na nova sala de leitura, no rés-do-chão, as paredes envidraçadas deixam entrar a luz do final de tarde. É mais pequena que a que passará a ser a velha, e ainda não está decidido se será só para quem quiser consultar as colecções especiais ou para quem queira um cenário diferente de estudo.

A ampliação que estica a torre original em 33 metros de comprimento e 6300 m2 de área vai ficar concluída a 20 de Outubro, dentro do prazo, garantem a subdirectora Maria Inês Cordeiro e o arquitecto João Pardal Monteiro. Mas é a fase de remodelação que mais tem dado que falar. Arrancou nos últimos dias: as colecções guardadas nos últimos pisos deixam de estar acessíveis a partir de 1 de Outubro, mas já começaram a ser encaixotadas. Dia 15 de Novembro a sala de leitura fecha por quase dez meses.

Não é uma mudança "É uma remodelação. Não era possível fazê-lo de outra maneira", diz a subdirectora. A torre é praticamente o único depósito da biblioteca: guarda 3,5 mil milhões de livros e em alguns pisos já não há espaço para os depósitos legais. Ao todo são dez andares e subir ao sexto é uma aventura. O elevador de serviço, projectado para carrinhos de livros, mostra uma lotação máxima para 800 quilos e dez pessoas mas tem pouco mais que a largura de uma. No destino abre-se um corredor com 5,5 km de estantes de um lado e do outro - 55 km em toda a torre, para pouco mais de 20 funcionários todos os dias. Se o espaço é arrumado, as falhas estão à vista: as luzes e os interruptores parecem os de casas antigas e o ar não circula. "Está desactualizado, e com a maioria dos sistemas inutilizados", diz Pardal Monteiro. O problema vai consumir a maior fatia dos 8 milhões de euros de orçamento da obra iniciada em 2008. "Todo o sistema de aquecimento, ventilação e ar condicionado vai ser remodelado. Vamos instalar sistemas de combate a incêndios. Só tínhamos de detecção e extintores", explica a subdirectora.

No corredor do sexto piso há um aparelho que mede temperatura e humidade. É um dos primeiros dias de Outono e estão 25,6 o C quando o ideal seriam 18. "Há uma parte de envelhecimento dos livros provocada por estas condições, que não é visível a olho nu", explica Maria Inês Cordeiro. "Se continuasse assim, grande parte dos livros sofreria em 20 anos uma degradação aceleradíssima. Não temos limpeza de ar há mais de dez anos." E há ainda os aviões que passam rente ao edifício. "Temos caixas que têm aquele negro de quem tem a janela aberta e mora na Avenida de Roma." A diferença de dez graus tem impacto a outro nível, mais microscópio. Maria Inês Cordeiro mostra uma armadilha para pequenos insectos onde está um peixinho-de-prata. "Estes não gostam de papel, mas há outras espécies de bibliófagos consideradas pragas. Tornam os livros uma renda."

O plano para os próximos meses prevê 20 dias certos para remodelar cada um dos pisos, que terão de ser esvaziados. O objectivo é conseguir depositar no chão da sala de leitura nova, casa forte e sala de leitura velha - as únicas superfícies com capacidade para aguentar o peso - 20 toneladas de livros por dia, "O único espaço preparado para receber tantos livros seria a Torre do Tombo, mas também está cheia", diz a subdirectora.

O ex-líbris Desce-se pela nova escada exterior até à cave onde está um dos ex-líbris da obra: a casa forte. São 700 metros, 400 para o cofre e um perímetro de segurança com menos de um metro de largura. "Não é possível passar uma lança térmica", explicam. Seria a única ferramenta capaz de furar 60 centímetros de betão e entrar num espaço onde estarão preciosidades como as primeiras edições dos "Lusíadas" ou uma cópia de "As Aves da América", do naturalista do século xviii John James Audubon, avaliada entre 4,5 e 6,6 milhões de euros. A casa forte vai ter videovigilância e ambiente antichamas, ou seja, se se acender um fósforo lá dentro não arde. "Não vai ser uma biblioteca de ponta, porque a crise não o permite", diz Pardal Monteiro, mas vai ser a biblioteca que sempre se quis ter - as fundações da nova ala já lá estavam desde a década de 1950 -, mais segura e moderna.

19.9.10

Jornal BADALADAS - 24 de SETEMBRO DE 2010



MEMÓRIAS DE SANTA CRUZ
AS PINTURAS DE MESTRE PERES NA CASA DOS MOTAS

 Agosto de 1993, férias em Santa Cruz. Alguém me falou de pinturas antigas existentes na casa do senhor Joaquim Alberto Mota, que teriam sido feitas no tempo em que Antero de Quental esteve naquela praia, convidado de Jaime Batalha Reis. E logo se combinou uma visita à casa.

O senhor Mota recebeu-me muito bem e desatou a desfiar memórias dos seus 85 anos. “Meu pai comprou aqui uma casa que tinha sido convento de freiras e fez a Pensão Mira-Mar que depois vendeu à Maria Sabe-Tudo.” A casa em que estávamos a ter esta conversa “foi construída por João Pinto Mendes, que teve um estabelecimento onde hoje é a casa das bicicletas, no Largo do Grilo, em Torres Vedras. Deixou esta casa às primas, uma delas era minha avó.” Joaquim Mota ia contando mas eu já estava absorvido na contemplação das tais pinturas, de que já me recordava por ter lido um trabalho de Andrade Santos na revista “Torres Cultural” de Novembro de 1991. Eram três círculos com cerca de dois metros de diâmetro cada um, pintados sobre o estuque, na sala de fora, que ocupavam os espaços de duas paredes entre as portas de ligação com as outras dependências da casa. O que eu estava ali a ver era um precioso documento iconográfico da Santa Cruz dos anos 70 do século XIX.
Olhei melhor o nosso anfitrião. Homem de palavra fácil, culto, muito conhecido em Torres Vedras. Funcionário da Caixa Geral de Depósitos durante mais de trinta anos, Presidente da direcção da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo, mesário da Misericórdia. “Sempre ouvi dizer que Antero de Quental assistiu à feitura destas pinturas por Mestre Peres. Ele falou disto a Jaime Batalha Reis numa carta. Esse pintor também esteve na Igreja da Ponte do Rol. Ainda hoje tem família em Torres Vedras, a Cesária Hipólito, o Alberto Peres Alves…”
Nessa visita não tirei fotografias, apenas alguns apontamentos. Dois anos depois o senhor Mota morreu. Não voltei a ver as pinturas mas pensava nelas amiúde e na necessidade de guardar um registo fotográfico de qualidade para o Arquivo Municipal. A oportunidade surgiu agora, em conversa com amigos em Santa Cruz, e logo me foi dada a ligação com a filha do Sr. Mota, dona Maria Manuela. De novo fui bem recebido, desta vez com um amigo munido de máquina para o necessário registo. E o encanto renovou-se. Apesar da ingenuidade da composição, o conjunto tem um poderoso efeito evocativo. Santa Cruz, há 140 anos, era assim. | JMD



«A povoação reduzia-se então a poucas casas espalhadas sobre as arribas, como se sabe muito pito­rescas, altas e de estratos viva­mente coloridos, donde, para no­roeste, se avista Peniche, ao lar­go a Berlenga.» (Jaime Batalha Reis, Gazeta de Torres, 5/5/1929.)
 




Penedo do Guincho

Casa actual da família Mota, em Santa Cruz

Pela observação da pintura principal, podemos identificar a ermida de Santa Helena, com a cruz na empena, fachada diferente da actual. Identifica-se também a casa da família Mota, na parte esquerda da pintura, que na altura tinha uma porta ao meio e três janelas de cada lado.

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ANTERO EM SANTA CRUZ
(Jaime Batalha Reis na “Gazeta de Torres”,  5/5/1929, excertos *)

«Em 1870, Antero de Quental e eu vivíamos juntos em Lisboa. No mês de Agosto fomos, por al­guns dias, para casa de meu Pai no Turcifal, e, em seguida pas­sar dois meses à Praia, então quase desconhecida, de Santa Cruz.» (…)

«Morávamos numa casinhola térrea, das últimas habitações, ao sul, que voltava as costas a todas as outras, de telha vã e adobes rebocados, porta sempre aberta para um campo valado por pitei­ras, à beira duma quebrada pro­funda, por onde, de inverno a água corria em torrente. O pe­quenino prédio pertencia ao Fran­cisco Banheiro que, com a Ma­dalena, sua mulher, nos tratava dos quartos, da cozinha e da roupa.»

«São de Santa Cruz al­guns dos Sonetos filosóficos, en­tre eles me parece o Justitia ma­ter em que se cita o mar:
No espaço constelado passa o vulto / Do inominado Alguém que os sois aviva: / No mar ouve-se a voz grave e aflitiva / Dum Deus que luta, poderoso e inculto.»

«(…) Tinha em Torres Vedras um antigo companheiro de Uni­versidade, — o Dr. Philemon da Silva Avelino, que às vezes nos aparecia em Santa Cruz, e gos­tava muito o Antero de conversar com o Francisco Banheiro, a quem contava casos das Ilhas dos Açores, que este, interessado, es­cutava e comentava com gestos vagos e misteriosos para o mar.»

* Transcrito em fac-simile na revista “TORRES CULTURAL”, nº 4, Nov. 1991
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