25.3.08

ARTE CONTEMPORÂNEA: INTERROGAÇÕES E EQUÍVOCOS



O centro histórico de Torres Vedras, em volta dos Paços do Concelho, tornou-se lugar de paragem obrigatória. Galeria Municipal, Doispaços, Transforma e Cooperativa de Comunicação e Cultura constituem um núcleo apelativo de contacto com as artes plásticas. Mas estes espaços tornaram-se, também, lugares de incomodidade porque temos dificuldade em entender o que vemos. Chegamos a sentir-nos gozados ou, até, agredidos. E saímos sem resposta para as nossas interrogações.

O título “Gozo” foi, aliás, o que deu o mote a uma instalação de Nuno Vaza, há uns meses atrás, na Cooperativa de Comunicação e Cultura. Uma série de vinte e quatro diapositivos completamente negros, precedidos de uma legenda/aviso – «algumas destas imagens são extremamente chocantes e susceptíveis de ferir a sensibilidade» – pretendia abalar a nossa percepção do mundo, saturado de imagens, numa espécie de acto purificador naquele olhar para coisa nenhuma. Mas esta “provocação” ao público nem era original. Em 1915 já o artista russo Kazimir Malevitch expusera um quadro completamente negro que se anunciava como “a libertação absoluta do olhar”. Talvez Nuno Vaza quisesse fazer uma nova leitura desta ideia. Mas podemos perguntar: conseguiu o que pretendia? Libertou os nossos olhos da tirania da imagem? Ele próprio parece duvidar quando se antecipa e nos diz que aquilo, afinal, é gozo. E nós saímos para a rua com a ideia de que andamos a brincar à arte.


(O quadrado negro de K. Malevitch)

O QUE É ISSO DE ARTE?

Os estudiosos não se cansam de avisar: nós, público, estamos agarrados a ideias feitas, por isso limitamos o nosso entendimento e cristalizamos em preconceitos: a boa pintura é a clássica, de entendimento imediato, a representação da realidade… já aceitamos umas formas abstracta bem desenhadas e bem coloridas, desde que possam condizer com a decoração da sala… O mesmo para a escultura… etc…
E afirmam: essa arte oficial era, tão só, a arte das classes dominantes numa sociedade espartilhada por sujeições e hierarquias.
Mas – lembram eles – o impetuoso movimento da arte moderna, desde o início do século XX, estilhaçou os preconceitos e afirmou uma nova arte. De forma mais ou menos escandalosa os artistas abriram perspectivas ilimitadas - e recordam sempre o urinol que Marcel Duchamp enviou em 1917 para uma exposição de Nova Iork com o título de “Fonte” e que foi, obviamente recusado… Do campo estreito das regras académicas esses artistas libertaram a arte para a criatividade sem barreiras: novos materiais, novas formas, novos espaços. E também novos públicos, consequência da democratização da sociedade, liberta enfim das cadeias dos Antigos Regimes. Todo o século XX foi uma sucessão ininterrupta de inovações, transgressões, invenções, para as quais foram construídos novos museus um pouco por todo o lado. No entanto nós, público, continuamos a interrogar: Arte? Mas que arte é esta?


(Urinol / Fonte, de Marcel Duchamp)



A ARTE CONTEMPORÂNEA

Neste movimento de dessacralização da arte tinha de haver limites. E eles acabaram por ser ultrapassados com as novas expressões artísticas surgidas a partir dos anos 60 do século passado e que os historiadores chamam de “arte contemporânea”. Que limites? Os da própria ideia de arte. E de tal modo assim foi que o célebre urinol de Duchamp acabou por ser entronizado no Centro Georges-Pompidou, – um dos mais prestigiados centro de arte contemporânea! - em Paris, sessenta anos depois, numa retrospectiva sobre o seu autor, já visto como “um clássico”. Fechou-se o círculo e esta arte parece ter caído na sua própria armadilha.
No entanto, esta contradição não destruiu a arte. O que fez foi mudar radicalmente a ideia que temos dela. Não já o espaço solene do Sublime, do Belo, do Transcendente, das grandes propostas ideológicas, das visões redentoras. A arte dos nossos dias tornou-se a arte da vida, e a vida foi transformada em arte. O criador da obra espera do público uma participação activa que o leve não só a olhar mas, sobretudo, a VER. Operação muitas vezes impossível porque o autor disfarça o código de decifração, num jogo de escondidas que exaspera o público mas motiva os críticos de arte para leituras que só os entendidos percebem.
O móbil do acto artístico passou a assumir formas cada vez mais variadas e, não raro, delirantes. Provocar o público parece ser a mais imediata mas ela esconde muito mais, o que exige a nossa perspicácia e disponibilidade total. Surgiram infinitas expressões de arte que os historiadores já catalogaram, na ânsia de encontrar sentidos, linhas de rumo, enquadramento para a sua compreensão: “arte conceptual”, “arte bruta”, “arte povera”, “body art”, “pop art”, “ready made”, “arte cinética”, “novo realismo”…etc…



A MERCANTILIZAÇÃO DA ARTE

Neste jogo de espelhos autor/público em que se tornou a arte contemporânea, um fenómeno ganhou enormes proporções: a transformação da arte em objecto de investimento. A colecção Berardo é um exemplo típico. Um homem medianamente inculto mas invulgarmente esperto percebeu o mecanismo e jogou a fundo nele. Rodeou-se de conhecedores, especialistas em perceber os sentidos das modas artísticas, e foi comprando obras de arte. Reuniu uma numerosa colecção e propôs ao Estado um negócio de milhões: exposição no Centro Cultural de Belém e posterior aquisição por uma quantia astronómica.
Somos tentados a leituras redutoras deste fenómeno, que nos levariam a considerar a arte como vítima da engrenagem capitalista. Mas, tal como o lucro dos bancos, que denunciamos incansavelmente sem vermos que eles se devem também à nossa excessiva dependência deles…a transformação da arte em valor de investimento é o resultado da sociedade em que vivemos. Tudo aquilo a que se reconhece valor – mesmo espiritual – transforma-se em dinheiro. Veja-se o fenómeno do santuário de Fátima, por exemplo… Como poderia a arte subtrair-se a esta tendência?




(Milionário e amante da arte!)


(in)CITAÇÕES

“Todo o objecto artístico tem uma razão de ser. Mais trivial ou mais séria, só o seu criador a conhece. O público, na contemplação da obra, desespera em busca da sua razão de ser: «O que é que isto quer dizer? O que significa?». O público não sabe olhar apenas, simplesmente olhar. Precisa sempre de razões, racionalizações, explicações…
Nós, artistas, não temos de explicar. O público deve aprender a olhar, a deixar-se penetrar, a sonhar, a pensar, a divagar, a especular. É para isso que serve a arte, só para isso…”

(Osvaldo de Andrade, artista plástico brasileiro)

“Há uma ânsia dos artistas em surpreender pela novidade absoluta. Cada artista procura a forma mais ousada, mais chocante. Os críticos de arte definem modas, promovem amigos e conhecidos, influenciam as cotações dos mercados da arte, ganham comissões…A arte actual é, em grande parte, um mundo de alianças manhosas em que cada um tenta chegar-se o mais à frente possível, na mira de atingir a glória: ser reconhecido como um bom investimento, passar às caves dos bancos, tornar-se reserva artística que um dia verá a glória num leilão de arte, em que milionários pedantes disputam quinquilharias em lances de milhares de euros. Eis o que é a grande arte contemporânea!”
( Evan Shipman, marchand de arte na ARCO de Madrid, 2006 )

«Enquanto a arte moderna havia provocado rupturas, a arte contemporânea empenha-se, pelo contrário, em reatar a ligação entre a arte e o público.
A corrida pelo progresso das vanguardas terminou e, num tempo suspenso, cada obra aplica a sua própria perspectiva e cada espectador torna-se num ponto de referência. De onde um campo artístico que se alarga cada vez mais, mas que se vê, também, cada vez mais atomizado.»
(A Arte Contemporânea, Catherine Millet, Ed. Inst. Piaget, )



(Escultura de João Castro Silva, Galeria Municipal de Torres Vedras, 23 Fev a 5 de Abr )

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CONCLUSÃO PARADOXAL: quando se fala em arte apenas podemos interrogar e nada concluir. Porque a arte não serve para concluir mas para iniciar.


NOTA FINAL: uma palavra de apreço aos responsáveis pelas Galerias de Arte que referimos no início. O seu bom trabalho tem-nos proporcionado experiências muito enriquecedoras e motivam-nos para novas visitas.