24.12.09

JOÃO DE DEUS, O POETA AMÁVEL





Portugal reconheceu o seu valor ainda antes de ele morrer e fez-lhe uma homenagem nacional como nunca antes se vira. Depois, inumou-o nos Jerónimos e mais tarde no Panteão Nacional, lugar reservado a poucos. A sua obra literária está um pouco esquecida mas a sua Cartilha Maternal continua a ser usada nos Jardins-Escola com o seu nome.

João de Deus nasceu em S. Bartolomeu de Messines em 1830, morreu em Lisboa em 1896. Os anos que viveu gastou-os em ser amável com o mundo, a começar pela literatura que cultivou de forma inovadoramente simples. Só não suportava o analfabetismo, num país onde 80% da população não via uma letra. Por isso criou um método de aprendizagem da leitura que tinha como objectivo primeiro atrair as crianças – ao contrário dos métodos tradicionais de “repetição em coro e paulada na tola”.

Levou dez anos a cursar Direito em Coimbra. Boémia, convívio, sempre amável na sua bondade infinita. Quando de lá saiu, pouco se interessou pelos tribunais e tentou o jornalismo. Arranjaram-lhe um lugar de deputado mas era porque não o conheciam bem. Preferia continuar o amável convívio dos que amam simplesmente a vida.
Usou a Língua com a sensibilidade e a candura das crianças, recuperando formas tradicionais do cancioneiro ou o rigor lógico do soneto - como Antero de Quental sublinhou e reconheceu.

Mestre da sátira amavelmente certeira, e do poema gracioso, deixou algumas composições que ainda hoje encantam. Quem não se lembra do poema A Vida? Ou O Dinheiro: “O dinheiro é tão bonito / Tão bonito, o maganão! / Tem tanta graça, o maldito, / Tem tanto chiste, o ladrão! / (…) E elas acham-no tão guapo! / Velhinha ou moça que veja, / Por mais esquiva que seja, / Tlim! / Papo.”

Podemos lê-lo facilmente nos dois volumes da colecção Livros de Bolso Europa-América: Campo de Flores I (nº 265) e Campo de Flores II (nº 283).



DIA DE ANOS


Com que então caiu na asneira

De fazer na quinta-feira

Vinte e seis anos! Que tolo!

Ainda se os desfizesse…

Mas fazê-los não parece

De quem tem muito miolo!


Não sei quem foi que me disse

Que fez a mesma tolice

Aqui o ano passado…

Agora o que vem, aposto,

Como lhe tomou o gosto,

Que faz o mesmo, coitado!


Não faça tal; porque os anos

Que nos trazem? Desenganos

Que fazem a gente velho…

Faça outra coisa; que em suma

Não fazer coisa nenhuma,

Também lhe não aconselho.


Mas anos, não caia nessa!

Olhe que a gente começa

Às vezes por brincadeira,

Mas depois, se se habitua,

Já não tem vontade sua,

E fá-los, queira ou não queira!


A VIDA

Foi-se-me pouco a pouco amortecendo

a luz que nesta vida me guiava,

olhos fitos na qual até contava

ir os degraus do túmulo descendo.


Em se ela anuviando, em a não vendo,

já se me a luz de tudo anuviava;

despontava ela apenas, despontava

logo em minha alma a luz que ia perdendo.


Alma gémea da minha, e ingénua e pura

como os anjos do céu (se o não sonharam...)

quis mostrar-me que o bem bem pouco dura!


Não sei se me voou, se ma levaram;

nem saiba eu nunca a minha desventura

contar aos que inda em vida não choraram ...

......................................................

A vida é o dia de hoje,

a vida é ai que mal soa,

a vida é sombra que foge,

a vida é nuvem que voa;

a vida é sonho tão leve

que se desfaz como a neve

e como o fumo se esvai:

A vida dura um momento,

mais leve que o pensamento,

a vida leva-a o vento,

a vida é folha que cai!



A vida é flor na corrente,

a vida é sopro suave,

a vida é estrela cadente,

voa mais leve que a ave:

Nuvem que o vento nos ares,

onda que o vento nos mares

uma após outra lançou,

a vida – pena caída

da asa de ave ferida -

de vale em vale impelida,

a vida o vento a levou!



AROMA E AVE


Eu digo, quando assoma

o astro criador:

– Deus me fizesse aroma

de alguma pobre flor!



E digo, quando passa

uma ave pelo ar:

– Deus me fizesse a graça

de asas para voar!



Aroma da janela

me evaporava eu,

me respirava ela

e me elevava ao céu!



E quem, se eu fosse uma ave,

me havia de privar

a mim da luz suave

daquele seu olhar?

 




A CARTILHA MATERNAL



Este foi o grande contributo de João de Deus para a cultura e instrução de um país mergulhado na ignorância. Feliciano de Castilho já tentara impor um novo método mas faltava-lhe a arte da sedução pessoal de João de Deus. Incentivado por um grupo de amigos – criou e publicou em 1876 a Cartilha Maternal, que viria a ter um êxito estrondoso pela forma inovadora e intuitiva como abordava as primeiras letras. Teve detractores, obviamente, mas este método veio a ser aprovado pelo Governo para todo o país e foi muito utilizado no Brasil. Alexandre Herculano considerou a Cartilha “utilíssima e genial”. Em 1882 os seus amigos criaram a Associação das Escolas Móveis pelo Método de João de Deus, que viria a tornar-se na Associação dos Jardins Escolas João de Deus. Actualmente conta com 40 estabelecimentos de ensino, de norte a sul do país, entre os quais o de Torres Vedras.

João de Deus foi nomeado vitaliciamente Comissário Geral da Leitura e até ao fim a vida teve o reconhecimento de todo o país, que culminou numa homenagem nacional, com o rei D. Carlos a agraciá-lo com a grã-cruz da Ordem de Santiago da Espada.

18.11.09

SOEIRO PEREIRA GOMES: CENTENÁRIO DO NASCIMENTO








SOEIRO PEREIRA GOMES


«PARA OS FILHOS DOS HOMENS QUE NUNCA FORAM MENINOS»

Num único livro um autor pode encontrar a imortalidade. Soeiro Pereira Gomes, quando morreu em 1949, mal completara 40 anos, tinha escrito a grande obra-prima do neo-realismo português: ESTEIROS.

Não foi por acaso que, em 1971, a Europa-América o escolheu para nº 1 da sua conhecida colecção de Livros de Bolso. Pequeno romance, relata a vida de uma terra ribatejana de beira-rio onde um grupo de miúdos sobrevive trabalhando nos esteiros do Tejo, esses pequenos canais de água lodosa e lamacenta que alimentam a laboração das fabriquetas de tijolo. Na solidariedade dos pobres e nas manhas de fintarem a fome é que estes rapazes se afirmam e crescem. Soeiro P. Gomes tinha os olhos bem abertos e o espírito disponível, para entender as duras realidades sociais que o rodeavam. Ele, que tinha nascido entre a pequena burguesia rural do Douro, que tirara um curso de regente agrícola e arranjara um emprego de escritório numa empresa de Alhandra, não ficou indiferente perante as dores humanas que os seus olhos viam: miséria, desemprego, exploração do trabalho infantil, falta de equipamentos colectivos. Meteu a mão na massa social e dedicou-se ao associativismo cultural e ao activismo político. Escritor por vocação interior, passa ao papel as vivências do quotidiano em que se empenha por inteiro. Observa atentamente o mundo envolvente mas olha-o com uma enorme e comovente sensibilidade. E é esse sentimento avassalador que o vai levar ao sacrifício máximo de empenhar a vida ao serviço dos outros: militante do Partido Comunista Português, passa à clandestinidade, onde o mau passadio e as longas caminhadas lhe arruínam a saúde e acabam por levá-lo a uma morte prematura.

Deixou muitas páginas de literatura e intervenção política. Mas ESTEIROS continua a ser o seu grande livro. Uma obra que se tornou intemporal, e cuja estatura lhe é conferida, logo no início, por aquela que é, talvez, a mais bela dedicatória da literatura portuguesa: «Para os filhos dos homens que nunca foram meninos escrevi este livro».




ESBOÇO BIOGRÁFICO

1909- Nasce Joaquim Soeiro Pereira Gomes, em Gestaçô, concelho de Baião, a 14 de Abril. 1915- Vai viver para casa de uma tia em Espinho e começa ali a frequentar o ensino primário. 1920- Matricula-se em Coimbra no curso de regentes agrícolas. 1928- Após a conclusão do curso, durante a festa de formatura, conhece a futura esposa, Manuela Câncio Reis. 1930- Parte para Angola, para trabalhar na Companhia Agrícola de Cassequel, em Catumbela. Insatisfeito com o trabalho e com o clima, chocado com o tratamento dado aos nativos e com problemas de saúde, regressa no ano seguinte. 1931- Casa com Manuela Câncio Reis e emprega-se na fábrica Cimento Tejo, em Alhandra, para onde vai viver. 1934- Primeira aparição pública do casal, colaborando na revista Carnaval, da autoria de Francisco Filipe dos Reis, pai de Manuela. 1935- Envia o conto O Capataz ao jornal O Diabo para publicação. É cortado pela censura. São realizados melhoramentos na Charca da Hortinha e começam as lições de natação. 1937- É levada à cena a revista Sonho ao Luar, no Teatro Salvador Marques, em Alhandra. Adesão ao Partido Comunista. 1938- Inauguração da piscina do Alhandra Sporting Clube, iniciativa de Soeiro P. Gomes, inconformado por ver os miúdos pobres a chafurdarem nas águas lodosas da margem do Tejo. A piscina foi feita pela população. 1939- Início da publicação de crónicas no jornal O Diabo. 1940- A 15 de Fevereiro um grande ciclone devasta a região da Grande Lisboa. Soeiro Pereira Gomes e alguns amigos passam vários dias a socorrerem vítimas isoladas nos mouchões e outras ilhas e recantos do estuário do Tejo. Neste mesmo ano a editora Sirius, no Porto, publica a primeira edição de Esteiros. 1944- Após movimentos grevistas de grande amplitude na cintura industrial de Lisboa, Soeiro Pereira Gomes passa à clandestinidade. 1948- É eleito para o Comité Central do PCP. É-lhe detectado um cancro nos brônquios. 1949- A 5 de Dezembro falece em Lisboa, em casa da sua irmã, a escritora Alice Gomes, após um internamento de dois meses, com um nome suposto, no Instituto Português de Oncologia.








TEMPESTADE NO TEJO



- Arreia as velas, Chico!

Mas era tarde. Um golpe de vento rasgou de repente a vela grande e atirou Gineto contra o guincho.

- Agarra-te! – gritou o pai, dobrado sobre a cana do leme.

Uma vaga alta açoitou o barco, da proa à popa, outra vaga lambeu os oleados e penetrou nas cavernas. Gineto deslizou aos baldões até junto do timoneiro, que tentava agora colher a bateira.

- Pai: eu não tenho medo.

- Depressa! Salta…

- Vou buscar as roupas.

Ia voltar à proa; mas o arrais segurou-o. – Salta… senão morremos aqui!

(in: Esteiros)









BAPTISTA PEREIRA, O GINETO


Verão dos anos 50, praia da Nazaré, era eu miúdo. Há um burburinho no areal, gente a correr em direcção ao mar. Corro também. E vejo, então, um homem corpulento, calção preto, a escorrer água, rodeado de gente, alguém que lhe dá uma toalha,

deixem passar, deixem passar!

Ofegante, vem de um enorme esforço,

quem é? quem é?

– perguntam-se muitos.

Eh pá! É o Baptista Pereira, veio de S. Martinho do Porto a nadar até aqui!

Baptista Pereira! Nunca mais esqueci este nome. O melhor atleta português dos anos 50 e o primeiro com projecção internacional, campeão de natação de longo curso e resistência. Nascido em Alhandra em 1921, falecido e lá sepultado em 1984. Com um impressionante currículo desportivo, de que se destacam o recorde, em 1953, da travessia do Estreito de Gibraltar, e o da travessia do Canal da Mancha, em 28 de Agosto de 1954.

Infância à beira Tejo, miúdo dos esteiros e telhais, carregador de botes, salteador de laranjais para matar a fome, foi nele que Soeiro Pereira Gomes se inspirou para criar a figura inesquecível do Gineto, pé descalço e briguento, rebelde pela sobrevivência, que depois se fez o herói popular dos mares longínquos, ele que aprendera a enfrentar as águas revoltas das grandes invernias no Tejo.



23.10.09

COOPERATIVA DE COMUNICAÇÃO E CULTURA - TRINTA ANOS!


JÁ LÁ VÃO TRINTA ANOS…



Estava-se em 1979. As mais antigas colectividades de cultura e recreio queimavam os últimos cartuchos do associativismo tradicional, ao ritmo das festas marcadas por “bailes abrilhantados por famosos conjuntos musicais”. Tuna, Grémio e Operário enfrentavam ventos da mudança com as discotecas como formas alternativas de divertimento e a televisão como electrodoméstico de largo uso a todas as horas do dia e da noite. Torres Vedras alargava o espaço urbano, com novas gentes e novas exigências de vivência cultural a que não era alheio o aumento exponencial do parque escolar em todos os graus de ensino.
1979 foi um “ano-dobradiça”: final da louca década da Revolução, início da outra que traria normalidade e encontro com a Europa. Torres Vedras reproduzia em pequena réplica as contradições do país: o que era novo mal tinha força para se afirmar, o já velho adiava quanto podia a morte anunciada. O que fora sementes de futuro – caso do Cineclube, a grande referência cultural torriense de resistência ao salazarismo – não resistia ao tempo que o tornava em presente. Mas outros movimentos se ergueram, a pegar no testemunho. Entre eles, a Cooperativa de Comunicação e Cultura e o seu jornal ÁREA, projecto inovador na Escrita, na Arte, na forma de promover, ver e viver a Cultura.
Trinta anos. Tanto e tão pouco! Assim é o tempo, diverso e desmedido, desalinhado de pesos e medidas no seu permanente passar. JMD


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Testemunho de um fundador
BREVE HISTÓRIA DE UMA AVENTURA

Estão a decorrer este mês várias actividades comemorativas do 30º aniversário da Cooperativa de Comunicação e Cultura (CCC), uma das associações culturalmente mais inovadoras e dinâmicas da região.
Tendo sido um dos fundadores dessa associação, sou o seu sócio nº 2, recordo aqui um texto, por mim escrito por ocasião do 20º aniversário dessa associação, e onde se descrevia, em breves palavras, a história da CCC. Algumas partes foram actualizadas. É um ponto de vista.
Outros terão outras histórias para contar, esperando que aproveitem a ocasião para o fazerem.
Tudo começou porque um grupo de jovens irreverentes de Torres Vedras, que ainda não tinham “arrefecido” do calor da “revolução”, resolveu tornar visíveis as suas preocupações culturais e sociais, discutidas horas a fio à mesa dos cafés, na casa de uns e de outros, na sede do cineclube, ou no festival da Figueira. Foi de facto na Figueira da Foz, no intervalo dos filmes, que o “núcleo torriense” de espectadores desse festival, em Setembro de 1978, começou a delinear o novo projecto, aprofundado depois em incontáveis reuniões em casa do Fernando Mouro, mais tarde nas velhas instalações do Convento da Graça, alargando o número de participantes caçados ao nosso círculos de amigos do “liceu”, do “cineclube”, do “café”, do “Impulso”,…
A construção do jornal “Área” congregou uma geração, hoje entre os “quarenta e muitos” e os “sessenta”, os mais novos então a acabar o Liceu e os mais velhos recém licenciados em início de carreira docente, que tinham em comum um passado recente de activa vivência política e cultural durante os anos quentes de 74-75 e chegaram aos finais dessa década politicamente desalinhados à esquerda.

Editado pela primeira vez em Novembro de 1979, o seu conteúdo e o seu inovador grafismo, que muito deve ao Aurelindo Ceia, representaram uma verdadeira lufada de ar fresco no panorama editorial e cultural local, e mesmo nacional, de então.
Se um dia se fizer uma história rigorosa da inovação do jornalismo nacional após o 25 de Abril, de certeza que o “Área” irá figurar num lugar de destaque.
De publicação mensal, entre Novembro de 1979 e Junho de 1981, editaram-se treze números, sob a direcção do José Eduardo Miranda Santos.

Em 1979, no ano em que surgiu o “Área”, vivia-se um momento de viragem em Torres Vedras, simbolicamente representado pela mudança do título de vila para o de cidade.
Começavam a surgir novas preocupações, reflectidas em muitas reportagens do “Área”, como o ambiente, a expansão dos “mamarrachos”, o desordenamento territorial, a invasão do automóvel, o desenvolvimento da cibernética, temas tratados por este jornal, também nisso pioneiro a nível local, sem esquecer que este foi dos primeiros a nível nacional a alertar para a situação em Timor Leste.
Contudo a realidade acabou por se revelar mais complicada que o sonho. Iniciaram-se as primeiras rupturas pessoais no interior do projecto, inevitáveis quando a paixão era o motor que mantinha a chama do “Área”. A “Cooperativa de Comunicação e Cultura”, que sustentava a estrutura legal do jornal, deparando-se com essa realidade, ganhava um peso crescente, ambicionando outros caminhos, deixando o “Área” de ser o seu objectivo principal.

Duas faces da mesma moeda, “Área” e “Cooperativa...” representaram então duas visões para um mesmo projecto que, infelizmente, se revelaram inconciliáveis.
O “Área” conheceu então uma nova reestruturação, deixando de ser um regular e irreverente órgão de informação local, para se transformar ele próprio num objecto cultural, integrado num projecto mais vasto e ambicioso que apostou num outro tipo de intervenção.
A Cooperativa de Comunicação e Cultura apostou então em actividades mais viradas para o meio, como os célebres e inovadores passeios culturais. Revolucionou o panorama das artes plásticas a nível regional com as actividades desenvolvidas à volta da primeira galeria de arte em Torres Vedras, a Galeria NOVA, realizou eventos de grande impacto, como a inesquecível “Performarte”, organizou uma das primeiras exposições nacionais de Banda Desenhada, lançou livros e divulgou ciclos de cinema.

Hoje num novo espaço, com novos projectos, com uma direcção de gente mais nova, a Cooperativa de Comunicação e Cultura, na senda dos seus fundadores, é uma das raras associações que continua a renovar-se, quem em gente, quer em projectos.
Enfrentando hoje novos desafios, saradas feridas passadas, mesmo que à custa de novas feridas, o 30º aniversário da Cooperativa de Comunicação e Cultura deve reflectir sobre os caminhos trilhados no passado para melhor se consolidar como espaço cultural alternativo e inovador no panorama cultural da região.

Venerando Aspra de Matos, Blogue VEDROGRAFIAS




COOP: imagens actuais


Assinalando o 30º aniversário da fundação, a Cooperativa de Comunicação e Cultura acaba de publicar o número 19 do jornal ÁREA. Textos e ilustrações fazem dele um “objecto cultural” que apetece fruir. Olhares sobre o presente desta associação, algumas interrogações e reflexões acerca do papel essencial da cultura, o ÁREA 19 é para ser lido e guardado como mais um importante testemunho de uma experiência de trinta anos que não fica parada no tempo e procura renovar-se constantemente.

O projecto actual da CCC passa em grande parte pela exploração da fotografia como forma privilegiada de comunicação. Nesse sentido acaba de adquirir mais um edifício, próximo da sua Sede, que será um Centro de Fotografia. Este espaço dá corpo à iniciativa “Câmara Escura” e integra-se no Protocolo de Parceria Local “Torres ao Centro”, estabelecido entre o Município de Torres Vedras e seis instituições locais.

Para mais informação do que foi e é a CCC, aceder ao seu sítio na internet: http://www.ccctv.org/

18.9.09

ANTERO DE QUENTAL: HOJE E SEMPRE


UM TEXTO FUNDADOR DA NOSSA MODERNIDADE

A nova estátua de Antero de Quental, inaugurada há dias em Santa Cruz, além de recordar o Verão de 1870 que ele ali passou em companhia de Jaime Batalha Reis, vem lembrar-nos a obra de um autor que abalou até aos alicerces o velho edifício mental português e abriu perspectivas de modernidade que ainda hoje estão longe de completamente realizadas.
A obra de Antero é multifacetada, desdobrando-se por textos de intenção filosófica (de que se destacam as Tendências Gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX); de intenção poética (Sonetos e Odes Modernas); e de cariz social. Neste último grupo destaca-se aquele que, no dizer de Eduardo Lourenço, é um dos grandes textos fundadores da modernidade portuguesa: as Causas da Decadência dos Povos Peninsulares. Com ele, Antero participou nas chamadas Conferências do Casino, em 1871, que fizeram estremecer o velho e adormecido Portugal, ainda dominante apesar de politicamente constitucional. Ao lado de Antero estavam homens como Eça de Queirós, Oliveira Martins ou Batalha Reis, empenhados, todos eles, em rasgar horizontes e abater os estreitos limites da mentalidade portuguesa, emparedada entre mais de 80% de analfabetos e uma religião católica mal entendida e usurpada em proveito próprio por aristocratas e burgueses.
Logo pelo título Antero alarga o seu campo de análise à Península Ibérica, não a confundindo com essa forçada construção política chamada “Espanha” – de que Portugal, mais periférico, conseguira separar-se - fruto dos interesses dinásticos das monarquias que ignoravam a identidade e autonomia de povos tão diversos como os Bascos, os Galegos ou os Catalães.
E que Causas de Decadência são essas? Em janela à parte transcrevemos apenas o enunciado inicial, deixando ao leitor a descoberta do restante texto justificativo, belíssimo pela clareza e rigor, estimulante pela audácia da abordagem e desafio às ideias dominantes.



CAUSAS DA DECADÊNCIA DOS POVOS PENINSULARES

Em 1871 um grupo de escritores e pensadores promoveu uma série de dez conferências públicas nas quais se propunham debater as grandes questões sociais, filosóficas e políticas do seu tempo. Das dez, realizaram-se cinco. As restantes foram proibidas pelo Governo de então, presidido pelo Marquês de Ávila e Bolama.
O discurso de Antero de Quental, na noite de 27 de Maio de 1871, teve enorme repercussão e a sua influência chega aos dias de hoje através de múltiplas edições. Destacamos a mais recente pela Ed. Tinta da China, em Outubro de 2008, que tem a valorizá-la um prefácio de Eduardo Lourenço.
No Jornal de Letras de 3 de Dezembro de 2008, em crónica sobre esta edição, Guilherme de O. Martins refere-se assim ao texto de Antero: “ “O que está em causa na atitude do conferencista das CAUSAS é a apresentação de um caminho radicalmente novo, não para mudanças formais, mas para transformações capazes de compreender o género humano e a sua evolução. A um tempo, há a proposta de uma transformação radical e a procura de um fulcro pragmático para as mudanças sociais que se exigiam no sentido da justiça. E o que Antero verbera é o afastamento e a distância dos povos peninsulares relativamente a uma Europa «pensante e industriosa»

Dois excertos do discurso de Antero de Quental:

«Meus Senhores:A decadência dos povos da Península nos três últimos séculos é um dos factos mais incontestáveis, mais evidentes da nossa história: pode até dizer-se que essa decadência, seguindo-se quase sem transição a um período de força gloriosa e de rica originalidade, é o único grande facto evidente e incontestável que nessa história aparece aos olhos do historiador filósofo. Como peninsular, sinto profundamente ter de afirmar, numa assembleia de peninsulares, esta desalentadora evidência. Mas, se não reconhecermos e confessarmos francamente os nossos erros passados, como poderemos aspirar a uma emenda sincera e definitiva? O pecador humilha-se diante do seu Deus, num sentido acto de contrição, e só assim é perdoado. Façamos nós também, diante do espírito de verdade, o acto de contrição pelos nossos pecados históricos, porque só assim nos poderemos emendar e regenerar.

(…) é nesses novos fenómenos que se devem buscar e encontrar as causas da decadência da Península. (…) são três e de três espécies: um moral, outro político, outro económico. O primeiro é a transformação do catolicismo, pelo concílio de Trento. O segundo, o estabelecimento do absolutismo, pela ruína das liberdades locais. O terceiro, o desenvolvimento das conquistas longínquas. Estes fenómenos assim agrupados, compreendendo os três grandes aspectos da vida social, o pensamento, a política e o trabalho, indicam-nos claramente que uma profunda e universal revolução se operou, durante o século XVI, nas sociedades peninsulares. Essa revolução foi funesta, funestíssima. Se fosse necessária uma contraprova, bastava considerarmos um facto contemporâneo muito simples: esses três fenómenos eram exactamente o oposto dos três factos capitais, que se davam nas nações que lá fora cresciam, se moralizavam, se faziam inteligentes, ricas, poderosas, e tomavam a dianteira da civilização. Aqueles três factos civilizadores foram a liberdade moral, conquistada pela Reforma ou pela filosofia; a elevação da classe média, instrumento do progresso nas sociedades modernas, e directora dos reis, até ao dia em que os destronou; a indústria, finalmente, verdadeiro fundamento do mundo actual, que veio dar às nações uma concepção nova do Direito, substituindo a força pelo trabalho, e a guerra de conquista pelo comércio.»

ANTERO E O MAR

O mar é uma constante na poesia de Antero. Por isso a estátua dele em Santa Cruz está virada ao oceano...


Oceano Nox

Junto do mar, que erguia gravemente
A trágica voz rouca, enquanto o vento
Passava como o vôo do pensamento
Que busca e hesita, inquieto e intermitente,

Junto do mar sentei-me tristemente,
Olhando o céu pesado e nevoento,
E interroguei, cismando, esse lamento
Que saía das coisas, vagamente...

Que inquieto desejo vos tortura,
Seres elementares, força obscura?
Em volta de que idéia gravitais?

Mas na imensa extensão, onde se esconde
O Inconsciente imortal, só me responde
Um bramido, um queixume, e nada mais...


Redenção I

Vozes do mar, das árvores, do vento!
Quando às vezes, n'um sonho doloroso,
Me embala o vosso canto poderoso,
Eu julgo igual ao meu vosso tormento...

Verbo crepuscular e íntimo alento
Das cousas mudas; psalmo misterioso;
Não serás tu, queixume vaporoso,
O suspiro do mundo e o seu lamento?

Um espírito habita a imensidade:
Uma ânsia cruel de liberdade
Agita e abala as formas fugitivas.

E eu compreendo a vossa língua estranha,
Vozes do mar, da selva, da montanha...
Almas irmãs da minha, almas cativas!



Antero de Quental, in "Sonetos"
Fotos © Méon: Estátua de Antero de Quental na Praia de Santa Cruz, inaugurada em Agosto de 2009

19.8.09

CENAS DA ARTE CONTEMPORÂNEA



UMA ARTE SÓ PARA SI

MANIFESTO DO ARTISTA DESCONHECIDO

Michel H. Guichet – nome artístico – vive em Torres Vedras há 13 anos. Lançou há poucos dias um manifesto artístico de circulação restrita que introduz um conceito revolucionário na arte contemporânea e que ele designou por “His own art”.
Por razões que mais adiante se entenderão, só o LUGAR ONDE esteve no lançamento, o que nos permitiu tomar contacto com o artista e conhecer melhor as suas propostas. Em que consiste o conceito proposto? – foi a nossa questão inicial.
- A arte tem sido utilizada como forma de promoção dos artistas à procura de fama fácil. Cada um pretende ser o mais original, o mais radical. Há uma imensidão de propostas artísticas que não passam de mistificações, de fraudes… Qualquer um pega numas latas de tinta e faz uns borrões, depois diz que é arte abstracta. Ou pega num par de botas velhas , pendura-as num escadote e diz que é “uma instalação”. As galerias de arte estão cheias desta tralha, que o público visita com um ar muito sério, que ninguém percebe o que é mas que todos fingem apreciar. Há anos houve um cineasta que fez um filme que não tinha imagens, consumiu nisso uns milhares de euros de dinheiros públicos e não foi preso por este original conto do vigário. Foi até muito falado e discutido…
- Então o que é que você propõe?
- Proponho uma arte radicalmente individual, que nunca chegue ao público, que seja apenas vista pelo seu criador. É nesse sentido que tenho trabalhado. Tenho uma obra imensa que nunca será conhecida. Ultimamente fiz uma série intitulada “Linha Escura”, doze painéis representando o “ser indizível” e que destruí de imediato. Ficou apenas um registo em vídeo que, por testamento, será divulgado trinta anos após a minha morte. Aspiro a nunca ser conhecido. O anonimato é a glória suprema de quem sabe que a sua arte é intemporal.
- Acha possível criar uma semiótica coerente para este tipo de proposta? O que quer dizer com a designação “His own art”?
- Ouça, o público está arredado destas discussões. As galerias de arte, para além de algumas excepções, ninguém as visita, a não ser uma pequena elite intelectual que se esforça mas acaba por não perceber nada. Discutir semiótica a partir de propostas sem consistência é uma inutilidade. Recuso-me a alinhar nesta feira de vaidades. “His own art” é um conceito que retirei de uma experiência realizada há sete anos numa clínica psiquiátrica e que significa “Uma arte só para si”. É de uma radicalidade espantosa. O meu manifesto começa por não existir. E para ser coerente terei de admitir que nada tenho a dizer.
- Mas está aqui a dizer…
- Foi um acaso. Um desabafo!
E foi estranho este encontro com M. H. Guichet. Por isso investigámos um pouco e não foi difícil encontrar um fio da meada. Guichet filia-se provavelmente numa corrente artística conhecida por UNKNOWN ARTIST e que tem feito intervenções em diversas cidades europeias conforme se pode ler no sítio artmatters.blog.pt . Nele se faz referência, por exemplo, ao
Museu Virtual do Artista Desconhecido. Como é óbvio não encontramos lá qualquer referência à obra de Guichet. Fica-nos a grata sensação de que Torres Vedras está na senda da contemporaneidade. Já tínhamos alguns escritores que se definem pela “obra não publicada”. Temos agora um artista plástico que quer ser desconhecido, com uma vasta obra que só daqui a trinta anos chegará ao grande público. Aguardamos, impacientes. JMD


Uma breve pesquisa na internet leva-nos ao âmago da arte contemporânea. Experimente o leitor digitar no Google Imagens as palavras “instalação arte”. Vai ficar surpreendido. Tudo é arte? Parece que sim e «o limite é o céu», como diria o outro. A abrir verá uma instalação artística no centro de Beirute, um campo de 600 sanitas, pela artista plástica Nadia Sehnaoul, por ocasião do aniversário do início da guerra civil. Nada de admirar, experimente agora digitar Marcel Duchamp. Ele já abrira caminho à arte sanitária…




A FONTE DE DUCHAMP

"Fonte" é um urinol de porcelana branco, considerado uma das obras mais representativas do dadaísmo na França, e das mais notórias obras do artista Marcel Duchamp. Esta réplica de um mictório de porcelana foi originalmente comprada pelo artista numa firma de artigos sanitários, em Nova York. Duchamp assinou depois o objecto com o pseudónimo R. Mutt e inscreveu-o numa exposição, em 1917, no Salão da Sociedade Nova-iorquina de Artistas Independentes.
Foi com esta obra que Duchamp definiu pela primeira vez o conceito de "ready-made"- que influenciou inúmeros artistas desde então.
Defendendo a escultura original em 1917, Duchamp desafiou as idéias tradicionalmente pré-concebidas sobre a definição de arte. Afirmou que não importava se o "sr. Mutt" havia feito ou não a obra com sua próprias mãos, o importante era ele a ter escolhido. Portanto, o que importa não era a criação, mas a idéia e a escolha.
Como explica o sítio brasileiro
didotdesign.com.br/didot «o urinol invertido causou estranheza e não entrou na exposição, mas rompeu com os padrões artísticos da época. Duchamp pretendia propor um novo olhar e nunca limitar a arte. Ainda nos deparamos com obras que o nosso olhar não compreende, mas transpor esse limite pode ser uma rica experiência de cores, sensações, texturas, história, referências…»

MISTIFICAÇÃO OU GENIALIDADE?

Já nos anos 50 do século XX Umberto Eco teorizara o conceito de “obra aberta”. A produção artística tomava novos rumos que levavam o artista a renunciar à concepção de obra definitiva e a erigir o não-acabado, o provisório, o sugerido, como identidade privilegiada da proposta artística. Ao contrário da concepção clássica tradicional, a obra de arte assim concebida, “cada vez mais consciente das várias perspectivas de «leitura», apresenta-se como estímulo para uma livre interpretação orientada apenas nos seus traços essenciais.”(U. Eco, A Definição de Arte, Ed. 70, 2006).
Mas esta perspectiva era apenas o início de uma transformação radical da chamada “arte contemporânea”que, no limite, tende para a auto-destruição na medida em que denuncia como castradora e limitativa qualquer poética possível. A obra de arte começa por ser uma proposta desafiadora, tenta justificar-se numa poética original e única e acaba numa orgia de auto-aniquilamento. Um concerto musical termina com a destruição dos instrumentos, uma escultura é feita em cacos pelo seu criador, uma pintura é retalhada à navalha, uma instalação de espelhos fragmenta-se à marretada.
Vemos assim que o artista torriense Michel H. Guichet se limitou a levar ao extremo esta perspectiva. Que outros já estão a desenvolver, como nos mostra o chamado grupo dos “Artistas Desconhecidos”. De que você, caro leitor, provavelmente já faz parte e não nos quer dizer…

10.8.09

IMAGENS DO MEU OLHAR - Nª Srª dos Milagres - Freg. DOIS PORTOS, TORRES VEDRAS












"Não muito longe da Folgorosa [Dois Portos], no alto de um monte, a pequena capela de Nª Srª dos Milagres, com a sua pitoresca galilé, tem as paredes interiores revestidas com bons azulejos de tapete do século XVIII e um curioso tecto de masseira, de largos caixotões com pintura de ornatos de época posterior - final do século XVIII -, ostentando também legendas em latim tiradas dos textos sagrados. O ambiente conserva todo seu carácter. Quanto à capela-mor. precedida de arco triunfal com pinturas, é forrada com azulejos do século XVIII representando a Anunciação, a Adoração dos Pastores e Adoração dos Reis Magos. O tecto é também decorado com pinturas do século XVIII." (in Monumentos e Edifícios Notáveis do Distrito de Lisboa, Junta Distrital de Lisboa, 1963)
É um passeio que vale a pena. Não fui ao interior da capela porque estava fechada e não procurei a chave na povoação mais próxima, Via Galega. Esta visita foi para apreciar bem todo o exterior da capela, a que se adossam várias dependências nas traseiras, possivelmente casas de apoio para os dias de romaria (ou "círio", como se diz nesta região). Panorama lindíssimo, apesar de o monte não ser muito elevado.
O dia pode acabar com uma refeição num restaurante de Via Galega, cujo nome não fixei mas que me gabaram muito, onde servem um bom Bacalhau à Lagareiro.

FOTOS © MÉON

IMAGENS DO MEU OLHAR - Nª Srª dos MilAGRES Freg Dois Portos




















Pormenores de uma lindíssima capela rústica, situada na fronteira entre os concelhos de Torres Vedras e Sobral de Monte Agraço, na freguesia torriense de Dois Portos, perto do lugar de Folgorosa. Construção do século XVII/ XVIII. Orago: Nossa Senhora dos Milagres.
Fotos © Méon


30.7.09

OITOCENTOS ANOS DE FRANCISCANISMO











OITOCENTOS ANOS DE FRANCISCANISMO


Os Franciscanos vêm dos anos longínquos do século XIII até aos nossos dias a darem testemunho de uma certa forma de viver o cristianismo. Não por acaso, o historiador medievalista Jacques Le Goff, na sua biografia de Francisco de Assis, aponta quatro características dos valores franciscanos que lhe garantem actualidade: amor à natureza, liberdade de espírito, anti-consumismo e vida comunitária.
Aqui fica uma breve evocação, de cunho pessoal e sem pretensões historiográficas, sugerida pela passagem do oitavo centenário (1209-2009) da fundação da Ordem dos Frades Menores por aquele que ficou para a História como S. Francisco de Assis.




CONTEXTO HISTÓRICO


O franciscanismo surge no século XIII, num período de grandes transformações no espaço e nas relações de poder. É o tempo das cidades mercantis, inseridas no vasto campo de trocas entre a Europa setentrional e a Europa mediterrânica e do surgimento de uma rica classe de mercadores. Afirma-se uma nova mentalidade urbana centrada na vivência comunal, servida por artistas e intelectuais. A antiga autoridade episcopal necessita de novas roupagens para se manter influente e não hesita em adoptar comportamentos sumptuários e guerreiros, à maneira das famílias aristocratas que se impõem pelas armas e pelo dinheiro. O reverso desta realidade é a acentuação da pobreza de grandes massas populacionais e o contraste entre os poderosos e os excluídos. Nestes últimos encontram-se os doentes, sobretudo os leprosos, banidos do convívio humano, escorraçados, obrigados a anunciarem-se à distância para que ninguém deles se aproxime.
Francisco viveu em Assis todo este processo e parece ter sido especialmente sensível ao contraste gritante entre a doutrina evangélica e a prática espúria de certas autoridades religiosas. O leproso, figura pungente que já habita os livros sagrados do cristianismo, surge-lhe como o símbolo de todos os pobres e perseguidos.
Arremessando ao chão as vestes luxuosas da família endinheirada a que pertencia, abraçando e beijando os leprosos e confrontando o Papa com a possibilidade de uma nova maneira de viver o Evangelho, Francisco de Assis aponta uma alternativa revolucionária à sociedade do “ter” que se encontrava em ascensão e defende pelo exemplo, levado às últimas consequências, uma sociedade do “ser” alicerçada em valores que ainda hoje reconhecemos como actuais e de urgente propagação: moderação no uso de bens materiais, solidariedade social, respeito pela natureza.
Hoje reconhecemos a flagrante actualidade ecológica deste último preceito. Ele fundamenta-se numa visão global do universo em que a preservação de cada parcela é necessária ao equilíbrio e sobrevivência do Todo, entendido como obra de Deus que merece ser amada pelos homens. Não por acaso a Ordem Franciscana participa na Comissão Internacional do Ambiente, sob os auspícios das Nações Unidas. É o reconhecimento público de um pioneirismo que vem do século XII.


BIOGRAFIA DE S. FRANCISCO DE ASSIS




1181 ou 1182

Francisco nasce, em Assis, Itália, filho de Pedro Bernardone, rico mercador de tecidos, e de Donna Pica.


1200

Francisco é aclamado Rei da Juventude de Assis. O pai encanta-se com a fama do filho, que vê como possível continuador dos seus negócios.


1202

Participa na guerra entre Assis e a vizinha Perusia. Assis é derrotada e Francisco fica preso durante um ano. Na prisão anima os companheiros com sua alegria e canções de liberdade.


1204

Alista-se numa expedição de Assis e parte para a Apúlia, a libertar territórios do Papa Inocêncio III.


1205

Francisco sente um apelo divino e muda radicalmente de vida. Enfrenta a oposição do pai.


1206
Encontro com um leproso. Vence a natural repugnância e, beijando-o, dá-lhe uma esmola em dinheiro.
Inconformado com as atitudes desprendidas do filho, o pai de Francisco apela à autoridade do Bispo de Assis. Francisco despe as roupas e atira-as aos pés do pai, renegando para sempre uma herança valiosa, dizendo que “doravante não terei outro pai, senão o Pai Celeste".

1209

Dirige-se a Roma, com onze companheiros, e obtém do Papa Inocêncio III a aprovação da Regra e da forma de Vida de Frades Menores. É a data fundadora do Franciscanismo.
1219

Francisco vai ao Próximo Oriente, onde os cristãos europeus movem guerra aos Muçulmanos, para libertarem os Lugares Santos. Dando início ao diálogo inter-religioso e ao espírito ecuménico, é recebido benevolamente pelo Sultão do Egipto.


1224 / 1225

Montado num jumento, dedica-se à pregação apostólica.

1225

Fortes sinais de doença. Esmagado de dores e quase cego, compõe e canta, em Abril ou Maio, o Cântico do Irmão Sol ou das Criaturas, considerado por muitos como o mais significativo e expressivo texto do franciscanismo.
1226
Morre no dia 3 de Outubro. Dois anos depois foi canonizado pelo Papa Gregório IX.

1230

No dia 25 de Maio, os seus restos mortais são trasladados para a nova Basílica de São Francisco de Assis.

CITAÇÃO:

«A visão franciscana do homem é certamente original, comparada com as diversas interpretações humanistas ao longo da história. Francisco foi e propôs um novo tipo de homem a partir da sua original experiência de Deus e do modo original de tratar com todos os seres. Francisco foi um homem estruturalmente "simpático" a Deus, a todos os outros homens e a todas as criaturas. Podemos dizer que a "simpatia" por tudo é a primeira nota constitutiva do homem Francisco, de espírito aberto e fraterno, que vive convive com tudo e com todos. Francisco é um especialista da arte de viver, pois consegue fazer a experiência de todas as formas de vida desde o nascimento até a morte. Ele nasce, sente, vive, ama, trabalha e morre em comunhão com Deus, com os homens e com o universo. Ele não fica a ver a procissão dos seres a passar, mas vemo-lo totalmente imerso no mais íntimo da vida de toda a criação, em marcha. Ele sintoniza, ele está em simpatia com todas as expressões ou formas de ser, pensar e de viver. A sua experiência de humanista está profundamente marcada pela PRESENÇA DE DEUS, que ele vê em tudo e em todos. Estremece de ternura, de admiração e de espanto ao surpreender em si e nos acontecimentos, na história, nos homens e em todas as coisas animadas ou inanimadas, sensíveis ou insensíveis, a PRESENÇA encantadora do maravilhoso Criador.
O homem não é rival dos homens nem dos seres da criação. É um irmão universal. Devido à sua estrutura ontológica e psicológica de simpatia por tudo e todos, e à sua abertura à PRESENÇA TOTAL, Francisco é e propõe um projecto de homem como um SER EM RELAÇÃO: em relação dinâmica com Deus, com os irmãos, com os demais homens, com os seres irracionais e a própria vida.» Frei Miguel Negreiros, 1994

CONVENTO DE SANTO ANTÓNIO DO VARATOJO

No início do século XIX havia na região oeste diversos conventos franciscanos: Santo António (Lourinhã), São Bernardino (Atouguia da Baleia/Peniche), Bom Jesus (Peniche), São Miguel (Gaeiras/Óbidos), Santo António (Charnais/Merceana), Visitação (Vila Verde dos Francos), Barro (Torres Vedras) e Varatojo, às portas de Torres Vedras. Apenas este último sobreviveu até aos nossos dias. É o mais antigo instituto franciscano de Portugal. Fundou-o o rei D. Afonso V, por voto a Santo António. Lançada a primeira pedra em 1470, fez-se a inauguração em 4 de Outubro de 1474 com a presença do monarca. Teve como primeiros residentes 14 religiosos vindos do convento de S. Francisco, em Alenquer.
No século seguinte, durante o reinado de D. João III, e já depois do grande terramoto de 1531 que provocou grande estrago, fez-se a reedificação do convento
O que vemos hoje é um edifício composto de vários corpos de épocas diferentes, fruto de sucessivas adaptações a novas e diversas actividades: além de residência de frades – e do próprio rei D. Afonso V que nele tinha aposento próprio, - foi “convento de estudos da Província franciscana dos Algarves” durante dois séculos; a partir de 1680 até à extinção das ordens religiosas em 1834, foi colégio de missionários apostólicos. Depois das vicissitudes oitocentistas e do conturbado período do final da Monarquia e estabelecimento da República, foi sede do curso de Teologia durante alguns anos e, depois da Concordata de 1940, sede de Noviciado, que ainda mantém.
Da primitiva construção resta o belo pórtico da Igreja e o piso térreo do claustro. Um e outro valem uma demorada visita.
O pórtico ogival ostenta o carácter austero do gótico primitivo, tão condizente com a simplicidade franciscana. Do lado esquerdo vemos o escudo do rei fundador e do lado direito um rodízio de tirar água, emblema particular adoptado por D. Afonso V.
A glória deste convento é, sem dúvida, o belíssimo claustro, como descreve um antigo frade varatojano: “verdadeiro poema de beleza franciscana, na elegância e pequenez das colunas e na sobriedade dos arcos em ogiva (…), na luz que tudo inunda permitida pela humildade dos edifícios,(…) na «irmã glicínia», velha de séculos que, rugosa, se enlaça fortemente nas colunas…” (Frei Bartolomeu Ribeiro) Num dos ângulos situa-se o belíssimo pórtico manuelino da capela sepulcral dos antigos alcaides de Torres Vedras.
Ligada ao edifício e protegida pelo muro conventual, existe uma mata rústica. Sem atavios nem acrescentos, é a memória viva da flora autóctone peninsular com seus carrasqueiros antiquíssimos. Pelo meio, duas capelinhas de devoção mariana, recantos de paz e meditação, um carvalho milenar, o canto dos pássaros. Ali o mundo é diferente, imagem do fundador dos franciscanos que tanto amava a natureza e “falava às flores como se tivessem entendimento, e o mesmo fazia diante dos trigais e dos vinhedos, dos rochedos e das florestas, das belas paisagens ridentes, das fontes, dos jardins, da terra e do fogo, do ar e do vento.” (Do livro do P. David Azevedo sobre S. Francisco).
UM CONVENTO COM VIDA

Vivem actualmente no Convento do Varatojo três frades (António Morgado, Ildefonso e Fernando Fonseca) e oito sacerdotes (Padres: José Morais, Francisco Sabino, David Azevedo, Diamantino Faria, Crispim, Alexandre Jorge, Álvaro Silva, Paulo Ferreira e António Marques de Castro, o Superior da Casa), que colaboram na pastoral das paróquias da região Oeste.
Na ausência do superior da casa, falámos com o Padre David Azevedo (na foto) que nos elucidou sobre o presente e o futuro deste lugar. Em Setembro virão cinco noviços que aqui estarão um ano, numa primeira experiência de cumprimento total da regra franciscana, obedecendo aos preceitos da pobreza, obediência e castidade. O convento mantém-se com a ajuda de benfeitores mas enfrenta as dificuldades decorrentes da grandeza do espaço coberto e da mata. Agradece o apoio que tem recebido da Câmara Municipal de Torres Vedras, reconhecendo que ainda há muito a fazer para a preservação deste precioso monumento.
Padre Azevedo, autor de vários livros de espiritualidade franciscana, falou-nos da actualidade do ideal de S. Francisco, que inspirou as comemorações do 8º centenário da Ordem Franciscana. Sublinhou a diferença entre a ecologia profana – centrada no interesse – e a ecologia franciscana – uma “ecologia do encanto”, centrada na comunhão com a natureza e na fraternidade entre os homens. E recordou que os franciscanos sempre foram a ordem religiosa que mais se aproximou do povo, vivendo com ele na pobreza e no contacto com a “irmã natureza”.

CÂNTICO DAS CRIATURAS


Francisco de Assis

Altíssimo, omnipotente, bom Senhor,
Teus são o louvor, a glória, a honra
E toda a bênção.
Só a ti, Altíssimo, são devidos;
E homem algum é digno
De te mencionar.Louvado sejas, meu Senhor,
Com todas as tuas criaturas,
Especialmente o Senhor Irmão Sol,
Que clareia o dia
E com sua luz nos alumia.
E ele é belo e radiante Com grande esplendor:
De ti, Altíssimo é a imagem. Louvado sejas, meu Senhor,
Pela irmã Lua e as Estrelas,
Que no céu formaste claras
E preciosas e belas.

Louvado sejas, meu Senhor,
Pelo irmão Vento,
Pelo ar, ou nublado
Ou sereno, e todo o tempo
Pela qual às tuas criaturas dás sustento.
Louvado sejas, meu Senhor,
Pela irmã Água,
Que é mui útil e humilde
E preciosa e casta.

Louvado sejas, meu Senhor,
Pelo irmão Fogo
Pelo qual iluminas a noite
E ele é belo e jucundo
E vigoroso e forte. Louvado sejas, meu Senhor,
Por nossa irmã a mãe Terra
Que nos sustenta e governa,
E produz frutos diversos
E coloridas flores e ervas.

Louvado sejas, meu Senhor,
Pelos que perdoam por teu amor,
E suportam enfermidades e tribulações.
Bem-aventurados os que sustentam a paz,
Que por ti, Altíssimo, serão coroados. Louvado sejas, meu Senhor,
Por nossa irmã a Morte corporal,
Da qual homem algum pode escapar.
Ai dos que morrerem em pecado mortal!
Felizes os que ela achar
Conformes á tua santíssima vontade,
Porque a morte segunda não lhes fará mal! Louvai e bendizei a meu Senhor,
E dai-lhe graças,
E servi-o com grande humildade. “

16.6.09

A FEIRA QUE EL-REI MANDOU FAZER





Quando entrarmos no recinto da Feira de S. Pedro, no próximo dia 25 de Junho, estaremos a repetir o acto de ir à feira que vinte gerações de torrienses cumpriram ao longo de mais de 700 anos. E talvez nem lembremos que ela foi instituída em 1293 pelo rei D. Dinis, por Carta de Feira, para dinamizar as actividades económicas desta região, à semelhança do que fez com muitas outras em todo o país.

Um arco de 716 anos vem do passado e chega aos nossos dias, para nos lembrar que somos seres historicamente situados, cuja identidade se liga à vida desta comunidade em que vivemos.
Claro que Torres Vedras, no século XIII, estava bem longe da cidade de hoje, em tamanho e em habitantes. Era uma pequena urbe confinada ao espaço da actual “zona histórica”, derramada pela encosta sul do morro do castelo, e delimitada pela linha que passava pela Porta da Várzea, vinha ao actual Largo da Graça, seguia para a Corredoura junto ao Chafariz dos Canos e daqui inflectia em direcção ao Largo dos Pelomes e ponte sobre o Sizandro. Por isso é admirável que uma realização colectiva tão antiga como é a nossa feira medieval, trespasse os séculos e chegue aos nossos dias, com a mesma designação e idêntica finalidade.
Realizada em articulação com a festividade religiosa, a feira medieval, tal como agora, não se limitava à actividade de compra e venda de produtos. Era também espaço de folguedo e troca de notícias, numa época tão pobre de uns e outros no quotidiano duro dos camponeses e dos mesteirais. Os almocreves, com suas azémolas carregadas de peles secas, azeite, vinho, sal e muitas outras mercadorias, traziam e levavam novas e mandados, pois eram eles os meios de comunicação social destas recuadas épocas.
Ano a ano, por sete séculos, se vem repetindo este hábito de encontro, antigamente tão necessário à providência de bens de consumo e à circulação de notícias, como actualmente tão indicado para a mostra de serviços e de equipamentos, ou de lazer em volta de petiscos tradicionais.
Dos tempos medievos até ao pórtico do século XXI, as gentes torrienses continuam a fazer o que bem mandou El-rei D. Dinis. MD

UM ESTUDO CLÁSSICO SOBRE AS FEIRAS MEDIEVAIS

Publicada em 1943, a obra de Virgínia Rau “Subsídios para o estudo das Feiras medievais Portuguesas” continua actual, tanto pela frescura do estilo como pelas informações rigorosamente escoradas em documentos da época estudada.
Excertos:

«As feiras são um dos aspectos mais importantes da organização económica da Idade Média [em Portugal: séculos XII a XV]. Nascidas da necessidade de promover a troca de produtos entre o homem do campo e o da cidade, elas representam o ponto de contacto entre produtor e consumidor.»

«D. Dinis mandou fazer feira anual na vila de Torres Vedras, de 1 de Maio a 1 de Junho de cada ano, por carta de 20 de Março de 1293.
Se o seu conteúdo é semelhante ao de tantas outras cartas de feira que conhecemos, ela constitui uma excepção pelo facto de ser a única, neste reinado, em que expressamente se consigna a alguém os rendimentos da portagem e direitos da feira, que usualmente revertiam em proveito da coroa. Ela prova-nos, portanto, que o monarca concedia a sua mãe, a Rainha D. Beatriz, os proventos da feira, que passava uma carta de feira a seu pedido, mas que da autorização régia dependia exclusivamente o direito de mandar fazer feira.
Em 1318, a 28 de Abril, D. Dinis deu nova carta de feira anual ao concelho de Torres Vedras, modificando a data da sua realização, que passava a ser de 1 de Junho a 1 de Julho.»
(Feiras Medievais Portuguesas – subsídios para o seu estudo, Virgínia Rau, editorial Presença, Lisboa, 1982)


Amadeo de Souza Cardoso, Procissão, 1913



Tempo de feira, festas e círios.

Tempo de recordar os versos de António Lopes Ribeiro
que João Villaret e Paulo Renato tão bem declamavam…


Tocam os sinos da torre da igreja,
Há rosmaninho e alecrim pelo chão.
Na nossa aldeia que Deus a proteja!
Vai passando a procissão.



Mesmo na frente, marchando a compasso,
De fardas novas, vem o solidó.
Quando o regente lhe acena com o braço,
Logo o trombone faz popó, popó.



Olha os bombeiros, tão bem alinhados!
Que se houver fogo vai tudo num fole.
Trazem ao ombro brilhantes machados,
E os capacetes rebrilham ao sol.



Tocam os sinos na torre da igreja,
Há rosmaninho e alecrim pelo chão.
Na nossa aldeia que Deus a proteja!
Vai passando a procissão.


Olha os irmãos da nossa confraria!
Muito solenes nas opas vermelhas!
Ninguém supôs que nesta aldeia havia
Tantos bigodes e tais sobrancelhas!



Ai, que bonitos que vão os anjinhos!
Com que cuidado os vestiram em casa!
Um deles leva a coroa de espinhos.
E o mais pequeno perdeu uma asa!



Tocam os sinos na torre da igreja,
Há rosmaninho e alecrim pelo chão.
Na nossa aldeia que Deus a proteja!
Vai passando a procissão.


Pelas janelas, as mães e as filhas,
As colchas ricas, formando troféu.
E os lindos rostos, por trás das mantilhas,
Parecem anjos que vieram do Céu!


Com o calor, o Prior aflito.
E o povo ajoelha ao passar o andor.
Não há na aldeia nada mais bonito
Que estes passeios de Nosso Senhor!



Tocam os sinos na torre da igreja,
Há rosmaninho e alecrim pelo chão.
Na nossa aldeia que Deus a proteja!
Já passou a procissão.

19.5.09

PEDRO TAMEN E A SUA OFICINA DE PALAVRAS



PEDRO TAMEN: 50 ANOS DE TRABALHO POÉTICO

Toda a vida tem trabalhado com as palavras. Formado em Direito, foi jornalista, professor, director da Editora Moraes, colaborador da revista “O Tempo e O Modo”, administrador da Gulbenkian. Sempre escreveu e publicou poesia, reunida sob o título “Retábulo das Matérias”. É um dos nossos melhores tradutores, numa actividade que ele considera um exercício mental necessário para apurar a escrita própria – quando se reformou, em 2002, lançou-se à tradução do esplendoroso romance em sete volumes, de Marcel Proust, “Em Busca do Tempo Perdido, um trabalho que veio a ser reconhecido como de altíssima qualidade.
Em cinquenta anos de criação poética Pedro Tamen conseguiu uma enorme variedade e diversidade de temas, de ritmos e de processos. Há quem o acuse de escrever uma “poesia difícil”, mas essa é uma acusação comum a todas as grandes realizações literárias, como o sabem os leitores mais atentos. A qualidade normalmente é exigente, pede disponibilidade e não se dá com o preconceito. A recompensa vem depois, quando as cortinas do nosso entendimento se entreabrem para espaços inesperadamente luminosos. Pegue o leitor nos escritos deste grande poeta contemporâneo e veja lá se não temos razão.


POESIA: PODE ISTO INTERESSAR A ALGUÉM?

Percebo a tua dúvida, meu amigo! Nos tempos que correm parece uma futilidade falar/escrever sobre poesia, ainda para mais numa página de jornal… Quando há desemprego, criminalidade, medicamentos caros e pensões baratas, a grande crise!
Mas é por isso mesmo! Calma, não se trata de “trazer a beleza das palavras à fealdade da vida”, porque poesia não é isso, não é fugir para as nuvens, escolher o sonho, pairar sobre a realidade.
A verdade é que a linguagem nunca foi tão importante como é hoje, porque nunca tantos tiveram tanto acesso a ela, como hoje. É esta evidência que torna a arte poética cada vez mais actual e necessária. Perguntas porquê? Repara: os políticos, os professores, os advogados, os profissionais da publicidade, os jornalistas, os escritores, os ministros da religião, todos fazem da linguagem o grande veículo que une ou desune os homens. Ora a poesia é a realização mais avançada da linguagem humana porque explora todas as suas potencialidades: sentidos, sons, ritmos, ambiguidade, rigor, experimentalismo, transgressão. As grandes realizações de uma língua são as dos poetas que usam a palavra em toda a sua dimensão humana e a elevam à condição de arte.
Já vês porque insisto em trazer a poesia para aqui. Ler os poetas, mergulhar na complexidade dos seus versos, deixar-se conduzir pelas múltiplas veredas dos sentidos que nos propõem, descobrir ressonâncias interiores que nos sugerem, eis a aventura que melhor nos prepara para o entendimento do mundo em que vivemos.



POESIA DE PEDRO TAMEN:


“Escrevo com a volúpia de esquadrinhar os múltiplos sentidos de cada palavra, do ponto de vista sonoro e semântico”

1.
Adiro à tua mão como ter nome,
como ter medo e osso de ser homem.
Nas noites, essas luzes que me comem
são os olhos fechados desta fome.

Alicio a cidade como em jura,
ou exorcismo, ou esbracejar quieto.
Respiras baixo e tomas-me desperto
dos anos de silêncio e de secura.

Quando não falas falas, e conheces
as palavras que digo e não digo.
No teu gesto de lar em que me aqueces

são as ilhas achadas; e prossigo
a viagem sozinho, em que te esqueces
de mim, amor, teu nado-vivo amigo.

2.
Formado em direito e solidão,
às escuras te busco enquanto a chuva brilha.
É verdade que olhas, é verdade que dizes.
Que todos temos medo e água pura.

A que deuses te devo, se te devo,
que espanto é este, se há razão para ele?
Como te busco então se estás aqui,
ou, se não estás, porque te quero tida?
Quais olhos e qual noite?
Aquela
em que estiveste por me dizeres o nome.

3.
Por me dizeres o nome nascem fontes
noutro lugar do dia e verdadeiro.

E as ilhas são irmos para elas,
são montes de silêncio e liberdade
que levamos na boca e em segredo
nos nossos dedos cegos e cientes.

No fundo, não procuro nem procuras;
é na viagem mesma que nos temos.


BOCAGE

Já não sou. Já não serei
se fui. Agora à cova
além dos ossos e caroços
muito mais descerá..
O verso, o riso, o vinho,
a mão ladina sobre a carne morna,
tantas coisas sentidas, ressentidas,
intenções, bolandas, entreactos,
entradas por saídas, choros finos:
muito mais descerá.

Não sou, é certo, e não serei,
mas no descer de tudo
já nem fui.



OS NAUTAS

Quando até sobre o tarde navegavam

a luz que dentro vinha sobrepunha

a lantejoula aguda de outro sol

ao passo opaco, idêntico, cercando

os braços intranquilos, a surpresa

que só de pressentida lhes doía.


Ao frio sal que sob os pés sentiam

e à escuridão mais fundo, ao sonolento

e bruto som da corda e da madeira,

às dores de fome e ao gemido fraco

duma saudade parda, à solidão

sem espelho, à gula insaciada, ao medo


— a tudo combatia uma paixão

neles tão nova, nevoenta outrora,

qual a de ver, de ver de olhos abertos

até sentir no roçagar dos dedos,

a mínima paisagem, mais total

que os montes lerdos, pátrios e trocados:



a crispação da vela, o peixe lento

de súbito surgindo, ignotas flores,

cores purulentas, vasto e escasso espaço

para estrídulos pássaros abertos

e outra vida mor,e ainda bruma

que não sabem se é deste ou doutro sonho.

8.5.09

LUGAR ONDE - ABRIL 2009


VALEU A PENA?
Carta a um jovem da geração traída *

Pego no teu livro, meu caro Luís, e sinto a boca seca apesar da leitura silenciosa que faço dos teus versos: “Sou apenas mais um daqueles / de quem se poderá dizer /que pertencem / a uma geração traída.”Vi-te crescer por entre os nossos comícios e sessões de esclarecimento, as eleições primeiras para essa novidade absoluta que eram as autarquias nas mãos do povo ou as intermináveis reuniões das comissões de moradores. Tínhamos a ilusão de construir um mundo novo sobre as ruínas de um Estado Velho que nos empurrara para o beco do «orgulhosamente sós» da guerra colonial, esse absurdo histórico. Provavelmente não nos preocupámos muito contigo, ocupados que estávamos em te garantir a herança de um país bem diferente, radicalmente melhor, onde tu fosses, finalmente, feliz!Mas, trinta e cinco anos depois, leio o teu profundo desencanto:«E aqui onde me encontro, / onde nos encontramos, / eu e a minha geração, / sabemos agora que tudo isso valeu nada / porque sentimos / exactamente / as mesmas dores / as mesmas balas / mas em forma de / desemprego / salário mínimo nacional / emprego desqualificado / & etc e tal.»Procuro consolar-te com a LIBERDADE em que vives, que nós não tínhamos antes daquele ano de 1974. E recebo em pleno rosto o teu desabafo, irónico e tão doloroso:«Fizeram-nos infelizes / ou felizes sem razão / fizeram-nos fanáticos da bola / ignorantes da filosofia / sem partido / sem religião / sem entrada / e / sem saída profissional. / Agora casamo-nos / e divorciamo-nos/ rapidamente. // Tudo é uma questão / de margem de lucro.»Deixa-me que te diga, meu jovem Luís: nós não traímos a tua geração! Naqueles anos 74/75, acreditámos ingenuamente num futuro melhor para nós e para ti. Não sabíamos ainda que os exércitos marcham à velocidade dos mais lentos ou dos mais manhosos e calculistas. Os capitães que partiram as grades não quiseram parecer interesseiros e entregaram as chaves aos velhos carcereiros. E agora, que é de novo madrugada e o calendário diz que passam 35 anos depois daquele memorável 25, vemos passar na rua um jaime general enquanto todos os salgueiros maias vivem em presídios bolorentos. Os chefes desta república bebem, outra vez, o sangue fresco da manada e o povo, desiludido, deixou de gritar que “jamais será vencido”.Sim, Luís, ainda há quem acredite que o 25 de Abril valeu a pena. Mas muitos limitam-se a verificar que ganharam a liberdade mas perderam a segurança – trucidados pela eterna oposição entre esses dois pólos da vida humana!Agora, que se faz tarde para mim, quero acreditar em ti e na tua geração. Que vocês não vão ficar aí parados a gemer queixumes. Que têm uma palavra a dizer, uma carta a jogar, um país a refazer. Eu sei que não são fáceis as madrugadas redentoras. Mas ainda acredito, ainda acredito. Porque sem esperança a História é uma engrenagem sem sentido.
* A partir do livro A Cabeça de Fernando Pessoa, de Luís Filipe Cristóvão. O autor nasceu em 1979. Edição Ardósia, S/L, 2009.
Cartaz de Sebastião Rodrigues, 1977




O REI DE ÍTACA

A civilização em que estamos é tão errada que
Nela o pensamento se desligou da mão
Ulisses, rei de Ítaca, carpinteirou seu barco
E gabava-se também de saber conduzir
Num campo a direito o sulco do arado.




REVOLUÇÃO - DESCOBRIMENTO

Revolução isto é: descobrimento
Mundo recomeçado a partir da praia pura
Como poema a partir da página em branco
- Catarsis emergir verdade exposta
Tempo terrestre a perguntar seu rosto.




25 DE ABRIL

Esta é a madrugada que eu esperava
o dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substãncia do tempo.



OS ERROS
A confusão a fraude, os erros cometidos
A transparência perdida - o grito
Que não conseguiu atravessar o opaco
O limiar e o linear perdidos.

Deverá tudo passar a ser passado
Como projecto falhado e abandonado
Como papel que se atira ao cesto
Como abismo fracasso na esperança
Ou poderemos enfrentar e superar
Recomeçar a partir da página em branco
Como escrita de poema obstinado?

POEMAS DE SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESSEN, 1974/75

29.3.09

MIA COUTO




[Página LUGAR ONDE, jornal Badaladas, 20 de Março de 2009)

ESCREVIVÊNCIAS NA FRONTEIRA DE DOIS MUNDOS


O que se nota numa primeira leitura de Mia Couto é a capacidade para inventar ou adaptar palavras. Efeito de surpresa que é depois suplantado pela descoberta da sua mestria em contar histórias. Contudo, estas impressões iniciais não explicam, só por si, a extraordinária projecção de Mia Couto como escritor.
O que o torna um grande escritor da Língua Portuguesa, para além das características apontadas, é o que poderemos chamar a sua “escrevivência”: Mia Couto exprime admiravelmente pela palavra a situação original de um branco, filho de portugueses, que nasceu em África e fez dela seu berço, sua pátria e seu destino. Para o bem e para o mal. Primeiro como militante da Frelimo quando havia PIDE e guerra colonial; depois como construtor da independência na Cultura e na Ciência. Na escrita percebeu desde cedo que o caminho teria de ser o da inovação, na rota do que já faziam grandes escritores brasileiros como Guimarães Rosa e Graciliano Ramos ou Luandino Vieira em Angola. Inovação que significa “necessidade de desarranjar aquela norma gramatical, para deixar passar aquilo que era a luz de Moçambique, uma cultura de raiz africana” (entrevista à revista brasileira ISTOÉ, 2007).
Noutra ocasião Mia Couto afirmou:”A escrita que eu faço está na fronteira entre a prosa e a poesia. A poesia, mais do que uma técnica da escrita, mais do que um género literário, é uma visão do mundo, para mim é uma filosofia.” (Revista LER, Verão 2002). Ora, a poesia - sabemo-lo bem - transgride e supera, transforma e recria, é veículo privilegiado para o novo e o indizível. É na superação destas fronteiras – Europa / África; prosa / poesia - que se plasma a sua obra. Tão importante como o que se diz, é o modo de o dizer, pelo que não se pode usar o Português clássico como veículo de culturas tão diferentes. Há que o recriar e nisso a Língua de Camões mostra uma versatilidade espantosa. A comprová-lo, mais ma vez, aí está a obra fulgurante de Mia Couto.



PERCURSO

Filho de pais portugueses que fizeram vida em Moçambique, Mia Couto nasceu, vive e trabalha naquele território, sua pátria na luta que partilhou pela libertação e na construção do novo país independente. Foi jornalista. Formado em Biologia, dedica-se a projectos de defesa ecológica e preservação dos últimos santuários naturais daquele país. Escritor, está traduzido em diversas línguas. Entre outros prémios e distinções, foi galardoado, pelo conjunto da sua obra, com o Prémio Virgílio Ferreira; e com o Prémio União Latina de Literaturas Românicas, em 2007. Ainda nesse ano recebeu o Prémio Passo Fundo Zaffari & Bourbon de Literatura. Foi escolhido para ocupar, como Sócio Correspondente, a Cadeira nº 5 da Academia Brasileira de Letras.
Mia Couto tem 22 títulos publicados, abarcando poesia, crónica, contos e romance. Terra Sonâmbula, 9ª ed. em 2008, é considerada um dos 12 melhores livros africanos do século XX. Outros títulos conhecidos: Vozes Anoitecidas; Cada Homem é uma Raça; Estórias Abensonhadas; A Varanda do Frangipani; Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra; O Outro Pé da Sereia;Raiz de Orvalho e Outros Poemas; Venenos de Deus, Remédios do Diabo.

MIA COUTO POR ELE MESMO

«Não sou niilista, acredito que as respostas para os assuntos sérios podem ser encontradas também naquilo que faço nos meus livros, nesta brincriação, neste desafio aos sistemas de pensamento que até agora usámos e pelos quais fomos usados. Temos que inventar outros sistemas de pensar, autorizarmo-nos a pensar em poesia. Aquilo que faço é também a experimentação do próprio pensamento, dos modelos de pensamento, é uma ligação a esses universos para os quais não existe idioma. Para dar expressão a esses universos invisíveis é preciso criar mais do que palavras, é preciso criar um outro idioma.» [Entrevista ao jornal PÚBLICO, 15 Junho 1996]

SONO COLOQUIAL


Da velhice
sempre invejei
o adormecer
no meio da conversa.

Esse descer de pálpebra
não é nem idade nem cansaço

Fazer da palavra um embalo
é o mais puro e apurado
senso da poesia.

(Do livro
“Idades/cidades/divindades”, 2007)

[Entrevista à revista brasileira, 26 Julho 2007]

Revista ISTOÉ – Quando e por que começou a inventar palavras? Couto – É uma coisa que me acontece, meus pais sempre lembram disso, desde menino – uma certa desobediência em relação àquilo que era norma. Começa pelo meu próprio nome. Nasci António e, quando tinha dois anos e meio, decidi que queria me chamar Mia, pela relação de afecto que tinha com os gatos. Eu pensava que era um deles (risos). Mais tarde, a poesia foi uma escola de desobediência, de transgressão. E havia uma outra condição: o português de Moçambique, sendo o mesmo do de Portugal, não fala àquela cultura. Senti desde sempre a necessidade de desarranjar aquela norma gramatical, para deixar passar aquilo que era a luz de Moçambique, uma cultura de raiz africana. A descoberta dos escritores brasileiros foi uma felicidade imensa para mim, pois eles já estavam fazendo isso: usando a língua portuguesa, mas com uma outra marca cultural.


O FORASTEIRO

«Era um lugar que ficava para além de todas as viagens. Por ali só o vento passeava, aguamente. Naquele solitário chão há muito que o tempo envelhecera, avô de outroras.
Certa vez, porém, passou por ali um forasteiro. Era homem sem retrato nem versões. Se muito chegou, mais ficou. Todos receavam o medonhável intruso, o irreputado intromissionário. Nos olhos dele, em verdade, não aparecia nenhuma alma, parecia o cego espreitando fora das órbitas.
Quando as tardes se inclinavam, ele se aproximava da aldeia em busca de coisa que só ele sabia. Os aldeantes se perguntavam:
- Mas esse homem: de onde veio, quem é o nome dele?
Ninguém sabia. Ele aparecera sem notícia. Chegara em Fevereiro, disso se lembravam. O mês já se molhava, de água plantada. O estranho trazia um cão, seus passos se uniam um a dois. Homem e bicho multipingavam. Foram atravessando a terra matopada mas quando mais iam menos se afastavam. Quando desapareceram, além-árvores, a chuva parou, em súbito desmaio. Todos entenderam, todos se inquietaram.» (…)
[ Início do conto “A lenda da noiva e do forasteiro”, do livro Cada Homem é Uma Raça]