30.4.12

DOMINGO À TARDE NA LISBOA DE EÇA


Reler Eça é ver um filme de época, tal o poder evocativo da sua prosa.
Peguei no Primo Basílio e lá fui de novo à Lisboa oitocentista que ele descreveu com a mestria de um alvenel. É no final do primeiro capítulo.


(…)
Um homem grosso, de pernas tortas, curvado sob um realejo, apareceu então ao alto da rua; as suas barbas pretas tinham um aspecto feroz; parou, pôs-se a voltear a manivela, levantando em redor, para as janelas, um sorriso triste de den­tes brancos, e a «Casta Diva», com uma sonoridade metálica e seca, muito tremida, espalhou-se pela rua.

Gertrudes, a criada e a concubina do doutor de matemá­tica, veio encostar logo aos caixilhos estreitos da janela a sua vasta face trigueira de quarentona farta e estabelecida; adiante, na sacada aberta de um segundo andar, debruçou-se a figura do Cunha Rosado, magro e chupado, com um boné de borla, o aspecto desconsolado do doente de intestinos, conchegando com as mãos transparentes o robe-de-chambre ao ventre. Outras faces enfastiadas mostraram-se entre as bambinelas de cassa.

Na rua, a estanqueira chegou-se à porta, vestida de luto, estendendo o seu carão viúvo, os braços cruzados sobre o xale tingido de preto, esguia nas longas saias escoadas. Da loja, por baixo da casa do Azevedo, veio a carvoeira, enorme de gravidez bestial, o cabelo esguedelhado em repas secas, a cara oleosa e enfarruscada, com três pequenos meio nus, quase negros, chorões e hirsutos, que se lhe penduravam da saia de chita. E o Paula, com loja de trastes velhos, adiantou-se até ao meio da rua; a pala de verniz do seu boné de pano preto nunca se erguia de cima dos olhos; escondia sempre as mãos, como para ser mais reservado, por trás das costas, debaixo das abas do seu casaco de cotim branco; o calcanhar sujo da meia saía-lhe para fora da chinela bordada a missanga; e fazia roncar o seu pigarro crónico de um modo despeitado. Detestava os reis e os padres. O estado das coisas públicas enfurecia-o. Assobiava frequentemente a «Maria da Fonte»; e mostrava-se nas suas palavras, nas suas atitudes, um patriota exasperado.

O homem do realejo tirou o seu largo chapéu desabado e, tocando sempre, ia-o estendendo em redor para as janelas, com um olhar necessitado. As Azevedos tinham logo fechado vio­lentamente a vidraça. A carvoeira deu-lhe uma moeda de cobre; mas interrogou-o; quis decerto saber de que país era, por que estradas tinha vindo, e quantas peças tinha o instrumento.
Gente endomingada começava a recolher, com um ar der­reado do longo passeio, as botas empoeiradas: mulheres de xale, vindas das hortas, traziam ao colo as crianças adormecidas da caminhada e do calor; velhos plácidos, de calça branca, o chapéu na mão, gozavam a frescura, dando um giro no bairro; pelas janelas, bocejava-se; o céu tomava uma cor azulada e polida, como uma porcelana; um sino repicava a dis­tância o fim de alguma festa de igreja; e o domingo terminava, com uma serenidade cansada e triste.
(…)

28.4.12

LUGAR ONDE Nº 117 - UM MONUMENTO NACIONAL À NOSSA ESPERA



Página LUGAR ONDE / versão PDF


                                         *  *  *

                                          GRUTA CALCOLÍTICA DA ERMEGEIRA

                    UM MONUMENTO NACIONAL À NOSSA ESPERA

A Associação do Património de Torres Vedras, inspirada no lema deste ano do Dia Internacional dos Monumentos e Sítios – ver texto nesta página – decidiu realizar um programa de divulgação e sensibilização para este Monumento Nacional, tão pouco conhecido dos torrienses, a decorrer neste mês de Abril no Maxial, freguesia do Município de Torres Vedras com numerosos vestígios de ocupação humana desde a Pré-História. O mais significativo é a Gruta Calcolítica da Ermegeira – aldeia próxima da sede de freguesia – descoberta e explorada no final dos anos 30 do século passado. Do espólio existente avulta um par de pendentes (brincos?) e parte de um colar, de ouro, guardados no Museu Leite de Vasconcelos, em Belém, cuja valia e raridade explicam a classificação daquela estação arqueológica como Monumento Nacional.
Da gruta resta apenas uma parte da calote, o que se explica pela ação do tempo e algum vandalismo. Mas aquele é um vestígio importante a preservar e que está em risco de ser desclassificado devido ao estado de abandono.

PROGRAMA – mês de ABRIL:
Dias 17 a 23
               No Auditório da Junta de Freguesia do Maxial:
              - Pequena exposição alusiva ao período calcolítico, com peças do Museu Leonel  
                Trindade, de Torres Vedras             
      - Sessões com alunos das Escolas do Maxial, em horas a definir

Dia 21 (sábado)
             15H30: Autocarro da Câmara Municipal de Torres Vedras, junto ao Tribunal, para quem 
             quiser deslocar-se ao Maxial
             16H00 – Auditório da Junta de Freguesia: Sessão evocativa e documental sobre a Gruta da 
       Ermegeira     
             17H30 – Visita ao local da Gruta Calcolítica da Ermegeira
Dia 22
            09H00:Caminhada com passagem pelo local da gruta. Partida frente à Junta de Freguesia do
           Maxial. Percurso com cerca de 10 km, de nível fácil, aberto ao público em geral.

Este programa foi organizado com a colaboração da Junta de Freguesia do Maxial, do Município de Torres Vedras e dos técnicos do Museu Municipal Leonel Trindade, de Torres Vedras. Assinala-se, igualmente, a participação do prof. Jorge Ferreira da Silva que executou réplicas perfeitas do valioso espólio  da Gruta, em exposição na Junta de Freguesia do Maxial. | MD


Aspeto atual da gruta calcolítica da Ermegeira




Reconstituição da gruta, de acordo com o relatório de Manuel Heleno, seu investigador.
Desenho de José Pedro Sobreiro, exposto na Junta de Freguesia do Maxial.



                                                                 *  *  *


DIA INTERNACIONAL DOS MONUMENTOS E SÍTIOS

Mais uma vez a ADDPCTV assinala o Dia Internacional dos Monumentos e Sítios, 18 de Abril, com um conjunto de iniciativas que estão integradas no Programa Nacional coordenado pelo IGESPAR – Instituto de Gestão do Património Arquitetónico e Arqueológico.
Este Dia Internacional foi criado pelo ICOMOS (Conselho Internacional dos Monumentos e Sítios) a 18 de Abril de 1982 e aprovado pela UNESCO no ano seguinte, com o objetivo de sensibilizar o público para a diversidade e vulnerabilidade do património, bem como para o esforço envolvido na sua proteção e preservação.
Os temas anualmente sugeridos pelo ICOMOS pretendem promover o estabelecimento de uma ligação efetiva entre as realidades locais, regionais, nacionais e internacionais. Assim, através desta data comemorativa, pretende-se celebrar o património nacional, mas, também, a solidariedade internacional em torno da salvaguarda e da valorização do património de todo o mundo. O tema deste ano é: «Do Património Mundial ao Património Local: proteger e gerir a mudança»


                                                    *  *  *





Pendentes de ouro encontrados na gruta(expostos no Museu Nacional de Arqueologia, em Belém)



Réplicas em latão (pendentes e contas tubulares), executadas por Jorge Ferreira da Silva



DESCOBERTA DA GRUTA DA ERMEGEIRA

«(…) Em 1939 descobriu-se casualmente na Ermegeira, freguesia do Maxial, concelho de Torres Vedras, na Quinta de Entrecampos, a cerca de 50 metros da residência existente na mesma, uma gruta artificial.
O aparecimento de um par de brincos de ouro e quatro tubinhos de folha enrolada do mesmo metal, ocasionaram a destruição de parte do monumento e das ossadas e abundante cerâmica que possuia.
Foi o Museu Etnológico, que, apesar da doença que nesse ano sofreu o seu director, se esforçou por salvar algo do que restava, se inteirou do destino dos objectos de ouro, comunicou ao Instituto de Arqueologia (Vid. A Voz, de 19 de Dezembro de 1939) e à sub-secção de Antiguidades da Junta Nacional de Educação o valor do achado e os prejuízos sofridos com o seu remeximento.
Não ficou por aqui a acção do mesmo Museu. Obteve do Sr. Lopes da Silva, gerente da agência do Banco Ultramarino em Torres Vedras, a cedência dos brincos que adquirira numa ourivesaria local e de cinco  tubinhos, já que os outros quatro foram derretidos, e promoveu a limpeza da mesma gruta e a crivagem da terra tirada para fora. (…)
(…) A gruta artificial da Ermegeira está aberta nas camadas cretáceas, vulgarmente designadas «grés de Torres» (neocomiano e aptiano). Apresenta hoje só câmara, com a abóbada e a parte lateral norte des­truídas pelos violadores e com diâmetros que oscilam entre 4m,30 e 4m,5o. A altura do fundo à superfície mede 3m,20, não podendo por isso a abóbada ir acima de 2m,50. Não se pode já precisar o seu meio de comunicação com o exterior: Corredor, se o houve, foi destruído por um corte feito para abertura de um caminho; e a clarabóia, se existiu, foi demolida com a abóbada. Contudo, o encontro de uma laje, ao meio do fundo da câmara, auto­riza a presunção da existência de clarabóia, mas só a presunção, porque não longe, na freguesia de Monte Redondo, na Quinta das Lapas (…), há grutas da mesma época (…)»

in: Manuel Heleno, GRUTA ARTIFICIAL DA ERMEGEIRA, Separata do vol. II de ETHNOS, revista do Instituto Português de Arqueologia, História e Etnografia, Lisboa, 1942



18.4.12

HOMENAGEM A ANTERO

Estátua de Antero, na praia de Santa Cruz, Torres Vedras


Deixei AQUI uma homenagem ao grande poeta cuja data de nascimento hoje se comemora.
E recordo o que já aqui se escreveu, com fotos do monumento a Antero, na praia de Santa Cruz- TVedras.

6.4.12

FERNANDO JORGE FABIÃO



Encontrámo-nos há dias numa tertúlia no centro histórico de Torres Vedras.
Fernando J F faz-me recordar um velho amigo que nunca me deixava vir de casa dele sem me oferecer laranjas ou ameixas, ou melão... conforme a época.


Obrigado por mais esta dádiva, caro amigo! Os teus poemas têm o sabor dos frutos.


....................................................................................................

 A LINGUAGEM É UMA PELE


Aprendemos a vocação das aves
porque nem sempre voar é assunto de ave

as coisas mudam de cada vez que olhamos
para elas

basta alguém querer regressar à inocência
a essa parte intocável do texto
para que outro olor         outro alvoroço
ilumine o olhar.

Escrevemos na parede interior dos pulsos
a linguagem é uma pele.

                   *  *  *

FOI COM AS MÃOS QUE VI


É na pele que o pensamento
inscreve a íntima caligrafia
e rejubila ante o inaudito de um nome
é nela que se refletem os espelhos
e o mar acede às minas do corpo
todo o meu cantar fala do deflagar do branco
no mapa da pele
foi com as mãos que vi
foi com elas que desatei a sombra
e resguardei a casa.