28.8.11

PÁGINAS ESQUECIDAS - 2




O tema deste soneto é o mesmo do poema de Soares de Passos, do post anterior. O tratamento, porém, é bem diferente.

PARA ALÉM

 É para além de tudo o que alcançamos
que se adivinha enfim esse horizonte,
onde dormem os sonhos que beijamos
e a nossa sede tem a única fonte.


Há para além do céu ainda mais céu
se houver ânsia no olhar que o reflectir:
o céu mais vago e fundo é só um véu
que a alma rasga pra poder seguir...


É para além do amor que me adormece
nesta loucura doce de te olhar
que o coração pressente o que é amar.


Além da vida há vida, além é o norte:
e quando mortos, ainda a nossa prece
levantará as mãos além da morte.


António Patrício

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ANTÓNIO PATRÍCIO*
(Porto, 1878 - Macau, 1930)

Formado em Medicina, António Patrício enveredou pela carreira diplomática, ocupando lugares de cônsul, ou desempenhando missões em cidades de diversos países e continentes - Cantão, Manaus, Brémen, Atenas, Istambul, Caracas e Londres. Estava a caminho de uma missão na China quando morreu.
De formação e sensibilidade aristocrática, aderiu ao ideário republicano e democrata.
Deixou uma assinalável obra literária, com expressão na poesia, no teatro e no conto. "Toda a sua obra literária é percorrida por um grande frémito  espiritual, em que a busca do absoluto no amor, o vitalismo nietzschiano e a ideia do sacrifício iniciático, o sentimento tão português da saudade, se projectam nos grandes mitos da nossa história."
Visíveis, também, as marcas da sensibilidade literária da época, o simbolismo e o decadentismo.
As suas obras estão publicadas na Assírio & Alvim:

POESIA COMPLETA, 2ª ed, 1989
SERÃO INQUIETO ( contos), 1979
TEATRO COMPLETO, 1982

* A partir do DICIONÁRIO DA LITERATURA PORTUGUESA, org. e dir. de Álvaro Manuel Machado, editorial Presença, Lisboa, 1996; entrada: Patrício, António, texto de Urbano Tavares Rodrigues.

24.8.11

PÁGINAS ESQUECIDAS -1

Não, não é um poema tétrico, lúgrube. Nem tem nada a ver com uma pretensa "estética gótica".
É, sim, um hino ao Amor, vencedor da morte.
Não por acaso, este poema era de apresentação quase obrigatória nos saraus da segunda metade do século XIX, declamado por jovens perante o olhar enternecido da assistência. O ritmo magestoso, a cadência do verso decassílabo, a expressão sonora das palavras, tudo contribui para fazer deste poema um clássico da chamada estética ultra-romântica. Seu autor:
(António Augosto) SOARES DE PASSOS





O NOIVADO DO SEPULCRO
Balada
Vai alta a Lua! Na mansão da morte
Já meia-noite com vagar soou;
Que paz tranquila; dos vaivéns da sorte
Só tem descanso quem ali baixou.


 Que paz tranquila!... Mas ao longe, ao longe
Funérea campa com fragor rangeu;
Branco fantasma semelhante a um monge,
De entre os sepulcros a cabeça ergueu.


 Ergueu-se, ergueu-se!... Na amplidão celeste
Campeia a lua com sinistra luz;
O vento geme no feral cipreste,
O mocho pia na marmórea cruz.


 Ergueu-se, ergueu-se!... Com sombrio espanto
Olhou em roda... não achou ninguém...
Por entre as campas, arrastando o manto,
Com lentos passos caminhou além.


 Chegando perto duma cruz alçada,
Que entre os ciprestes alvejava ao fim,
Parou, sentou-se e com a voz magoada
Os ecos tristes acordou assim:


 Mulher formosa, que adorei na vida,
E que na tumba não cessei de amar
Porque atraiçoas, desleal, mentida,
O amor eterno que te ouvi jurar?


 Amor! Engano que na campa finda,
Que a morte despe da ilusão falaz:
Quem de entre os vivos se lembrará ainda
Do pobre morto que na terra jaz?


 Abandonada neste chão repousa
Há já três dias, e não vens aqui...
Ai, quão pesada me tem sido a lousa
Sobre este peito que bateu por ti!


 «Ai, quão pesada me tem sido!». E em meio
A fronte exausta lhe pendeu na mão,
E entre soluços arrancou do seio
Fundo suspiro de cruel paixão.


 Talvez que rindo dos protestos nossos,
Gozes com outro de infernal prazer;
E o olvido cobrirá meus ossos
Na fria terra sem vingança ter!


— Oh nunca, nunca!—de saudade infinda,
Responde um eco suspirando além...
— Oh nunca, nunca! — repetiu ainda
Formosa virgem que em seus braços tem.


 Cobrem-lhe as formas divinais, airosas,
Longas roupagens de nevada cor;
Singela coroa de virgíneas rosas
Lhe cerca a fronte de um mortal palor.


 Não, não perdeste, meu amor jurado:
Vês este peito? Reina a morte aqui...
E já sem forças, ai de mim, gelado,
Mas ainda pulsa com amor por ti.


 Feliz que pude acompanhar-te ao fundo
Da sepultura, sucumbindo à dor;
Deixei a vida... que importava o mundo,
O mundo em trevas sem a luz do amor?


 Saudosa ao longe vês no céu a Lua?
—Oh! Vejo, sim... recordação fatal!
— Foi à luz dela que jurei ser tua
Durante a vida, e na mansão final.


 Oh! Vem! Se nunca te cingi ao peito,
Hoje o sepulcro nos reúne enfim...
Quero o repouso do teu frio leito,
Quero-te unido para sempre a mim!


 E ao som dos pios do -cantor funéreo.
E à luz da lua de sinistro alvor,
Junto ao cruzeiro, sepulcral mistério
Foi celebrado, de infeliz amor.


 Quando risonho despontava o dia,
Já desse drama nada havia então,
Mais que uma tumba funeral vazia,
Quebrada a lousa por ignota mão.


 Porém mais tarde, quando foi volvido
Das sepulturas o gelado pó,
Dois esqueletos, um ao outro unido,
Foram achados num sepulcro só.

* * *


 
CONTEXTUALIZAÇÃO DO POEMA

«Noivado do Sepulcro é um poema do autor ultrarromântico Soares de Passos (1826-1860). Sofrendo da doença da época, a tuberculose, nunca deixou, contudo de se afirmar como um defensor dos ideais do progresso e da liberdade, circunstâncias que vão espelhar-se na sua obra. Autor de muitos outros textos poéticos, nomeadamente O Firmamento, é, sem dúvida, O Noivado do Sepulcro, o seu mais célebre poema. Constituindo as delícias de um gosto da época, caracterizado pelo apego ao sofrimento hiperbolizado, resultado das contrariedades do amor e das vidas, este texto poético era frequentemente recitado nos saraus burgueses, acompanhado ao piano. É considerado um dos momentos altos do ultrarromantismo português.
Integrado numa estética assente na hiperbolização dos sentimentos, a compreensão deste poema só pode ser clara, se visto como uma unidade do conjunto da sua obra que tematicamente atira o leitor para "o pressentimento de uma morte precoce, associado ao desgosto patriótico".
Fruto da escola ultrarromântica, O Noivado do Sepulcro e a obra de Soares de Passos, embora caracterizados por alguma banalidade substantiva, conseguem sair das linhas piegas e lamechas que caracterizam esta estética. Apresentando uma majestade, uma magia e uma doçura rítmica, permitem a sua associação com o mundo da música.»
Noivado do Sepúlcro. In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2011. [Consult. 2011-08-24].
Disponível na www: .

23.8.11

LUGAR ONDE de 19 de Agosto de 2011 no BADALADAS



JOÃO RUI DE SOUSA: OS POETAS SÃO PONTES

Poesia nos tempos que correm? Para quê? Não mata a fome a ninguém…
Mas ainda hoje ecoa o brado de Natália Correia - “Ó subalimentados do sonho/ a poesia é para comer!” Incansavelmente, João Rui de Sousa faz há muitos anos o inventário das justificações da poesia. Leia-se “A utilidade dos poetas”, do livro Quarteto para as próximas chuvas (Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2008):



Os poetas são pontes
para numerosos recados.

 Ora eles (construindo-se) constroem,
com o eclodir das suas imagens e metáforas
oásis e palácios reinventados; ora eles,
alimentando-se com a rudeza da pedra,
ou mesmo com caliça e enxofre,
abrem espaço para recintos calamitosos,
para o zimbro do sofrimento.

 Andava pelos meus 15 anos quando descobri a poesia contemporânea nas páginas de um suplemento literário, clareira de luz num jornal soturno – o Correio do Ribatejo - semanário regional publicado em Santarém e de que meu pai era assinante. Essa página era feita por João Rui de Sousa e despertou o meu amor pela Literatura. Habituei-me a recortar poemas e a copiar prosas, que guardava depois num álbum de capa preta. Muitos anos depois, num jantar em Torres Vedras, pude agradecer pessoalmente a João Rui de Sousa esse trabalho de divulgação. Esta página LUGAR ONDE tem sido um tributo a esse grande poeta que me iniciou e faço-a mensalmente na convicção, talvez ingénua, de que possa despertar alguns jovens de hoje para o gosto dos livros e para o texto poético.

Sim, a poesia é necessária. Como diz João Rui de Sousa no final do poema: “eles (os poetas) podem, com palavras de alvor / e de resistência, ajudar a erguer as traves / de uma cidade aberta, de uma pátria livre.” |JMD

                                                                                * * *
POESIA AO JANTAR





Foi entre Fevereiro e Abril de 1991, há 20 anos! A Cooperativa de Comunicação e Cultura convidou quatro poetas para quatro jantares, no Restaurante D. Fuas, no Centro Histórico de Torres Vedras. Em 23 de Fevereiro veio Pedro Támen; em 9 de Março, Eugénio de Melo e Castro; em 23 de Março foi a vez de João M. Fernandes Jorge; e em 6 de Abril encerrou-se o ciclo com João Rui de Sousa. No último dos quatro folhetos então publicados, com a belíssima marca gráfica de Aurelindo Ceia, escrevia-se: “Foi primeira preocupação na organização deste ciclo, não só divulgar poesia e possibilitar relações de proximidade entre o autor e seus leitores, como deles fazer um acto de comunicação e prazer partilhados. Para isso, decidiu-se servir poesia ao jantar.” Na foto, junto à parede do fundo: Andrade Santos, João Rui de Sousa e Manuela Gomes, que fez a apresentação do poeta.
                                                                                      * * *

O POETA E A SUA POESIA
Nascido em 1928, João R de Sousa revela-se como poeta, em livro, na década de 60 do século passado, com Circulação. De inicial formação técnica agrícola, passou às Letras com a Licenciatura em Ciências Histórico-Filosóficas. Trabalhou na Biblioteca Nacional como investigador de espólios literários. Foi um dos fundadores da revista literária Cassiopeia. A propósito da Obra Poética (1960-2000 ), publicada pela Dom Quixote em 2002 e que reúne toda a sua produção até essa altura, Joana M. Frias sublinhou que a poética de João Rui de Sousa se organiza em torno de duas ideias chave: visão existencialista, “dominada por uma expressão de angústia”; e um recorte clássico do discurso “assente em princípios como a harmonia, o equilíbrio e a regularidade, a nitidez e o rigor da construção” (Revista Relâmpago, nº12, Abril 2003). Lavra e pousio ( 2005) e Quarteto para as próximas chuvas(2008), são os títulos mais recentes da sua poesia, já muitas vezes distinguida com diversos prémios.
***

DEPOIS DE AMANHÃ A PRIMAVERA
 A dadivosa mãe que em tudo existe
para além do só remédio só palavra
um cobertor de esperanças para o medo
três girassóis lindíssimos desdobráveis
 A boca na boca e as lágrimas
mais azuis de brinquedos e de imensos
lençóis de inventar os dias límpidos
A dadivosa mãe as tardes quentes
 Florescer a noite de agasalhos
de corações em pé no destemor
alimentar as órbitas fraternas
de iluminar raízes dança pura
 Ó música sem tédio dos cabelos
do teu olhar do cheiro dos reflexos
desta razão solar! Em caule e rama
- ó dadivosa mãe - tudo desperta!

***

IR PELO MAIS LARGO

Eu sonho-me eu sobro-me eu excedo-me.
Jamais permitirei que me aparafusem
à parede das restrições. Jamais me coibirei
de colorir com as cores mais vivas os vidros
interiores. Jamais impedirei a explosão
contínua de mim mesmo (ou seja: de todo
o granito que aí se acoite).
 Irei pelo mais largo,
pela máxima amplitude de voz
e de palavras, pelos horizontes
mais fundos e verdejantes,
pelo sagrado voo e pelas pastagens
de uma excelsa ciência:
a de nada trair de essencial
à possível harmonia do mundo,
e à mais fraterna visão libertária.

***
LÍMPIDAS PALAVRAS
Eram límpidas palavras:
 eram insectos perfeitos
que não passavam por larvas;
 eram águas em corrente
fruídas logo à nascença
no entremeio das fragas;
 eram jovens diligentes
que sabiam como os lábios
ardiam antes da fala.

1.8.11

Esqueço...

Hopper


(...)
Esqueço o nome esqueço a minha história
que oscila entre a harmonia solar do dia
os dispersos e múltiplos papéis as coisas que se perdem
os nervos nivelados pelas nuvens
a miséria de homens que nem mesmo pensam que
nem podem pensar nessa miséria que outros homens lhes impõem
minha desconfortável casa de poeta
amigo das ceifadas flores das variegadas cores
que um instante belas logo elas se da vida despediram

(...)

Ruy Belo, Toda a Terra, A sombra o sol.