22.1.08

VITORINO NEMÉSIO - Se bem nos lembramos...




Recordo o professor que fazia das aulas uma viagem assombrosa pelas avenidas da literatura. Referências caóticas, por vezes. Outras, de humor desconcertante. Expressivo como ninguém, emocionava-se com uma citação para logo se rir de uma piada cujo alcance só ele percebia.
No exame de Cultura Portuguesa não me fez perguntas. Esperou apenas que eu seguisse os seus raciocínios. Ele lá sabia quando um aluno estava por dentro da conversa. Ou não…Perguntas a sério fez-me depois o seu Assistente, prof. Machado Pires, enquanto Nemésio, enfastiado, pegava num livro. Mais do que nós, ele detestava exames.

Obra imensa - 19 títulos de poesia, 5 de ficção, 24 de biografias, crónicas, crítica literária, viagens, curiosidades… – expressão impressionante de pujança e variedade. Do talento multiforme de Nemésio dizia David Mourão-Ferreira que «daria, à vontade, para mais dez autores, e todos eles de primeira água”. Juntemos a isso o que ele fez na vida - professor universitário em França e na Bélgica antes de o ser na Faculdade de Letras de Lisboa durante 32 anos. E ainda: jornalista e comunicador assombroso: autor do “Se Bem Me Lembro”, inesquecíveis palestras na RTP entre os anos de 1969 e 75.
Na poesia afirmou um estilo singularíssimo: variedade de temas e formas; recriação dos ritmos populares numa visão do mundo que oscila entre a euforia da festa e a mais grave meditação espiritual; abordagem inesperada de motivos prosaicos transmutados em intuições filosóficas de grande alcance; lances imprevistos em versos estranhos. É um mundo!
Mas na prosa não se ficou por menos: a ele se deve uma das obras-primas do romance português moderno: Mau Tempo no Canal. Do universo insular da sua infância nos Açores, onde nasceu, Vitorino Nemésio ergueu um monumento literário sem paralelo na nossa literatura, e que se projectou em dimensão universal. Volto a citar D. Mourão-Ferreira: “ … nem há talvez obra romanesca mais complexa, mais variada, mais densa e mais subtil, em toda a nossa história literária.”
Eis, pois, um território que vale a pena desbravar: a belíssima obra escrita por Vitorino Nemésio.

VIDA E OBRA

Natural da Ilha Terceira, 19 de Dezembro de 1901. Primeiro livro – Canto Matinal – aos quinze anos. Colaborador nas revistas Presença e Seara Nova. Doutorou-se em Letras pela Universidade de Lisboa de pois de ter sido professor nas universidades de Montpellier e Bruxelas. Grande ligação ao Brasil, onde também deu aulas. A obra, marcada pela insularidade, aborda a condição humana numa inequívoca dimensão universal. Mau Tempo no Canal é a sua obra-prima, entre outras narrativas como Varanda de Pilatos, Paço do Milhafre e Quatro Prisões Debaixo de Armas. Na poesia, entre outros: O Bicho Harmonioso; Eu, Comovido a Oeste; Nem Toda a Noite a Vida; O Pão e a Culpa; Limite de Idade.
Morreu no dia 20 de Fevereiro de 1978. Faz agora trinta anos.




Indício Velado

Não toques, distância, no seu cabelo molhado;
Não lhe mexas. Rosto puro, às aguas posto e preso,
Uma imagem será o seu único peso,
Um pensamento o único beijo que me há dado.

Que o Índico persiga o indício velado;
Decore o Mar Vermelho o forte rosto aceso -
Mas não para morrer: para menos desprezo;
E eu próprio fique em meu amor atenuado.

Oh! platónico amor de ninguém e de alguma,
Espectro que criei e rodeei de lágrimas,
Vénus ainda ao longe no aro da minha espuma!

Imagem, força de vontade, imagem
Viva ou morta, não sei; imagem acre... mas
Verdadeira e suave, isso mais que nenhuma!


Praia da Vitória onde Nemésio nasceu
O CÃO ATÓMICO

1.
Este cão tem folhas nas orelhas,
com quatro talos
mas o que este cão deveria ter era calos,
e só tem olhos e ossos
e morrinha num dente!
Mas, meu Deus, este cão
quase o diria meu irmão
parece gente!

2.
Este cão é redondo. Está deitado,
rosna com gengivas de uivo.
Dizem-me que foi lobo,mas perdeu a alcateia
como os homens perderam a razão,
que hoje serve de osso ao cão
escapou ao cogumelo nuclear,
e por isso se foi deitar.



MORTE

Quando eu morrer, a terra aberta
Me beba de um trago
E esqueça.
Aos deuses minha oferta
É levar o que trago:
Eu, dos pés á cabeça.

Assim, com ervas altas,
Acabam os que começam.
Que Deus nos perdoe as faltas!
Dizem: «a terra que nos come»:
Eu digo: «a que nos bebe» – e basta.
Somos só água que se some:
Choveu – e fomos
Na vida gasta.


A Concha

A minha casa é concha. Como os bichos
Segreguei-a de mim com paciência:
Fachada de marés, a sonhos e lixos.
O horto e os muros só areia e ausência.

Minha casa sou e os meus caprichos.
O orgulho carregado de inocência
Se às vezes dá uma varanda, vence-a
O sal e os santos esboroou nos nichos

E telhados de vidro e escadarias
Frágeis, cobertas de hera, oh bronze falso!
Lareira aberta ao vento, as salas frias.

A minha casa…Mas é outra a história:
Sou eu ao vento e à chuva, aqui descalço,
Sentado numa pedra da memória.


NOMEIO O MUNDO

Com medo de o perder nomeio o mundo,
Seus quantos e qualidades, seus objectos,
E assim durmo sonoro no profundo
Poço de astros anónimos e quietos.

Nomeei as coisas e fiquei contente:
Prendi a frase ao texto do universo.
Quem escuta ao meu peito ainda lá sente,
Em cada pausa e pulsação, um verso.


Enchi de Oeste a minha vida,
Como se o Sol, que estira os peixes,
Me desse a terra percorrida,
O mar curvado e um não-me-deixes.

Sol fui no arco dos dias
E, pesado
Na minha luz, já mais do que o meu fogo,
Levei as ondas frias,
O vento e a vida logo.


Tudo levei, coroado de horizonte;
O amor queimei na tarde vaga,
Com uma ilha defronte.

Mas, queria, mais que o mar, bater
Ainda as praias carregadas
De passos, conchas e do haver
De aves livres lá pousadas
Que já não posso recolher.

E um ovo,
Nada mais que um ovo,
Num punhado de pó, entre juncais,
Que desse vida, penas, povo
Para as aragens e areais.


PRECE

Meu Deus, aqui me tens aflito e retirado,
Como quem deixa à porta o saco para o pão.
Enche-o do que quiseres. Estou firme e preparado.
O que for, assim seja, à tua mão.
Tua vontade se faça, a minha não.

Senhor, abre ainda mais meu lado ardente,
Do flanco de teu Filho, copiado.
Corre água, tempo e pus no sangue quente:
Outro bem não me é dado.
Tudo e sempre assim seja,
E não o que a alma tíbia só deseja.

Se te pedir piedade, dá-me lume a comer,
Que com pontas de fogo o podre se adormenta.
O teu perdão de pPai ainda não pode ser,
Mas lembre-te que é fraca a alma que aguenta:
Se é possível, desvia o fel do vaso:
Se não é, beberei. Não faças caso.

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VIAJAR OU ENVELHECER?

«Nesse ano quisera nas Vinhas todas as famílias amigas ― lanchas atrás de lanchas, o portão do pátio aberto para a charrette e com argolas para os burros. Tinham jantado na falsa por cima do barracão das canoas, por arrumar mais gente. A última vez que enfeitaram o bolo com rosas de que ela gostasse, as primeiras rosas de trepar do quintal do tio Mateus Dulmo. E camélias fechadas do Pico, como uns copinhos ... Vinte velas a arder diante do seu talher!
― Estás velha, hem?...
― Velha, não; mas enfim... o tempo não passa só para quem viajou muito como o tio. Quem me dera! ...
― Viajar ou envelhecer?
― Talvez as duas coisas...
Sentiu sede de se abrir toda ao tio, explicar aqueles dois pontos que ele isolara tão bem a rasto da recordação do seu dia de anos no Pico; mas não achou palavras sensatas, ou pelo menos capazes de serem ditas ali de selim a selim, nos campos tão bonitos. As culturas começavam a cobrir-se das primeiras flores singelas; os olhinhos das árvores abotoavam secretamente. O verde-negro dos pastos verde dos Açores, quente e húmido, emborralhava-se até longe. Os cavalos seguiam de cabeça comprida, fazendo vibrar de vez em quando as ventas. ... Envelhecer não seria; mas era deixar passar um grande espaço de tempo, como um troço de filme em branco, fechar os olhos ao peso daquela doçura da volta, tapar os ouvidos como quem teve um mau dia e chora ao meter-se na cama, moída, gasta... Na manhã seguinte acordar, mas passados uns anos, longe do Faial, ou noutro Faial só com o caminho à roda, o Pico em frente... gaivotas ... sem ninguém. O tio tinha dito: «viajar ou envelhecer?» Margarida gastara a resposta naquele silêncio e os olhos nas orelhas do cavalo. ».
(Vitorino Nemésio, Mau Tempo no Canal, Lisboa, IN-CM,1999 - excerto do cap. IX )

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Quando eu morrer mandem embora os lírios:
Vou nu, não quero que me vejam
Assim puro e conciso entre círios vergados
. As rosas sim; estão acostumadas
A bem cair no que desejam:
Sejam as rosas toleradas.
Mas não me levem os cravos ásperos e quentes
Que minha Mulher me trouxe:
Ficam para o seu cabelo de viúva,
Ali, em vez da minha mão;
Ali, naquela cara doce...
Ficam para irritar a turba
E eu existir, para analfabetos, nessa correcta irritação.

Quando eu morrer e for chegando ao cemitério,
Acima da rampa,
Mandem um coveiro sério
Verificar, campa por campa
(Mas é batendo devagarinho
Só três pancadas em cada tampa,
E um só coveiro seguro chega),
Se os mortos têm licor de ausência
(Como nas pipas de uma adega
Se bate o tampo, a ver o vinho):
Se os mortos têm licor de ausência
Para bebermos de cova a cova,
Naturalmente, como quem prova
Da lavra da própria paciência.

Quando eu morrer. . .
Eu morro lá!
Faço-me morto aqui, nu nas minhas palavras,
Pois quando me comovo até o osso é sonoro.

Minha casa de sons com o morador na lua,
Esqueleto que deixo em linhas trabalhado:
Minha morte civil será uma cena de rua;
Palavras, terras onde moro,
Nunca vos deixarei.

Mas quando eu morrer, só por geometria,
Largando a vertical, ferida do ar,
Façam, à portuguesa, uma alegria para todos;
Distraiam as mulheres, que poderiam chorar;
Dêem vinho, beijos, flores, figos a rodos,
E levem-me - só horizonte - para o mar