18.9.09

ANTERO DE QUENTAL: HOJE E SEMPRE


UM TEXTO FUNDADOR DA NOSSA MODERNIDADE

A nova estátua de Antero de Quental, inaugurada há dias em Santa Cruz, além de recordar o Verão de 1870 que ele ali passou em companhia de Jaime Batalha Reis, vem lembrar-nos a obra de um autor que abalou até aos alicerces o velho edifício mental português e abriu perspectivas de modernidade que ainda hoje estão longe de completamente realizadas.
A obra de Antero é multifacetada, desdobrando-se por textos de intenção filosófica (de que se destacam as Tendências Gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX); de intenção poética (Sonetos e Odes Modernas); e de cariz social. Neste último grupo destaca-se aquele que, no dizer de Eduardo Lourenço, é um dos grandes textos fundadores da modernidade portuguesa: as Causas da Decadência dos Povos Peninsulares. Com ele, Antero participou nas chamadas Conferências do Casino, em 1871, que fizeram estremecer o velho e adormecido Portugal, ainda dominante apesar de politicamente constitucional. Ao lado de Antero estavam homens como Eça de Queirós, Oliveira Martins ou Batalha Reis, empenhados, todos eles, em rasgar horizontes e abater os estreitos limites da mentalidade portuguesa, emparedada entre mais de 80% de analfabetos e uma religião católica mal entendida e usurpada em proveito próprio por aristocratas e burgueses.
Logo pelo título Antero alarga o seu campo de análise à Península Ibérica, não a confundindo com essa forçada construção política chamada “Espanha” – de que Portugal, mais periférico, conseguira separar-se - fruto dos interesses dinásticos das monarquias que ignoravam a identidade e autonomia de povos tão diversos como os Bascos, os Galegos ou os Catalães.
E que Causas de Decadência são essas? Em janela à parte transcrevemos apenas o enunciado inicial, deixando ao leitor a descoberta do restante texto justificativo, belíssimo pela clareza e rigor, estimulante pela audácia da abordagem e desafio às ideias dominantes.



CAUSAS DA DECADÊNCIA DOS POVOS PENINSULARES

Em 1871 um grupo de escritores e pensadores promoveu uma série de dez conferências públicas nas quais se propunham debater as grandes questões sociais, filosóficas e políticas do seu tempo. Das dez, realizaram-se cinco. As restantes foram proibidas pelo Governo de então, presidido pelo Marquês de Ávila e Bolama.
O discurso de Antero de Quental, na noite de 27 de Maio de 1871, teve enorme repercussão e a sua influência chega aos dias de hoje através de múltiplas edições. Destacamos a mais recente pela Ed. Tinta da China, em Outubro de 2008, que tem a valorizá-la um prefácio de Eduardo Lourenço.
No Jornal de Letras de 3 de Dezembro de 2008, em crónica sobre esta edição, Guilherme de O. Martins refere-se assim ao texto de Antero: “ “O que está em causa na atitude do conferencista das CAUSAS é a apresentação de um caminho radicalmente novo, não para mudanças formais, mas para transformações capazes de compreender o género humano e a sua evolução. A um tempo, há a proposta de uma transformação radical e a procura de um fulcro pragmático para as mudanças sociais que se exigiam no sentido da justiça. E o que Antero verbera é o afastamento e a distância dos povos peninsulares relativamente a uma Europa «pensante e industriosa»

Dois excertos do discurso de Antero de Quental:

«Meus Senhores:A decadência dos povos da Península nos três últimos séculos é um dos factos mais incontestáveis, mais evidentes da nossa história: pode até dizer-se que essa decadência, seguindo-se quase sem transição a um período de força gloriosa e de rica originalidade, é o único grande facto evidente e incontestável que nessa história aparece aos olhos do historiador filósofo. Como peninsular, sinto profundamente ter de afirmar, numa assembleia de peninsulares, esta desalentadora evidência. Mas, se não reconhecermos e confessarmos francamente os nossos erros passados, como poderemos aspirar a uma emenda sincera e definitiva? O pecador humilha-se diante do seu Deus, num sentido acto de contrição, e só assim é perdoado. Façamos nós também, diante do espírito de verdade, o acto de contrição pelos nossos pecados históricos, porque só assim nos poderemos emendar e regenerar.

(…) é nesses novos fenómenos que se devem buscar e encontrar as causas da decadência da Península. (…) são três e de três espécies: um moral, outro político, outro económico. O primeiro é a transformação do catolicismo, pelo concílio de Trento. O segundo, o estabelecimento do absolutismo, pela ruína das liberdades locais. O terceiro, o desenvolvimento das conquistas longínquas. Estes fenómenos assim agrupados, compreendendo os três grandes aspectos da vida social, o pensamento, a política e o trabalho, indicam-nos claramente que uma profunda e universal revolução se operou, durante o século XVI, nas sociedades peninsulares. Essa revolução foi funesta, funestíssima. Se fosse necessária uma contraprova, bastava considerarmos um facto contemporâneo muito simples: esses três fenómenos eram exactamente o oposto dos três factos capitais, que se davam nas nações que lá fora cresciam, se moralizavam, se faziam inteligentes, ricas, poderosas, e tomavam a dianteira da civilização. Aqueles três factos civilizadores foram a liberdade moral, conquistada pela Reforma ou pela filosofia; a elevação da classe média, instrumento do progresso nas sociedades modernas, e directora dos reis, até ao dia em que os destronou; a indústria, finalmente, verdadeiro fundamento do mundo actual, que veio dar às nações uma concepção nova do Direito, substituindo a força pelo trabalho, e a guerra de conquista pelo comércio.»

ANTERO E O MAR

O mar é uma constante na poesia de Antero. Por isso a estátua dele em Santa Cruz está virada ao oceano...


Oceano Nox

Junto do mar, que erguia gravemente
A trágica voz rouca, enquanto o vento
Passava como o vôo do pensamento
Que busca e hesita, inquieto e intermitente,

Junto do mar sentei-me tristemente,
Olhando o céu pesado e nevoento,
E interroguei, cismando, esse lamento
Que saía das coisas, vagamente...

Que inquieto desejo vos tortura,
Seres elementares, força obscura?
Em volta de que idéia gravitais?

Mas na imensa extensão, onde se esconde
O Inconsciente imortal, só me responde
Um bramido, um queixume, e nada mais...


Redenção I

Vozes do mar, das árvores, do vento!
Quando às vezes, n'um sonho doloroso,
Me embala o vosso canto poderoso,
Eu julgo igual ao meu vosso tormento...

Verbo crepuscular e íntimo alento
Das cousas mudas; psalmo misterioso;
Não serás tu, queixume vaporoso,
O suspiro do mundo e o seu lamento?

Um espírito habita a imensidade:
Uma ânsia cruel de liberdade
Agita e abala as formas fugitivas.

E eu compreendo a vossa língua estranha,
Vozes do mar, da selva, da montanha...
Almas irmãs da minha, almas cativas!



Antero de Quental, in "Sonetos"
Fotos © Méon: Estátua de Antero de Quental na Praia de Santa Cruz, inaugurada em Agosto de 2009