20.8.07

TANTO MAR


ACÇÃO E CONTEMPLAÇÃO

Nesga de território entalada entre a Galiza, Castela e o Atlântico, a terra portuguesa cresceu para sul, empurrando as gentes mouras. Mas ao sul também havia mar. Após três séculos de guerras ofensivas e defensivas com os povos a leste, aos portugueses do século XV impôs-se a aventura oceânica. Dramáticas e dolorosas conquistas no norte de África. Mas também viagens mar adentro em exploração planeada e científica.
Sobre o Portugal dos Descobrimentos escreveu Manuel Alegre: «Antes de ti o mar era mistério. / Tu mostraste que o mar era só mar./ Maior do que qualquer império / foi a aventura de partir e de chegar. ». Porém, a extensão do Império superou a capacidade de o realizar. Por isso Fernando Pessoa sublinhou: «Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez. / Senhor, falta cumprir-se Portugal.»
O mar continua a fascinar os nossos olhos, contemplação e desejo de partir. Mas há quem porfie na acção de tirar dele sustento próprio e alheio, pesca de dores sem esperança.
Os poetas olham-no e escrevem. Olham e escrevem. São eles que dão voz à nossa contemplação.
Tanto mar!


Mar Português

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso , ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor,
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

Fernando Pessoa, Mensagem
-----------------------------------------------------------------
Mar sonoro

Mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim,
A tua beleza aumenta quando estamos sós
E tão fundo intimamente a tua voz
Segue o mais secreto bailar do meu sonho,
Que momentos há em que eu suponho
Seres um milagre criado só para mim.

Sophia de Mello Breyner Andresen
In Cem Poemas de Sophia

----------------------------------------------------------------

Epigrama

Há só mar no meu País
Não há terra que dê pão:
Mata-me de fome
A doce ilusão
De frutos como o sol.

Uma onda, outra onda
O ritmo das ondas me embalou.
Há só mar no meu País:
E é ele quem diz,
É ele quem sou.

Afonso Duarte ( 1884-1958)

--------------------------------------------------------------------
Canção

Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
-depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar.

Minhas mãos ainda estão molhadas
Do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre dos meus dedos
colore as areias desertas.

O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio…

Chorarei quando for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.

Depois, tudo estará perfeito:
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.

Cecília Meireles, Viagem


---------------------------------------------------------------------
O céu, a terra, o vento sossegado…
As ondas que se estendem pela areia…
Os peixes que no mar o sono enfreia…
O nocturno silêncio repousado…

O pescador Aónio que, deitado
onde co o vento a água se meneia,
chorando, o nome amado em vão nomeia,
que não pode ser mais que nomeado.

“Ondas – dizia – antes que Amor me mate,
tornai-me a minha Ninfa, que tão cedo
me fizeste à morte estar sujeita”.

Ninguém responde; o mar de longe bate;
move-se brandamente o arvoredo;
leva-lhe o vento a voz, que ao vento deita.

Luís de Camões, Sonetos
---------------------------------------------------------------------
O MAR

Antes que o sonho (ou o terror) tecera
Mitologias e cosmogonias,
antes que o tempo se cunhasse em dias,
o mar, sempre o mar, já estava e era.
Quem é o mar? Quem é o violento
e antigo ser que destrói os pilares
da terra, e é só um e muitos mares,
e abismo e resplendor e azar e vento?
Quem o olha vê-o pela vez primeira,
sempre. Com o assombro tal que as coisas
elementares deixam, as formosas
tardes, a lua, o fogo da fogueira.
Quem é o mar, quem sou? Sei-o no dia
que virá logo após minha agonia.


Jorge Luís Borges, in Rosa do Mundo 2001 Poemas para o Futuro,
2ª ed., Assírio e Alvim, (trad. José Bento)


---------------------------------------------------------------------



PORES DO SOL

Se eu fosse pintor passava a minha vida a pintar o pôr do sol à beira-mar. Fazia cem telas, todas variadas, com tintas novas e imprevistas. É um espectáculo extraordinário.
Há-os em farfalhos, com largas pinceladas verdes. Há-os trágicos, quando as nuvens tomam todo o horizonte com um ar de ameaça, e outros doirados e verdes, com o crescente fino da lua no alto e do lado oposto a montanha enegrecida e compacta.
Tardes violetas, neste ar tão carregado de salitre que torna a boca pegajosa e amarga, e o mar violeta e doirado a molhar a areia e os alicerces dos velhos fortes abandonados…
Um poente desgrenhado, com nuvens negras lá no fundo, e uma luz sinistra. Ventania. Estratos monstruosos correm do norte. Sobre o mar fica um laivo esquecido que bóia nas águas – e não quer morrer…

Raul Brandão,in Os Pescadores,


ORLA MARÍTIMA

O tempo das suaves raparigas
É junto ao mar ao longo da avenida
Ao sol dos solitários dias de Dezembro
Tudo ali pára como nas fotografias
É a tarde de Agosto o rio a música o teu rosto
alegre e jovem hoje ainda quando tudo ia mudar
(...)



Ruy Belo, Todos os Poemas

------------------------------------------------------------------


O MAR

Nascer…morrer…nada perguntes.
São simplesmente acontecimentos.
No meio, um mar tempestuoso.
E isto é o que sabemos.

No meio, um mar, sobre suas ondas
confiadamente naveguemos
deixando-nos levar, deixando-nos
levar…Nossas paixões são seus ventos.

Bem que de súbito se soltem
poderes que não conhecemos,
e se povoe nossa solidão
de promontórios de mistério,

siga a nave o seu caminho
real contra o incerto,
siga a vida, siga sempre, avance
tenaz seu rumo contra o pensamento.

Alfonso Costafreda, in Rosa do Mundo 2001 Poemas para o Futuro,
2ª ed., Assírio e Alvim, (trad. José Bento)

--------------------------------------------------------------------

MAR INCERTO

Que triste o som acorda à minha voz !
Como é pálida a luz do meu espelho
e a desse rio azul que não tem foz :
o tempo, em que me vou fazendo velho.

Dias loucos da infância, onde estais vós?
E a alegria – esse cântico vermelho
do sangue virgem que não tem avós?
Como se chama a sombra em que ajoelho?

Arfa, cansado, no meu peito, um mar:
o mar remoto da remota Ilha
onde as sereias cantam ao luar.

A esteira dos navios, as gaivotas
gritam no céu, e o céu, lânguido, brilha
sem ecos de vitórias ou derrotas.


António de Sousa, in Rosa do Mundo 2001 Poemas para o Futuro,
2ª ed., Assírio e Alvim