Alexandre O’Neill nasceu em Lisboa a 19 de Dezembro de 1924. A mãe era de ascendência aristocrata e nortenha e o pai provinha de antigos senhores irlandeses, caídos em desgraça e chegados a Portugal nos séc. XVIII. Na parede da sala da casa paterna havia um retrato de Salazar, figura venerada da classe média lisboeta, temerosa dos tumultos sociais. O filho perdeu a paciência para estas coisas e talvez aqui tenham origem a radical ironia e o sarcasmo mordaz com que fustigou as fraquezas do país em que nasceu e que ele, simbolicamente apelidou de «Reino da Dinamarca» para despistar a PIDE. Isso não o livrou de ser preso como opositor ao regime, apesar do seu feitio independente e boémio que nunca lhe permitiu uma militância política organizada.
Alexandre O’Neill foi um dos fundadores do Grupo Surrealista de Lisboa, em 1947, juntamente com Mário Cesariny, José-Augusto França e outros. Avesso a regimentos e princípios de escola, absorveu deste movimento artístico o gosto para a inventiva verbal, as associações de ideias e de palavras em jogos inesperados, surpreendentes.
A sua poesia é marcada pela visão irónica e gozada das pessoas e das coisas, por vezes satírica, servida por um poderoso sentido da observação mas humanizada por intenso e, por vezes, terno lirismo.
As suas “Poesias Completas” foram reunidas em 2005 num grosso volume de 540 páginas pela editora Assírio & Alvim, obra essencial para quem goste de ter uma visão ampla da moderna literatura portuguesa. Ali se juntaram os livros anteriormente publicados: Tempo de Fantasmas (1951); No Reino da Dinamarca ( 1958); Abandono Vigiado ( 1960); Poemas Com Endereço ( 1962); Feira Cabisbaixa ( 1965 ); De Ombro na Ombreira ( 1969 ); Entre a Cortina e a Vidraça ( 1972 ); A Saca de Orelhas ( 1979 ); As Horas Já de Números Vestidas ( 1981 ); Dezanove Poemas ( 1983 ), além de alguns dispersos. Morreu em 21 de Agosto de 1986, em Lisboa.
Nota: uma obra a ler para quem quiser conhecer melhor este escritor: “ Alexandre O’Neill – Uma biografia literária”, Maria Antónia Oliveira, Lisboa, Dom Quixote, 2007.
PAÍS SEMPRE ADIADO
Portugal foi, para o poeta Alexandre O’Neill, o lugar da sua dor: país adiado, videirinho, do “chacun que s’arranje!” – enquanto a Europa enfunava velas e já ia no mar alto. Satirizou: «País engravatado todo o ano / e a assoar-se na gravata por engano». Foi à procura desse país, para lhe tirar o retrato em palavras certeiras.
PELO ALTO ALENTEJO
In: Entre a Cortina e a Vidraça
Os homens desertaram destas terras.
Só um bacoco, a rufiar com a sombra,
só um bacoco, bolsado das tabernas,
em sete palmos, só, se reencontra.
Turistas fotografam cal e pedras:
o cubismo de casas e ruelas.
Nas soleiras sobraram umas velhas.
Escorre-lhes o preto pelas canelas.
Num caixote com rodas, meigo tolo,
- um que não veio, aos esses, lá das Franças,
passar com os velhotes as vacanças –
preso a um fio de cuspo, vende jogo.
Eu e a Teresa procuramos queijo.
O melhor que se traz do Alentejo.
PAÍS DISTRAÍDO
Vicente Jorge Silva, in: “PÚBLICA”, 18 /8/1996: « É talvez o poeta português moderno mais cruelmente injustiçado, mais esquecido e menos lido nos dias que correm – ele que foi um dos maiores inventores de palavras, paradoxos, trocadilhos e construções poéticas originais que este país deu à luz. (...)”
Alexandre O’Neill olhou-se e viu os outros; e nos outros viu-se a si próprio.
CAIXADÒCLOS
In: Feira Cabisbaixa
- Patriazinha iletrada, que sabes tu de mim?
- Que és o esticalarica que se vê.
- Público em geral, acaso o meu nome...
- Vai mas é vender banha de cobra!...
- Lisboa, meu berço, tu que me conheces...
- Este é dos que fala sozinho na rua...
- Campdòrique, então, não dizes nada?
- Ai tão silvatávares que ele vem hoje!
- Rua do Jasmim, anda, diz que sim!
- É o do terceiro, nunca tem dinheiro...
- Ó Gaspar Simões, conte-lhes Você...
- Dos dois ou três nomes que o surrealismo...
- Ah. agora sim, fazem-me justiça!
- Olha o caixadòclos todo satisfeito
a ler as notícias...
PAÍS DO MODO FUNCIONÁRIO DE VIVER
O’Neill tinha 25 anos quando conheceu Nora Mitrani, francesa que veio a Lisboa fazer uma conferência sobre o Surrealismo. Apaixonam-se e o poeta decide ir ter com ela a Paris. Alarmado, um familiar faz uma denúncia para a PIDE, tentando impedir a partida. É chamado ao inspector Seixas. Fica proibido de sair de Portugal e só depois do 25 de Abril conseguiria obter passaporte. Enojado com a PIDE e com o país que a consentia, escreveu um dos poemas mais pungentes da poesia portuguesa, dedicado à mulher amada. Por ser longo extraímos alguns excertos:
UM ADEUS PORTUGUÊS
In: No Reino da Dinamarca
Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz de ombros puros e a sombra
de uma angústia já purificada
Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor
Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver
(...)
Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal
(...)
Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti.
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Morreu João da Cruz Ramos, o poeta pastor
Perdi muito do que tinha,
Já fui tudo e serei nada;
A minha alma adivinha
Que a vida a que chamo minha
Foi-me apenas emprestada.
Em Março de 2003 esta página LUGAR ONDE foi dedicada. àquele a quem chamei “o guardador de poemas” e que os conterrâneos conheciam por “Palhinhas”. « Homem de poucas letras mas de rara sensibilidade literária» - escrevi então. Faleceu no início deste Março, no lugar onde sempre viveu, Casal da Junqueira, entre Bonabal e Coutada, «sítio de serena e belíssima paisagem». Aqui o recordamos com saudade. Adeus “Palhinhas”. E obrigado por tantos versos que nos cantaste.