LEITURAS PARA O VERÃO: os nossos clássicos
CAMILO CASTELO BRANCO
Um grande livro do nosso século XIX tem por título «Memórias do Cárcere». Não é um romance, é um conjunto de recordações, magnificamente escritas por um homem preso durante um ano numa enxovia da Relação do Porto e que aproveitou o tempo para conhecer e relatar as vidas de outros presos. Falo de Camilo Castelo Branco, que ali conheceu José do Telhado – o salteador que já recebera a Torre e Espada -, de quem relata a história. Camilo que teve a suprema distinção de ali ser visitado pelo Rei D. Pedro V, em 23 de Novembro de 1860.
A propósito, recordo o professor Reis Brasil, que lia «O Amor de Perdição» nas aulas e chorava sempre na última página, quando Mariana salta para o mar e se afunda abraçada ao cadáver de Simão. E também Aquilino Ribeiro e o seu «O Romance de Camilo», escrito em 1957. Com ele redescobri o caminho para o escritor/personagem que em si próprio escavava a matéria das suas histórias. Mas foi com Teixeira de Pascoaes, em «O Penitente», publicado em 1959, - páginas comoventes e impressivas sobre a tragédia e a farsa de um homem que ousou viver da escrita depois de desafiar as hipocrisias de uma sociedade empalhada – que melhor me apercebi da espantosa envergadura de Camilo. Longe de ser um homem eticamente exemplar, é a sua humanidade contraditória que, ali, toda se revela e nos fascina.
Quem lê hoje Camilo Castelo Branco? E Aquilino? E Pascoaes? Aflige-me a indiferença pelos nossos clássicos, que a Escola mal consegue enfrentar. E, no entanto, Camilo é um dos mais prodigiosos criadores da nossa Língua, como ainda há pouco confirmei com a leitura de um dos seus livros menos conhecidos, «Coração, Cabeça e Estômago», (nº 240 dos Livro de Bolso Europa-América).
Vale a pena voltar aos nossos clássicos. Camilo, por exemplo. Ou Aquilino e Pascoaes, igualmente dois vastíssimos e inesgotáveis continentes da escrita. Eles são, além do mais, a casa-forte do nosso maior tesouro cultural: a Língua Portuguesa. | MD
SOBRE CAMILO
«Os seus livros são hoje mais do que os seus anos; os seus lanços romanescos, mais do que os seus cabelos brancos. Raro escritor numa língua terá atingido, nos lavores do estilo, a contextura sóbria, mágica e resistente que ele tem conseguido, sabendo amoldar a palavra a todas as exigências do assunto, forçando-a, naturalmente, a todos os brinquedos da imaginação, podendo à vontade ser quinhentista por convicção, ou realista por troça, para se divertir com a indignação literária dos outros e ter ensejo de se medir depois com eles em combate singular.»
(Guilherme de Azevedo, Álbum das Glórias, Ed. Frenesi, Lisboa, 2003)
«Camilo, para mim, é um autor sagrado. Amo-o com todos os seus defeitos e virtudes. Não distingo as suas páginas, roubadas à Bíblia, de outras plagiadas ao lugar-comum da literatura romântica. Não sou dos que blasfemam de Deus, por ele ter criado as moscas.
Amo-o porque se entregou todo à sua obra, como as crianças se entregam aos seus brinquedos. E, por isso, os bonecos vivem nas suas mãos.» (Teixeira de Pascoaes, O Penitente, Assírio & Alvim, 2002)
«Nasceu Camilo com um extraordinário talento de narrador. Assim geralmente começa o seu romance por ser uma narrativa empolgante, que até por isso mesmo compartilha, não há que negá-lo, do que preferimos hoje chamar de novela, e por outro lado se aparenta ao que chamamos folhetim. O bom êxito do romance camiliano vem em muito desse seu carácter de narrativa apaixonante, folhetinesca, espectacular e viva.» (José Régio, Ensaios de Interpretação Crítica)
«Para suportar Camilo Castelo Branco como cidadão e como escritor, usou-se tudo que está em iminência no coração e na inteligência: usou-se a piedade, o humor e a razão prática. Mas ele resiste a tudo. É um homem livre e fantasioso. Pessoas assim acabam mal e deixam às vezes uma obra que se pode imitar, mas que não serve senão para o recordar mais ainda naquilo que se não copia: o génio.»
(Agustina Bessa-Luís, Camilo, génio e figura)
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UMA PÁGINA DE CAMILO
“- O meu amigo Faustino Xavier de Novais conheceu perfeitamente aquele nosso amigo Silvestre da Silva…
- Ora, se conheci!... Como está ele?
- Está bem: está enterrado há seis meses.
- Morreu?!
- Não morreu, meu caro Novais. Um filósofo não deve aceitar no seu vocabulário a palavra morte, se não convencionalmente. Não há morte. O que há é metamorfose, transformação, mudança de feitio. Pergunta tu ao doutíssimo poeta José Feliciano de Castilho o destino que tem a matéria. Dir-te-á a teu respeito o que disse de Ovídio, sujeito que não era mais material que tu e que o nosso amigo Silvestre da Silva. «Ovídio cadáver», pergunta o sábio, «onde é que pára? Tudo isso corre fados misteriosos, como Adão, como Noé, como Rómulo, como nossos pais, como nós, como nossos filhos, rolando pelos oceanos, flutuando nos ares, manando nas fontes, correndo nos rios, agregado nas pedras, sumido nas minas, misturado nos solos, viçando nas ervas, rindo nas flores, recendendo nos frutos, cantando nos bosques, rugindo nas matas, rojando dos vulcões, etc. »Isto, a meu ver, é exacto e, sobretudo, consolador. O nosso amigo Silvestre da Silva, a esta hora, anda repartido em partículas. Aqui faz parte da garganta dum rouxinol; além, é pétala duma tulipa; acolá, está consubstanciado num olho de alface; pode ser até que eu o esteja bebendo neste copo de água que tenho à minha beira e que tu o encontres nos sertões da América, alguma vez, transfigurado em cobra-cascavel, disposto a comer-te, meu Faustino.” (“Coração, Cabeça e Estômago”, Camilo C Branco)
A CASA DE CAMILO
Em S. Miguel de Ceide, a meia dúzia de quilómetros de Famalicão, a casa amarela não é mais uma residência senhorial de antigos fidalgos semelhante a tantas outras do país rural. Hoje, é um espaço obrigatório de visita, lugar de recordações e de conhecimento da vida e obra de Camilo, autor de “O Amor de Perdição” e de outros romances capazes de resgatar uma literatura como “A queda de um anjo” (1866), “A bruxa do Monte Córdova” (1867) ou, ainda, “Memórias do cárcere”. (in: http://www.camilocastelobranco.org/
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