10.3.12

O FANTASMA DE AGUSTINA


É um bocado estranho: o marido e a filha de Agustina Bessa-Luís falam dela como se já tivesse morrido.
Mas depois referem que ela vive tranquila, lúcida em relação ao seu estado atual.
Esta reportagem - fascinante! - passa-se na casa de Agustina, entre os seus móveis, os seus papéis, mas ela não aparece nunca.
Na revista LER deste mês - que pode ser lida como complemento a esta reportagem em vídeo - o marido diz que ela passou a detestar os livros, e isso resultou de um AVC que, não alterando o seu estado físico, perturbou irreversivelmente o seu estado mental

Percebo: há um pudor, uma reserva, uma opção. E percebo melhor o texto de Maria Velho da Costa, quando a visitou ( retirado daqui ):



Não tem fito, não tem medo.
Vem em direcção ao olhar que a revê.
Pequena, cantarolante e abanando a saia, debaixo das estrelas que esmorecem. A lua desmaia, o alfange comido pelos rubores da aurora. Ela pára, aponta, abre a boca para dizer lua e vêem-se os dentes de rato, o riso de todas as palavras.
Tem quatro palmos de tamanhinha e vem só.
O vestido está desabotoado nas costas, os sapatos de verniz de presilha, os preferidos, vão soltas chancas a brilhar no relento da manhã. Atrapalham, mas não impedem. Os olhos apertados de botão-azeviche são só sorriso ufano, a quatro palmos do chão na cara cor de rosa-chá.
Tem três anos de idade e fugiu de casa.
Não é amuo, é o desconchavo do mundo o que a faz vir.
Diz ao sol subinte, esmerei-me, esmerei-me, ó medronho, ninguém me viu sair. Nem criada, nem ama, nem mãe.
Lá vem ela, no carreiro ermo, no plaino pedregoso, a que não terá contemporâneos.
Move-a o amor frio, a cabeça quente do poderio da terra. Não traz cuecas. Abre as pernas, ainda de roscas roliças, para uma pocinha escura. Triunfa, menina total e raciocinante.
Vibra e caminha, humaníssima.
Diz ao céu que se acende: amaldiçoa-me, mas deixa-me ser livre. E assim foi.

Costa, Maria Velho da, in, «Egoísta n.º especial», Estoril: Estoril-Sol (III) — Turismo, Animação e Jogo, S.A., Fevereiro 2007

Sem comentários: