17.8.06

Um grande poeta

Página LUGAR ONDE saída no BADALADAS há meses atrás:


DANIEL FARIA:
UM POETA EM DIRECÇÃO AO SOL

Escreveu sobre as moradas onde habitou e os caminhos breves por onde andou. Interrogou todos os silêncios, num diálogo interior que deixou milhares de palavras pelo chão antes de se ir embora.

E foi-se embora muito cedo: Daniel Faria morreu com 28 anos, após ter escolhido o caminho da consagração a Deus num mosteiro beneditino. O seu percurso foi desenhado com poemas que escreveu e ofereceu como quem se despede. Sem dramatismo nem proselitismo religioso. Ele não tinha a urgência da vida porque sabia que tudo era vida, mesmo a morte por onde entrou ao encontro do Nome definitivo.
Toda a sua poesia parece falar de um mundo onde as palavras remetem para uma dimensão estranha: o Verbo, essa forma de dizer o Absoluto, liberto da duração efémera da vida de cada homem. Os seus poemas não estão ancorados em pilares imediatamente reconhecíveis. Vogam sempre nas largas águas de sentidos ocultos cuja chave necessita de referências atentas: as narrativas bíblicas como o Êxodo e o Apocalipse; e também vozes poéticas como as de António Ramos Rosa e Herberto Helder.
Temos assim, neste poeta, a vivência mística expressando-se através de formas que não recusam a herança dos nossos grandes criadores contemporâneos. Mas não encontramos nessa vivência qualquer referência concreta a crenças e códigos eclesiais. É o homem perante o Nome Absoluto – que o poeta raramente escreveu em maiúsculas – exposto numa obra de impressionante dimensão e fôlego, reunida pela Editora Quasi numa edição de Novembro de 2003, sob o simples título de POESIA. Simplicidade que se conjuga com a riqueza dos títulos dados pelo poeta aos seis livros que escreveu e que, para facilidade de identificação a organizadora da edição – Vera Vouga – dividiu em dois momentos.
A saber: livros da idade juvenil: Uma Cidade com Muralha; Oxálida; A Casa dos Ceifeiros. E livros da idade adulta: Explicação das Árvores e de Outros Animais; Homens que São como lugares mal situados; Dos líquidos. Esta edição inclui ainda um conjunto de poemas inéditos.



VIDA

Daniel Augusto da Cunha Faria nasceu em Baltar, Paredes, em 10 de Abril de 1971. Revelou paixão pela escrita desde a mais tenra idade. Aceitando uma vocação religiosa, frequentou os Seminários Diocesanos e o Curso de Teologia da Universidade Católica. Licenciou-se em Estudos Portugueses pela Faculdade de Letras do Porto, ao mesmo tempo que apresentava a Tese de Licenciatura em Teologia, intitulada “A meditação da Paixão na poesia de Frei Agostinho da Cruz”. Em 1997 optou pela vida monástica, tendo entrado em 1998 no Mosteiro beneditino de Singeverga (Santo Tirso).
Faleceu em 9 de Junho de 1999, de traumatismo craniano, na sequência de uma queda, aparentemente inofensiva.
Alguém que o conheceu de perto disse: “Daniel Faria escreveu cada verso como se fosse o primeiro, o primeiro e o último. Deixou à humanidade versos definitivos – um clarão que a si mesmo se alimenta.”

LER A POESIA DE DANIEL FARIA

A divulgação deste enorme poeta contemporâneo é a nossa forma de celebrar o Dia Mundial da Poesia, 21 de Março. Ao darmos a ler alguns poemas da vasta produção de Daniel Faria prestamos a nossa modesta homenagem ao poeta e à sua escrita, cientes de que a Poesia é sempre, e por definição, o lugar mais nobre da linguagem humana.


*

Guarda a manhã
Tudo o mais se pode tresmalhar

Porque tu és o meio da manhã
O ponto mais alto da luz
Em explosão

*

Homens que são como lugares mal situados
Homens que são como casas saqueadas
Que são como sítios fora dos mapas
Como pedras fora do chão
Como crianças órfãs
Homens agitados sem bússola onde repousem
(...)
Homens que são como danos irreparáveis
Homens que são sobreviventes vivos
Homens que são sítios desviados
Do lugar

*

Encosto-me à morte sem amparo ou sombra
Como o grão
Abeiro-me da flor que virá e venho
À superfície do teu sonho

Como se acordasse a mão que semeia
No coração lavrado de quem faz a ceifa
Rebento no interior da morte como o trigo

Rebento no interior do trigo
E de qualquer planta que se assemelhe a ti

*

Sei bem que não mereço um dia entrar no céu
Mas nem por isso escrevo a minha casa sobre a terra

Pai
Tenho medo de morrer antes da morte
Tenho medo de morrer antes da vida


1 comentário:

avelaneiraflorida disse...

Sente-se poesia nas palavras e no que elas nos sugerem...
Felizmente, ainda se podem usar ASSIM...as palavras!!!!

Parabéns pelos excertos escolhidos. Queremos mais!