Recordo o professor que fazia das aulas uma viagem assombrosa pelas avenidas da literatura. Referências caóticas, por vezes. Outras, de humor desconcertante. Expressivo como ninguém, emocionava-se com uma citação para logo se rir de uma piada cujo alcance só ele percebia.
No exame de Cultura Portuguesa não me fez perguntas. Esperou apenas que eu seguisse os seus raciocínios. Ele lá sabia quando um aluno estava por dentro da conversa. Ou não…Perguntas a sério fez-me depois o seu Assistente, prof. Machado Pires, enquanto Nemésio, enfastiado, pegava num livro. Mais do que nós, ele detestava exames.
Obra imensa - 19 títulos de poesia, 5 de ficção, 24 de biografias, crónicas, crítica literária, viagens, curiosidades… – expressão impressionante de pujança e variedade. Do talento multiforme de Nemésio dizia David Mourão-Ferreira que «daria, à vontade, para mais dez autores, e todos eles de primeira água”. Juntemos a isso o que ele fez na vida - professor universitário em França e na Bélgica antes de o ser na Faculdade de Letras de Lisboa durante 32 anos. E ainda: jornalista e comunicador assombroso: autor do “Se Bem Me Lembro”, inesquecíveis palestras na RTP entre os anos de 1969 e 75.
Na poesia afirmou um estilo singularíssimo: variedade de temas e formas; recriação dos ritmos populares numa visão do mundo que oscila entre a euforia da festa e a mais grave meditação espiritual; abordagem inesperada de motivos prosaicos transmutados em intuições filosóficas de grande alcance; lances imprevistos em versos estranhos. É um mundo!
Mas na prosa não se ficou por menos: a ele se deve uma das obras-primas do romance português moderno: Mau Tempo no Canal. Do universo insular da sua infância nos Açores, onde nasceu, Vitorino Nemésio ergueu um monumento literário sem paralelo na nossa literatura, e que se projectou em dimensão universal. Volto a citar D. Mourão-Ferreira: “ … nem há talvez obra romanesca mais complexa, mais variada, mais densa e mais subtil, em toda a nossa história literária.”
Eis, pois, um território que vale a pena desbravar: a belíssima obra escrita por Vitorino Nemésio.
VIDA E OBRA
Natural da Ilha Terceira, 19 de Dezembro de 1901. Primeiro livro – Canto Matinal – aos quinze anos. Colaborador nas revistas Presença e Seara Nova. Doutorou-se em Letras pela Universidade de Lisboa de pois de ter sido professor nas universidades de Montpellier e Bruxelas. Grande ligação ao Brasil, onde também deu aulas. A obra, marcada pela insularidade, aborda a condição humana numa inequívoca dimensão universal. Mau Tempo no Canal é a sua obra-prima, entre outras narrativas como Varanda de Pilatos, Paço do Milhafre e Quatro Prisões Debaixo de Armas. Na poesia, entre outros: O Bicho Harmonioso; Eu, Comovido a Oeste; Nem Toda a Noite a Vida; O Pão e a Culpa; Limite de Idade.
Morreu no dia 20 de Fevereiro de 1978. Faz agora trinta anos.
Indício Velado
Não toques, distância, no seu cabelo molhado;
Não lhe mexas. Rosto puro, às aguas posto e preso,
Uma imagem será o seu único peso,
Um pensamento o único beijo que me há dado.
Que o Índico persiga o indício velado;
Decore o Mar Vermelho o forte rosto aceso -
Mas não para morrer: para menos desprezo;
E eu próprio fique em meu amor atenuado.
Oh! platónico amor de ninguém e de alguma,
Espectro que criei e rodeei de lágrimas,
Vénus ainda ao longe no aro da minha espuma!
Imagem, força de vontade, imagem
Viva ou morta, não sei; imagem acre... mas
Verdadeira e suave, isso mais que nenhuma!
Praia da Vitória onde Nemésio nasceu
1.
Este cão tem folhas nas orelhas,
2.
Este cão é redondo. Está deitado,
MORTE
Quando eu morrer, a terra aberta
Me beba de um trago
E esqueça.
Aos deuses minha oferta
É levar o que trago:
Eu, dos pés á cabeça.
Assim, com ervas altas,
Acabam os que começam.
Que Deus nos perdoe as faltas!
Dizem: «a terra que nos come»:
Eu digo: «a que nos bebe» – e basta.
Somos só água que se some:
Choveu – e fomos
Na vida gasta.
A Concha
A minha casa é concha. Como os bichos
Segreguei-a de mim com paciência:
Fachada de marés, a sonhos e lixos.
O horto e os muros só areia e ausência.
Minha casa sou e os meus caprichos.
O orgulho carregado de inocência
Se às vezes dá uma varanda, vence-a
O sal e os santos esboroou nos nichos
E telhados de vidro e escadarias
Frágeis, cobertas de hera, oh bronze falso!
Lareira aberta ao vento, as salas frias.
A minha casa…Mas é outra a história:
Sou eu ao vento e à chuva, aqui descalço,
Sentado numa pedra da memória.
NOMEIO O MUNDO
Com medo de o perder nomeio o mundo,
Seus quantos e qualidades, seus objectos,
E assim durmo sonoro no profundo
Poço de astros anónimos e quietos.
Nomeei as coisas e fiquei contente:
Prendi a frase ao texto do universo.
Quem escuta ao meu peito ainda lá sente,
Em cada pausa e pulsação, um verso.
Enchi de Oeste a minha vida,
Como se o Sol, que estira os peixes,
Me desse a terra percorrida,
O mar curvado e um não-me-deixes.
Sol fui no arco dos dias
E, pesado
Na minha luz, já mais do que o meu fogo,
Levei as ondas frias,
O vento e a vida logo.
Tudo levei, coroado de horizonte;
O amor queimei na tarde vaga,
Com uma ilha defronte.
Mas, queria, mais que o mar, bater
Ainda as praias carregadas
De passos, conchas e do haver
De aves livres lá pousadas
Que já não posso recolher.
E um ovo,
Nada mais que um ovo,
Num punhado de pó, entre juncais,
Que desse vida, penas, povo
Para as aragens e areais.
PRECE
Meu Deus, aqui me tens aflito e retirado,
Como quem deixa à porta o saco para o pão.
Enche-o do que quiseres. Estou firme e preparado.
O que for, assim seja, à tua mão.
Tua vontade se faça, a minha não.
Senhor, abre ainda mais meu lado ardente,
Do flanco de teu Filho, copiado.
Corre água, tempo e pus no sangue quente:
Outro bem não me é dado.
Tudo e sempre assim seja,
E não o que a alma tíbia só deseja.
Se te pedir piedade, dá-me lume a comer,
Que com pontas de fogo o podre se adormenta.
O teu perdão de pPai ainda não pode ser,
Mas lembre-te que é fraca a alma que aguenta:
Se é possível, desvia o fel do vaso:
Se não é, beberei. Não faças caso.
VIAJAR OU ENVELHECER?
«Nesse ano quisera nas Vinhas todas as famílias amigas ― lanchas atrás de lanchas, o portão do pátio aberto para a charrette e com argolas para os burros. Tinham jantado na falsa por cima do barracão das canoas, por arrumar mais gente. A última vez que enfeitaram o bolo com rosas de que ela gostasse, as primeiras rosas de trepar do quintal do tio Mateus Dulmo. E camélias fechadas do Pico, como uns copinhos ... Vinte velas a arder diante do seu talher!
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Quando eu morrer mandem embora os lírios:
Quando eu morrer e for chegando ao cemitério,
Quando eu morrer. . .
Minha casa de sons com o morador na lua,
Mas quando eu morrer, só por geometria,
7 comentários:
Méon,
mais uma EXCELENTE página, "BRIGADOS"!!!!!
a conjugação das palavras e das imagens é um universo redescoberto a convidar-nos para nele entrar!!!!
LINDO, COMO SEMPRE!!!!!
Uma das finalidades dsta página é motivar leitores para obras que se autonomizaram em ralação ao tempo e que estão já noutra dimensão.
Obrigado pelo teu incentivo!
como eu ansiava pelos seus programas na rtp...
Olá caro amigo. Desculpo-me pela ausência, mas auto-perdoo-me pelos afazeres de Amor que a justificam! Que bom foi recordar agora o Professor Nemésio que me lembro, muito miúda de ver na televisão, a falar sobre umas coisas que, na altura eu não entendia, mas já a curiosidade me impulsionava a ouvi-lo atentamente.
Não deverei perder muito mais tempo a ler O Mau tempo no Canal, que tenho em casa há tanto à espera de um impulso. Obrigada mais uma vez pela referência.
Visite-me para ler o meis recente post. Gostaria de ter a sua opinião a respeito. Um abraço para si. Até breve. Azul.
já li Vitorino Nemésio e também Torga que o senhor meu pai tem por cá livros deles. cadsa um à sua maneira. gostei.
"Quando eu morrer. . .
Eu morro lá!
Faço-me morto aqui, nu nas minhas palavras,
Pois quando me comovo até o osso é sonoro."
Que foi foi recordar....
Thanks to the blog owner. What a blog! nice idea.
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