16.4.08



MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO:
Um poeta em trágico desencontro com a vida

Escreveu poesia entre os 22 e os 25anos, num estilo único, enquanto cultivava uma grande amizade por Fernando Pessoa. Depois suicidou-se. Tanto bastou para marcar de forma indelével a Literatura Portuguesa.

Para quem gosta de análise psicológica, a vida de Mário de Sá-Carneiro é um paradigma: nascido numa família de posses, ficou órfão de mãe aos dois anos. Com o pai quase sempre ausente por razões profissionais, mas materialmente generoso, foi criado por uma velha ama. Havia ordens para que todas as dificuldades fossem aplanadas e o menino cresceu em abundância, preguiça, ignorância das dificuldades da vida. As tentativas frustradas de cursar Direito em Coimbra e depois em Paris revelam a sua absoluta incapacidade para superar dificuldades práticas. Uma hipersensibilidade rara juntou-se ao alheamento da vida real e Mário S-C, acabou por encontrar na Literatura a única via possível para chegar ao mundo exterior.
Mas aqui foi, de facto, único.


O ESTILO POÉTICO

“O motivo central da sua obra é o da crise de personalidade, a inadequação do que sente ao que desejaria sentir” (Hist. da Literat. Portug, A.J.Saraiva e Óscar Lopes) Mas esta carga subjectiva acaba por se assumir como expressão de um mal-estar social e colectivo, prenúncio profético da crise de valores do homem contemporâneo. Por isso a sua poesia, escrita no início do século XX, mantém uma estranha actualidade.
Massaud Moisés, na sua “Literatura Portuguesa” aponta algumas características do estilo deste poeta:

«Poeta sempre e acima de tudo, inclusive nas obras em prosa, Sá-Carneiro plasmou pela primeira vez em Língua Portuguesa realidades até então insuspeitadas. Para tanto violentou a ineficaz e espartilhante gramática tradicional e passou a usar uma sintaxe e um vocabulário novos, que lhe permitissem manipular fórmulas expressivas absolutamente pessoais, plásticas, maleáveis e aptas a surpreender o fluxo das ondas oníricas, o vago, o alucinado, as febres, o incêndio dos sentidos, a desmaterialização das coisas, a materialização das sensações, os sentimentos mais abstrusos e subtis, as sinestesias mais inusitadas, as associações mais inesperadas.» Exemplos: “Mastros quebrados, singro num mar de Ouro / Dormindo fogo, incerto, longemente… / Tudo se me igualou num sonho rente, / E em metade de mim hoje só moro…”
Na época, pela transgressão dos padrões dominantes, esta escrita foi um escândalo, naturalmente circunscrito ao pequeno mundo intelectual português. Mas viria a ter repercussões enormes em toda a nossa Literatura.

OBRA

Figura importante do Modernismo português, Mário de Sá-Carneiro fundou, com Fernando Pessoa, a revista Orpheu, de que saíram apenas dois números. Os suficientes para fazerem vingar o movimento do primeiro modernismo em Portugal, ao qual estiveram também ligados os nomes de Almada Negreiros e Santa-Rita Pintor.
Escreveu: Princípio (1912) – novelas; A Confissão de Lúcio (1913) – novela; Dispersão (1914) – poesia; Céu em Fogo (1915) – 12 novelas; Indícios de Oiro (1937) – poesia; Correspondência, quatro volumes, em 1958, 1977 e 1980. Há diversas edições da “Poesia Completa”. Uma edição boa e barata é a da Ulisseia , col. Biblioteca dos Autores Portuguesas, com um extenso estudo introdutório por Maria Ema Tarracha Ferreira.

Nasceu em Lisboa em 1890; suicidou-se em Paris em 1915

(Escultura do poeta no "Parque dos Poetas", Oeiras)

P O E MA S

QUASE

Um pouco mais de sol – eu era brasa,
Um pouco mais de azul – eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num baixo mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho – ó dor! - quase vivido...

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo... e tudo errou...
- Ai a dor de ser - quase, dor sem fim... –
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...

Momentos de alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei..
.
Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol – vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...

............................................................
............................................................

Um pouco mais de sol – e fora brasa,
Um pouco mais de azul – e fora além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa..
.Se ao menos eu permanecesse aquém...




O Lord

Lord que eu fui de Escócias doutra vida
Hoje arrasta por esta a sua decadência,
Sem brilho e equipagens.
Milord reduzido a viver de imagens,
Pára às montras de jóias de opulência
Nem desejo brumoso – em dúvida iludida...
(- Por isso a minha raiva mal contida,-
Por isso a minha eterna impaciência.)

Olha as Praças, rodeia-as...
Quem sabe se ele outrora
Teve Praças, como esta, e palácios e colunas –
Longas terras, quintas cheias,
Iates pelo mar fora,
Montanhas e lagos, florestas e dunas...

(--- Por isso a sensação em mim fincada há tanto
Dum grande património algures haver perdido;
Por isso o meu desejo astral de luxo desmedido –
E a Cor na minha Obra o que ficou do encanto...)


Além-tédio

Nada me expira já, nada me vive –
Nem a tristeza nem as horas belas.
De as não ter e de nunca vir a tê-las,
Fartam-me até as coisas que não tive.

Como eu quisera, enfim de alma esquecida,
Dormir em paz num leito de hospital...
Cansei dentro de mim, cansei a vida
De tanto a divagar em luz irreal.

Outrora imaginei escalar os céus
À força de ambição e nostalgia,
E doente-de-Novo, fui-me Deus
No grande rastro fulvo que me ardia.

Parti. Mas logo regressei à dor,
Pois tudo me ruiu... Tudo era igual:
A quimera, cingida, era real,
A própria maravilha tinha cor!

Ecoando-me em silêncio, a noite escura
Baixou-me assim na queda sem remédio;
Eu próprio me traguei na profundura,
Me sequei todo, endureci de tédio.
E só me resta hoje uma alegria:
É que, de tão iguais e tão vazios,
Os instantes me esvoam dia a dia
Cada vez mais velozes, mais esguios...

9 comentários:

avelaneiraflorida disse...

Méon,

Ao ler Mário de Sá-Carneiro sente-se algo de diferente...como se a vida e o tempo lhe pesassem demasiado!!!!
Um desencanto...constante!!!! Talvez o culto do "spleen" que era tão caro a outros companheiros de escrita...

Joaquim Moedas Duarte disse...

É isso, o chamado "decadentismo". Era preciso alguém que plasmasse em verso esse "mal de vivre" do homem contemporâneo. O infeliz Mário de Sá-Carneiro fê-lo e de que maneira!

biabisa disse...

Que bom ter escolhido e trazido aqui este Mário de quem eu tanto gosto!
"Um pouco mais de sol e eu era brasa", "Um pouco mais de azul e eu era além"... E foi além que ele foi encontrar aquilo que não entendeu na vida. O vil metal não manda nas consciências tristes e ávidas de afecto. Faltou-lhe a mãe e teve um pai muito ausente ... Perante este cenário e com os bolsos cheios, acha que se pode ser feliz?
Eu julgo a felicidade de outra maneira. Obrigada por tê-lo lembrado. E agarremos mais um pouco de sol e sejamos "AQUELA BRASA".

Joaquim Moedas Duarte disse...

Biabisa:

Sim, bastava este poema de que tanto gosta para fazer dele um grande poeta.

Mas, como sabe, há mais. Também gosto muito do "O que não possuo".
Ele exprimiu genialmente a frustração humana.

"Um pouco mais de sol..."

anónimo disse...

passo só para deixar os meus parabéns pelo excelente espaço.

já agora aproveito para dizer que, e não se bem explicar porquê, sempre que penso no mário s´s carneiro acho que há pessoas que não deviam desaparecer, nunca.

Maria Faia disse...

Estimado Amigo Méon,

Neste final de dia do Trabalhador e da Espiga, trago-te um beijo embrulhado em Liberdade.

Maria Faia

galatea disse...

Hola!
Me gustan los blogs con poesías, lieratura... cultura, pero mi portugués es muy minimo. Si he leido a los poetas y novelistas portugueses a través de las traducciones, Saramago y Pessoa. Le tengo un GRAN CARIÑO a Portugal, me parece un país amable y afectuoso, he leído 2 libros de Tabuchi (Sostiene Pereira y La cabeza de ...) y he quedado encantada con portugal. LOs quiero mucho.
Un abrazo.

Anónimo disse...

Whoever owns this blog, I would like to say that he has a great idea of choosing a topic.

Estranha pessoa esta disse...

Esmagador de sentires.
Gosto muito de Mario de Sá-Carneiro.
..

Belo encontro este.

Um abraço daqui destes lados do Oeste.
Serra de Montejunto :)