26.1.10

RECORDAR RAUL BRANDÃO



RAUL BRANDÃO - Terra e dor


Ao rever a obra de Raul Brandão (1867-1930) a partir da leitura do seu EL-REI JUNOT, dou-me conta da modernidade deste homem. Bebeu no pessimismo finissecular dos "nefelibatas" (à letra: “os que andam nas nuvens”), mais por rebeldia juvenil do que por desistência existencial, e entrou no novo século sob "o estandarte de seda branca da Arte Moderna". Amanuense militar por imposição familiar, foi nas Letras que terçou armas. Em 1910 saudou a República e reformou-se da tropa para escrever uma obra que chega até nós com inesperada actualidade. A participação na fundação da Seara Nova, no início dos anos 20, é expressão do seu sentido cívico de intervenção social e política.

A modernidade dos seus livros (“Húmus”, “A Morte do Palhaço e o Mistério da Árvore”, “A Farsa”, “Os Pobres”, “Pescadores”,entre outros) revela-se na desencantada visão da vida humana, “dividida entre o infinito e o vómito” – no dizer de Vítor Viçoso, especialista da sua obra.

Raul Brandão: a dor e o espanto de existir. A vida como farsa grotesca temperada de ternura quando se debruça sobre os pobres e abandonados. A consciência fulgurante da inevitabilidade da morte, convivendo com ela mas iludindo-a na partilha de um amor perene - a vivência com Maria Angelina, que perdura ainda nas páginas luminosas que lhe dedicou.

O seu olhar sobre a História, (EL-REI JUNOT e VIDA E MORTE DE GOMES FREIRE), respeita as fontes de informação mas mergulha nos subterrâneos da alma humana - como Dostoievski, cuja obra admirava - em busca do significado mais fundo dos acontecimentos. É uma visão impressionista da História, habitada por seres empurrados para o abismo da morte, movendo-se como títeres à mercê de forças desmedidas.
O Homem de Raul Brandão é um anjo manchado de terra e de dor que procura no sonho a plenitude de um paraíso perdido.
JMD


"EL-REI JUNOT"
Um livro que aborda a época da 1ª Invasão Francesa.


Começa assim:

«A história é dor, a verdadeira história é a dos gritos. Eis a árvore: na árvore todo o trabalho obscuro se congrega para produzir a flor. Os homens debalde se agitam, desesperam, morrem; a Ideia leva-os, espicaçados pelo aguilhão da dor, para um destino natural de beleza. Não passam de títeres: pensam que resolvem, são impelidos, e essa mescla, que um momento se atropela em cena — gestos, bocas amargas, farrapos tolhidos de dor e impregnados de sonho, essa nuvem de espectros agitados, desfaz-se logo em pó: as órbitas das caveiras que alastram a crosta terráquea não se despegam porém, di-lo Emerson, das estrelas do céu. Fica uma ideia no ar — fica um rasto na terra: a dor transmite-se.
Todo o século XVIII resume-o na luta da Revolução contra fórmulas arcaicas. E isto é ainda uma aparência: mais fundo deparas sempre com a máscara impenetrável da dor.
O homem tem atrás de si uma infindável cadeia de mortos a impeli-lo, e todos os gritos que se soltaram no mundo desde tempos imemoriais se lhe repercutem na alma. — É essa a história: o que sofreste, o que sonhaste há milhares de anos, tacteou, veio, confundido no mistério, explodir nesta boca amarga, neste gesto de cólera... Não é inútil nem sofrer, nem fazer sofrer, e não há gri-to que se perca no mundo. Nem o mais ignorado, nem o mais humilde. Escusas de te rir... E todo o esforço humano é no fundo uma lenta aproximação de Deus, assim como tudo na vida se resolve segundo a forma por que cada um encara Deus...»







UM TEXTO DE “OS PESCADORES”


PORES DO SOL

Se eu fosse pintor, passava a minha vida a pintar o pôr-do-sol à beira-mar. Fazia cem telas, todas variadas, com tintas novas e imprevistas. É um espectáculo extraordinário. Há-os em farfalhos, com largas pinceladas verdes. Há-os trágicos, quando as nuvens tomam todo o horizonte mm um ar de ameaça, e outros doirados e verdes, com o crescente fino da Lua no alto e do lado oposto a montanha enegrecida e compacta. Tardes violetas, oeste ar tão carregado de salitre que toma a boca pegajosa e amarga, e o mar violeta e doirado a molhar a areia e os alicerces dos velhos fortes abandonados...

Um poente desgrenhado, com nuvens negras lá no fundo, e uma luz sinistra. Ventania. Estratos monstruosos correm do forte. Sobre o mar fica um laivo esquecido que bóia nas águas – e não quer morrer...

Há na areia uns charcos onde se reflecte o universo – o céu, a luz, o poente. Não bolem e a luz demora-se aí até ao anoitecer. E como o poente é oiro fundido sobre o mar inteiramente verde, que a noite vai empolgar não tarda, os charcos, entre a areia húmida e escura, teimam em guardar a luz concentrada e esquecida.

Em todo o dia, o mar não se viu nitidamente. Névoa esbranquiçada, grandes rolos de poeira e sol misturados, água de que se exala um hálito verde envolvido nas ondas. Por fim, o Sol desceu e um nevoeiro imprevisto entranhou poalha de oiro no mar esverdeado, fantasmagoria e sonho nesta frescura extraordinária. (…)

Esta tarde, o Sol põe-se sobre uma barra e aparece deformado, entre grandes manchas de nuvens acobreadas. Some-se, e ressurge por fim como um grande balão de fogo num oceano revolto, até que entra numa grande nuvem espessa com interstícios de fogo e explode, iluminando o espaço e a água cor de chumbo.

Este faz sobressaltar e sonhar. Três horas da tarde. Céu limpo, mar manso, e sobre o mar uma chapada de prata, sobre o verde, mil escamas a cintilar, que brilham, luzem e tornam a reluzir. O Sol desce pouco e pouco, majestoso e sereno, no céu todo doirado e a luz forma uma estrada que liga o areal ao infinito, uma estrada larga, de oiro vivo, que começa a meus pés, na espuma ensanguentada, e chega ao Sol. Ó meu amor, não acredites na vida mesquinha, não duvides: dá-me a tua mão e vamos partir por essa estrada fora direitos ao céu!

Raul Brandão, in Os Pescadores



Obras publicadas


• Impressões e Paisagens (1890)

• História de um Palhaço (1896)

• O Padre (1901)

• A Farsa (1903)

• Os Pobres (1906)

• El-Rei Junot (1912)

• A Conspiração de 1817 (1914)

• Húmus (1917)

• Memórias (vol. I), (1919)

• Teatro (1923)

• Os Pescadores (1923)

• Memórias (vol. II), (1925)

• As Ilhas Desconhecidas (1926)

• A Morte do Palhaço e o Mistério das Árvores (1926)

• Jesus Cristo em Lisboa, em colaboração com Teixeira de Pascoaes, (1927)

• O Avejão (1929) (teatro)

• Portugal Pequenino, em colaboração com Maria Angelina Brandão, (1930)

• O Pobre de Pedir (1931)

• Vale de Josafat (vol. III das Memórias), (1933).


UM MÊS, UM AUTOR


A Biblioteca Municipal de Torres Vedras elegeu Raul Brandão para autor em destaque neste mês de Janeiro. Ao mesmo tempo, EL-REI JUNOT será o livro em debate em mais uma sessão da Comunidade de Leitores, a realizar em 27 de Janeiro, pelas 21.30, em que os dinamizadores serão os professores de História Pedro Fiéis e Joaquim Moedas Duarte. Entrada livre.

2 comentários:

lis disse...

Oi Méon
Descobri aqui o "Lugar Onde", um recanto de leitura . Belo achado. Claro que muitas vezes passei pelo seu blog , vi ,mas nao pude parar. Como gostaria de mais tempo, mais leitura , mais silencios !
Fico por aqui, sempre.
Abraços

Vítor Pena Viçoso disse...

Consultei o seu blogue com muito agrado. Verifico que temos interesses comuns, entre outros, idêntica paixão pela obra de Raul Brandão.
O seu blogue parece-me um excelente modo de publicitar a cultura portuguesa.
Já agora, convido-o a visitar o meu caosdeclinavel.blogspot.com
Vítor Viçoso