16.1.11

A ESCRITA SUMPTUOSA DE AGUSTINA BESSA-LUÍS



«E, contudo, auspiciosos dias os da matança! Vinham de longe os parentes, os homens com os varapaus de marmeleiro dourado pelo tempo e pelo fumo, as mulheres com as saias pretas em cuja fímbria secara a lama. Eram muitos, com suíças e cabeleiras duma cor parda ou ardente, e possuíam todos aquele sorriso áspero e fechado, como se permanentemente enfrentassem o vento, não com desagrado, mas com uma espécie de desdenhosa beatitude. Acampavam praticamente na cozinha, debicando azeitonas, pão doce, figos, e adivinhava-se neles uma sobriedade que não era desprezo da fartura, mas antes um fastio benevolente de quem nunca conheceu privação nem fomes. Constituíam, assim de pele clara, independentes e administradores magistrais das suas paixões, um verdadeiro clã, difícil de penetrar e de subornar. Mesmo alguém como Maria Delfina, ligada a essa gente pelo casa¬mento e entregando-se com boa-fé a toda a classe de subserviências de coração, não podia jamais pertencer à família e nunca obtivera senão uma estima tolerante da parte das suas jovens cunhadas; a pró¬pria sogra tratava-a sempre como a uma visita acidental, punha-lhe na cama os melhores lençóis, seguia-a com um olhar afável e preocupado cada vez que Delfina se deslocava dum lugar para o outro da casa; e, se a adivinhava grávida, prestava-lhe os cuidados mais comoventes, sem deixar de exprimir esse fiozinho de desdém com que se brinda toda a inexperiência. Fora preciso muito tempo para Maria Delfina compreender que um temperamento não obriga a laços profundos; e essa tribo, com as suas sobrancelhas loiras e os seus pequenos olhos vigiadores, com o seu ar onde pairava sempre uma ligeira e intrigante expectativa, possuía um temperamento, mas não amava senão duma forma episódica e imparcial aqueles que não nasciam nas suas fron¬teiras e no seu sangue. Era inútil servi-los, endividar-se por eles, per¬der a alma em nome dos seus vícios e dos seus dons; nunca o reco¬nheciam, sacudiam da pele os favores e as simpatias, com essa grosseria que se pressente nas autênticas solidões.


No tempo da matança, sem que fosse preciso distribuir convites, toda a família se reunia na casa-mãe, com os seus pequenos rebentos que perseguiam às varadas os patos até aos tanques e que disputavam velhos botões e piões e fundas. As mulheres eram bem feitas, o ventre um tanto salientei pelo estrangular da cintura, os pés bonitos e calçados com perfeição; vestiam-se com uma elegância sensual, gostavam das cores belas, da seda e do oiro, mas, ainda que atrevidas de palavras, pareciam ignorar os homens e esquivar-se, com algo de intencional, à sua categoria de fêmeas. Através duma prudência cheia de avisos e ausências, havia uma forma audaciosa, uma vontade manifesta da escolha, um decidir sem nunca chegar a oferecer condições — e Del¬fina achava tudo isso atroz, ainda que, de certo modo, apaixonante.»

in: A Brusca, Contos, 1971

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