28.11.12

LUGAR ONDE - Novembro 2012 - BADALADAS





JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA

DISTÂNCIA E RECOLHIMENTO ENTRE OS RUÍDOS DO MUNDO

A poesia é, por definição, território de diversidade e densidade. E se, como dizia Novalis, “quanto mais poético mais verdadeiro”, então a diversidade da poesia explica as múltiplas faces da verdade, isto é, a diversidade dos mundos - o exterior e o interior- e a vida do Homem joga-se na tensão entre os dois. Esta é, parece-me, a essência da construção poética de José Tolentino Mendonça (JTM).
Quando ele se refugia numa mansarda da Baixa de Lisboa para escrever o livro “O Viajante Sem Sono” ( v. revista LER, Novembro 2008), percebemos que o gesto tem algo de Simão Estilita: distância e recolhimento, sem deixar de estar atento aos ruídos do mundo que sobem até ele. A metáfora do eremita não é casual. JTM além de poeta, professor universitário, biblista, ensaísta e tradutor, também é padre. Mas nada de paternalista transparece na sua escrita, antes a humildade genuína de quem procura: “A minha poesia é o mapa da minha procura. É o testemunho de que eu busquei. Nem sempre diz o que busco mas diz sempre que eu busquei”(v. revista LER, Dezembro 2009). JTM sugere que  “as palavras que expressam o poético são as mesmas que expressam a indagação crente” e é esta sobreposição que lhe garante a universalidade de leitura de crentes e não crentes. O universo poético de JNT oferece-nos um percurso de busca e salvamento, sem nomear ruas nem lugares de destino. A salvação de cada um depende do silêncio que souber criar e da noite em que aceite viver – estes os códigos de acesso para a travessia do mundo.
A poesia de José Tolentino Mendonça nada me impõe, antes propõe: um olhar inocente porque “o mistério está todo na infância”. | JMD

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PERFIL

Nasceu na ilha da Madeira em 1965. Ordenado padre em 1989. Editou o seu primeiro livro de poesia Os Dias Contados em 1990 e, desde então, tem diversificado a sua obra como poeta, ensaísta e tradutor. Em 1997: tradução do Cântico dos Cânticos. 1994: ensaio As Estratégias do Desejo: Um Discurso Bíblico Sobre a Sexualidade. 2010: publicação de toda a obra poética no livro A Noite Abre Meus Olhos. 2011: livro de reflexão Pai Nosso que Estais na Terra. 2012: Estação Central.
Professor na Universidade Católica, é também o Director do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura. Foi nomeado, no final de 2011, consultor do Conselho Pontifício de Cultura do Vaticano.
Em Julho de 2012 foi considerado pelo semanário Expresso “uma das 100 personalidades mais influentes de Portugal” pela  projecção religiosa e cultural da sua acção em que propõe ao homem contemporâneo “o caminho solitário e silencioso da espiritualidade”. 


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POEMA OFERECIDO AO PAPA BENTO XVI

 Poema de J Tolentino Mendonça presente em Roma na homenagem a Bento XVI pelo 60º aniversário da sua ordenação sacerdotal do Papa:

O MISTÉRIO ESTÁ TODO NA INFÂNCIA

E, por fim, Deus regressa
carregado de intimidade e de imprevisto
já olhado de cima pelos séculos
humilde medida de um oral silêncio
que pensámos destinado a perder

Eis que Deus sobe a escada íngreme
mil vezes por nós repetida
e se detém à espera sem nenhuma impaciência
com a brandura de um cordeiro doente

Qual de nós dois é a sombra do outro?
Mesmo se piedade alguma conservar os mapas
desceremos quase a seguir
desmedidos e vazios
como o tronco de uma árvore

O mistério está todo na infância:
é preciso que o homem siga
o que há de mais luminoso
à maneira da criança futura

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 OUTROS POEMAS


O ESTERCO DO MUNDO

Tenho amigos que rezam a Simone Weil
Há muitos anos reparo em Flannery O'Connor

Rezar deve ser como essas coisas
que dizemos a alguém que dorme
temos e não temos esperança alguma
só a beleza pode descer para salvar-nos
quando as barreiras levantadas
permitirem
às imagens, aos ruídos, aos espúrios sedimentos
integrar o magnífico
cortejo sobre os escombros

Os orantes são mendigos da última hora
remexem profundamente através do vazio
até que neles
o vazio deflagre

São Paulo explica-o na Primeira Carta aos Coríntios,
«até agora somos o esterco do mundo»,
citação que Flannery trazia à cabeceira


A MULHER DESCONHECIDA

É muito bela esta mulher desconhecida
que me olha longamente
e repetidas vezes se interessa
pelo meu nome

eu não sei
mas nos curtos instantes de uma manhã
ela percorreu ásperas florestas
estações mais longas que as nossas
a imposição temível do que
desaparece

e se pergunta tantas vezes o meu nome
é porque no corpo que pensa
aquela luta arcaica, desmedida se cravou:
um esquecimento magnífico
repara a ferida irreparável
do doce amor

José Tolentino Mendonça
(in "A noite abre meus olhos/poesia reunida", Assírio & Alvim)





2 comentários:

lis disse...

Outro grande, Joaquim.
Um perfil enigmático, lendo os poemas dele nunca diria que era padre s
agora que dizes_ reconheço-o.
Belos poemas , me inspira a levá-los comigo rs

Joaquim Moedas Duarte disse...

Obrigado Lis. Leva sempre!
Bj