JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA
DISTÂNCIA E RECOLHIMENTO ENTRE OS RUÍDOS DO
MUNDO
A poesia é, por definição,
território de diversidade e densidade. E se, como dizia Novalis, “quanto mais
poético mais verdadeiro”, então a diversidade da poesia explica as múltiplas
faces da verdade, isto é, a diversidade dos mundos - o exterior e o interior- e
a vida do Homem joga-se na tensão entre os dois. Esta é, parece-me, a essência
da construção poética de José Tolentino Mendonça (JTM).
Quando ele se refugia numa
mansarda da Baixa de Lisboa para escrever o livro “O Viajante Sem Sono” ( v. revista LER, Novembro 2008), percebemos que o gesto tem algo de Simão
Estilita: distância e recolhimento, sem deixar de estar atento aos ruídos do
mundo que sobem até ele. A metáfora do eremita não é casual. JTM além de poeta,
professor universitário, biblista, ensaísta e tradutor, também é padre. Mas
nada de paternalista transparece na sua escrita, antes a humildade genuína de
quem procura: “A minha poesia é o mapa da minha procura. É o testemunho de que
eu busquei. Nem sempre diz o que busco mas diz sempre que eu busquei”(v. revista LER, Dezembro 2009). JTM sugere que “as palavras que expressam o poético são as
mesmas que expressam a indagação crente” e é esta sobreposição que lhe garante
a universalidade de leitura de crentes e não crentes. O universo poético de JNT
oferece-nos um percurso de busca e salvamento, sem nomear ruas nem lugares de
destino. A salvação de cada um depende do silêncio
que souber criar e da noite em que
aceite viver – estes os códigos de acesso para a travessia do mundo.
A poesia de José Tolentino
Mendonça nada me impõe, antes propõe: um olhar inocente porque “o mistério está
todo na infância”. | JMD
**********************************************
PERFIL
Nasceu na ilha da Madeira em 1965. Ordenado
padre em 1989. Editou o seu primeiro livro de poesia Os Dias Contados em
1990 e, desde então, tem diversificado a sua obra como poeta, ensaísta e
tradutor. Em 1997: tradução do Cântico dos Cânticos. 1994: ensaio As
Estratégias do Desejo: Um Discurso Bíblico Sobre a Sexualidade. 2010: publicação
de toda a obra poética no livro A Noite
Abre Meus Olhos. 2011: livro de
reflexão Pai Nosso que Estais na Terra.
2012: Estação Central.
Professor
na Universidade Católica, é também o Director do Secretariado Nacional da
Pastoral da Cultura. Foi nomeado, no final de 2011, consultor do Conselho
Pontifício de Cultura do Vaticano.
Em
Julho de 2012 foi considerado pelo semanário Expresso “uma das 100
personalidades mais influentes de Portugal” pela projecção religiosa e cultural da sua acção em
que propõe ao homem contemporâneo “o caminho solitário e silencioso da
espiritualidade”.
****************************************************
POEMA
OFERECIDO AO PAPA BENTO XVI
Poema de J Tolentino
Mendonça presente em Roma na homenagem a Bento XVI pelo 60º aniversário da sua
ordenação sacerdotal do Papa:
O
MISTÉRIO ESTÁ TODO NA INFÂNCIA
E, por
fim, Deus regressa
carregado de intimidade e de imprevisto
já olhado de cima pelos séculos
humilde medida de um oral silêncio
que pensámos destinado a perder
carregado de intimidade e de imprevisto
já olhado de cima pelos séculos
humilde medida de um oral silêncio
que pensámos destinado a perder
Eis que
Deus sobe a escada íngreme
mil vezes por nós repetida
e se detém à espera sem nenhuma impaciência
com a brandura de um cordeiro doente
mil vezes por nós repetida
e se detém à espera sem nenhuma impaciência
com a brandura de um cordeiro doente
Qual de
nós dois é a sombra do outro?
Mesmo se piedade alguma conservar os mapas
desceremos quase a seguir
desmedidos e vazios
como o tronco de uma árvore
Mesmo se piedade alguma conservar os mapas
desceremos quase a seguir
desmedidos e vazios
como o tronco de uma árvore
O
mistério está todo na infância:
é preciso que o homem siga
o que há de mais luminoso
à maneira da criança futura
é preciso que o homem siga
o que há de mais luminoso
à maneira da criança futura
*
O ESTERCO DO MUNDO
Tenho amigos que rezam a Simone
Weil
Há muitos anos reparo em Flannery O'Connor
Rezar deve ser como essas coisas
que dizemos a alguém que dorme
temos e não temos esperança alguma
só a beleza pode descer para salvar-nos
quando as barreiras levantadas
permitirem
às imagens, aos ruídos, aos espúrios sedimentos
integrar o magnífico
cortejo sobre os escombros
Os orantes são mendigos da última hora
remexem profundamente através do vazio
até que neles
o vazio deflagre
São Paulo explica-o na Primeira Carta aos Coríntios,
«até agora somos o esterco do mundo»,
citação que Flannery trazia à cabeceira
Há muitos anos reparo em Flannery O'Connor
Rezar deve ser como essas coisas
que dizemos a alguém que dorme
temos e não temos esperança alguma
só a beleza pode descer para salvar-nos
quando as barreiras levantadas
permitirem
às imagens, aos ruídos, aos espúrios sedimentos
integrar o magnífico
cortejo sobre os escombros
Os orantes são mendigos da última hora
remexem profundamente através do vazio
até que neles
o vazio deflagre
São Paulo explica-o na Primeira Carta aos Coríntios,
«até agora somos o esterco do mundo»,
citação que Flannery trazia à cabeceira
A MULHER DESCONHECIDA
É muito bela esta mulher desconhecida
que me olha longamente
e repetidas vezes se interessa
pelo meu nome
eu não sei
mas nos curtos instantes de uma
manhã
ela percorreu ásperas florestas
estações mais longas que as
nossas
a imposição temível do que
desaparece
e se pergunta tantas vezes o meu
nome
é porque no corpo que pensa
aquela luta arcaica, desmedida se
cravou:
um esquecimento magnífico
repara a ferida irreparável
do doce amor
José Tolentino Mendonça
(in "A noite abre meus olhos/poesia reunida", Assírio & Alvim)
(in "A noite abre meus olhos/poesia reunida", Assírio & Alvim)
2 comentários:
Outro grande, Joaquim.
Um perfil enigmático, lendo os poemas dele nunca diria que era padre s
agora que dizes_ reconheço-o.
Belos poemas , me inspira a levá-los comigo rs
Obrigado Lis. Leva sempre!
Bj
Enviar um comentário