3.2.13

LUGAR ONDE - 28 Dezembro - jornal BADALADAS ( TORRES VEDRAS)




LITERATURA PORTUGUESA DO SÉC. XX

UM DESASSOSSEGO DE LIVRO

Conheço quatro edições do "Livro do Desassossego" de Fernando Pessoa, aliás Bernardo Soares, ou ainda Vicente Guedes/Bernardo Soares, seus heterónimos. E há ainda as edições brasileiras e a que foi publicada por Jerónimo Pizarro em edição crítica na Imprensa Nacional - Casa da Moeda, em 2010, para além das edições noutras línguas. Todas divergem na organização e, até, em alguns conteúdos. Que estranho livro é este - cuja primeira edição é de 1982, 47 anos depois da morte do autor?

É um “livro que não é livro”, como diz J. Pizarro no seu recente "PESSOA EXISTE?" (Ática /Babel, 2012). Pessoa tinha em mente escrever um livro com aquele título mas nunca passou da fase de escrever fragmentos. Foi amontoando papéis a esmo, nos mais diversos suportes - subscritos, apontamentos, notas soltas misturadas com assuntos totalmente diferentes, folhas inteiras ou rasgadas, papel de embrulho... Muitas vezes deixava a indicação abreviada "L. D. ", outras vezes nem isso. Sem numeração nem indicações de precedência. E tudo isso ficou amontoado na célebre arca que o autor nunca organizou.
Cada LIVRO DO DESASSOSSEGO é, pois, o resultado de um conjunto de critérios definidos pelos estudiosos e editores que meteram ombros à tarefa ciclópica de compor o puzzle. O que faz a diferença é a definição e a hierarquização desses critérios, estabelecidos a partir de diversas metodologias.
Daí que seja possível ler diversas versões do livro, e todas aceitáveis, pois foram trabalhadas por experimentados pessoanos. Como diz Pizarro, " a sua forma depende de uma idealização" e as diversas edições "não existem senão como imitações de um Livro inexistente" - passe o paradoxo, que afinal corresponde ao que o próprio F. Pessoa escreveu sobre o projecto deste livro, em 1914, em carta a Armando Côrtes-Rodrigues: " Tudo fragmentos, fragmentos, fragmentos".
Sendo um livro tão estranho, como se explica a sua aceitação universal - é um dos mais conhecidos no estrangeiro - traduzido em 37 idiomas, “melhor livro do ano” na feira de Frankfurt de 1985?
A verdade é que os mais de 500 fragmentos dispersos na célebre arca de Pessoa, misturados com outros de obras diferentes, são textos de uma actualidade e profundidade psicológica que os tornam incrivelmente sedutores para o homem contemporâneo. É a angústia de viver, o desassossego de não saber para quê e como viver, as grandes interrogações sobre a vida e a morte, as reflexões com tema ou simplesmente banais mas carregadas de sinceridade desarmante - é tudo isto que encontramos nestas páginas muitas vezes arrebatadoras.
Um desassossego de livro, este Livro. Mas, curiosamente, é o seu carácter fragmentário e descontínuo que lhe confere inegável contemporaneidade, num tempo marcado pelos ritmos sincopados e pela desconstrução dos géneros literários.
Eu diria que este LIVRO DO DESASSOSSEGO é como uma sinfonia de jazz que todas as noites fosse tocada por músicos diferentes. | JMD


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QUE LIVRO?

"O que temos aqui não é um livro mas a sua subversão e negação, o livro em potência, o livro em plena ruína, o livro-sonho, o livro-desespero, o anti-livro, além de qualquer literatura". (Ricardo Zenith)

"Nestas impressões sem nexo, nem desejo de nexo, narro indiferentemente a minha autobiografia sem factos, a minha história sem vida. São as minhas confissões, e, se nelas nada digo, é que nada tenho que dizer".(Fernando Pessoa, sobre o projecto “Livro do Desassossego”)


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DESASSOSSEGOS…
(in: Livro do Desassossego, F. Pessoa, Relógio d’Água Editores, 2008)

"Se penso, é porque divago; se sonho, é porque estou desperto. Tudo em mim se embrulha comigo, e não tem forma de saber, de ser." (p. 354)

"Escrevo com uma grande intensidade de expressão; o que sinto nem sei o que é. Sou metade sonâmbulo e a outra parte nada."(p. 355)

“Contento-me, afinal, com muito pouco: o ter cessado a chuva, o ha­ver um sol bom neste Sul  feliz, bananas más amarelas por terem nó­doas negras, a gente que as vende porque fala, os passeios da Rua da Prata, o Tejo ao fundo, azul esverdeado a ouro, todo este recanto do­méstico do sistema do Universo.
Virá o dia em que não veja isto mais, em que me sobreviverão as bananas da orla do passeio, e as vozes das vendedeiras solertes, e os jornais do dia que o pequeno estendeu lado a lado na esquina do ou­tro passeio da rua. Bem sei que as bananas serão outras, e que as vendedeiras serão outras, e que os jornais terão, a quem se curvar para vê-los, uma data que não é a de hoje.
Mas eles, porque não vivem, duram ainda que outros; eu, porque vivo, passo ainda que o mesmo.”(p. 463)

 "Escrever é esquecer. A literatura é a maneira mais agradável de ignorar a vida. A música embala, as artes visuais animam, as artes vivas (como a dança e o representar) entretêm. A primeira, porém afasta-se da vida por fazer dela um sono; as segundas, contudo, não se afastam da vida - umas porque usam de fórmulas visíveis e portanto vitais, outras porque vivem da mesma vida humana. Não é esse o caso da literatura. Essa simula a vida. Um romance é uma história do que nunca foi e um drama é um romance dado sem narrativa. Um poema é a expressão de ideias ou de sentimentos em linguagem que ninguém emprega, pois que ninguém fala em verso".(P. 559/560)

“Afinal eu quem sou, quando não brinco? Um pobre órfão abandona­do nas ruas das sensações, tiritando de frio às esquinas da Realidade, ten­do que dormir nos degraus da Tristeza e comer o pão dado da Fantasia.
De meu pai sei o nome; disseram-me que se chamava Deus mas o nome não me dá ideia de nada. Às vezes, na noite, quando me sinto só, chamo por ele e choro, e faço-me uma ideia dele a que possa amar… Mas depois penso que o não conheço, que talvez ele não seja assim, que talvez não seja nunca esse pai da minha alma…”(p. 250)



Fotos(C)J Moedas Duarte

Toponímia existente no concelho de Torres Vedras
1ª foto: Urbanização do Infesto, arredores da cidade de TVedras
2ª foto: aldeia da Carvoeira.

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