Reler Eça é ver um filme de época, tal o poder evocativo da sua prosa.
Peguei no Primo Basílio e lá fui de novo à Lisboa oitocentista que ele descreveu com a mestria de um alvenel. É no final do primeiro capítulo.
(…)
Um homem grosso, de pernas tortas, curvado sob um realejo,
apareceu então ao alto da rua; as suas barbas pretas tinham um aspecto feroz;
parou, pôs-se a voltear a manivela, levantando em redor, para as janelas, um
sorriso triste de dentes brancos, e a «Casta Diva», com uma sonoridade
metálica e seca, muito tremida, espalhou-se pela rua.
Gertrudes, a criada e a concubina do doutor de matemática, veio
encostar logo aos caixilhos estreitos da janela a sua vasta face trigueira de
quarentona farta e estabelecida; adiante, na
sacada aberta de um segundo andar, debruçou-se a figura do Cunha Rosado, magro e chupado,
com um boné de borla, o aspecto desconsolado do doente de intestinos, conchegando com as
mãos transparentes o robe-de-chambre ao ventre. Outras faces enfastiadas
mostraram-se entre as bambinelas de cassa.
Na rua, a estanqueira chegou-se à porta, vestida de luto,
estendendo o seu carão viúvo, os braços cruzados sobre o xale tingido de preto,
esguia nas longas saias escoadas. Da loja, por baixo da casa do Azevedo, veio a
carvoeira, enorme de gravidez bestial, o cabelo esguedelhado em repas secas, a
cara oleosa e enfarruscada, com três pequenos meio nus, quase negros, chorões e
hirsutos, que se lhe penduravam da saia de chita. E o Paula, com loja de
trastes velhos, adiantou-se até ao meio da rua; a pala de verniz do seu boné de pano preto nunca se erguia de
cima dos olhos; escondia sempre as mãos, como para ser mais reservado, por trás
das costas, debaixo das abas do seu casaco de cotim branco; o calcanhar sujo da
meia saía-lhe para fora da chinela bordada a missanga; e fazia roncar o seu
pigarro crónico de um modo despeitado. Detestava os reis e os padres. O estado
das coisas públicas enfurecia-o. Assobiava frequentemente a «Maria da Fonte»; e
mostrava-se nas suas palavras, nas suas atitudes, um patriota exasperado.
O homem do realejo tirou o seu largo chapéu desabado e, tocando
sempre, ia-o estendendo em redor para as janelas, com um olhar necessitado. As
Azevedos tinham logo fechado violentamente a vidraça. A carvoeira deu-lhe uma
moeda de cobre; mas interrogou-o; quis decerto saber de que país era, por que
estradas tinha vindo, e quantas peças tinha o instrumento.
Gente endomingada
começava a recolher, com um ar derreado do longo passeio, as botas
empoeiradas: mulheres de xale, vindas das hortas, traziam ao colo as crianças
adormecidas da caminhada e do calor; velhos plácidos, de calça branca, o chapéu
na mão, gozavam a frescura, dando um giro no bairro; pelas janelas,
bocejava-se; o céu tomava uma cor azulada e polida, como uma porcelana; um sino
repicava a distância o fim de alguma festa de igreja; e o domingo terminava,
com uma serenidade cansada e triste.
(…)
Sem comentários:
Enviar um comentário