Seara, de Van Gogh
Apenas os calores primeiros de Junho encinzeiram o céu de tintas baças, toda a seara, tornada em palha de repente, cobre os margios dum infindável preia-mar cheio de galgões. Em quatro dias, os aspectos desse oceano de espigas transmutam para uma sinfonia oftálmica de cores cáusticas, entre que a vida crocita, nas mordeduras da luz, que bebe o sangue das ervas, como louca.
Hálito do inferno, já duas vezes o suão, ou vento levante, passando o Estreito, todo abrasado da escandência das areias africanas, veio sobre esses grandes vales argilosos do distrito de Beja lançar a morte; e o Verão do país sem água, o Verão alentejano, martirizante, irradiante, começa a encher de angústias a província e prepara cenário à colheita cerealífera, que este ano foi, sempre lho digo, duma vitoriosa e esplêndida abundância.
Vem na vanguarda a debulha das favas, o primeiro cereal que seca, na escala dos cultivados no Alentejo; após, vêm as cevadas; e o trigo logo; e, no fim de todos, os tremeses, que ainda mal espigam, quando já todo o faval está no celeiro.
Seca a seara, forçoso é ceifá-la célere e mão-tente, pois, nas cevadas sobretudo, apenas o bago mirra, desagrega-se da cápsula e logo tomba, do que a formiga se aguarda, para poder dizer à cigarra: —«Agora dança!».
Para os lavradores retardatários estas perdas de sementes chegam a contar-se por dezenas de alqueires, sumidos pelo formigal no subsolo, caso de espanto que nesta província sem braços obriga a disputar, a poder de dinheiro, os ceifadores.
O usual é dar as searas grandes de empreitada. Formam-se então bandos de trabalhadores à voz dum chefe. Vilas e aldeias, em ranchos, amaltesam para os campos das herdades, que no Alentejo, lá baixo, têm quilómetros. E a horrível faina começa sob os cinquenta graus do Sol, num céu de chumbo irradiante.
Nos anos quentes, é de ordinário o primeiro domingo de Junho, cinco da tarde, já pela fresca, a hora propícia para a abalada das companhas de ceifeiros. Â boca das estradas, no adro das igrejas, pelos cerros jacentes aos casebres, vem o manajeiro tocar uma buzina espinhosa, das que se desenterram na praia de Sines, e que produz no ar apático das vilas alguma coisa do apelo soturno que ficou talvez da tradição, das guerras célticas.
Logo, a pouco e pouco, começam a chegar os troços de rapazes, vestidos de velho, cotins arremendados, jaleco e alforje às costas com as provisões da semana — seis pães de trigo rijo, queijo de cabra, e o tarro das azeitonas sapateiras —, e à cinta a foice ,e o chapeirão braguês sombreando faces doiradas de morenos, tão árabes algumas, onde olhos pretos, profundos, de animal, estrelam a nostalgia dessa casta poética e mercenária.
(…)
Eles entanto, em linha à borda do trigo, distanciando seis metros um dos outros, começaram em silêncio a terrível faina de ceifar. Trazem as pernas apolainadas de trapos, atados estes por cordas que se lhes entrecruzam, desde os sapatos até às coxas, por defesa aos abrolhos do restolho; trazem nos braços e mãos peúgas velhas, de que fizeram mite-nes contra as escoriações da palha ardente; e a cara mal se lhes vê sob as abas do chapeirão de feltro ou de palmeira, e o mover dos seus rins trai o derreamento de miseráveis envilecidos pelas moedeiras da fome e do trabalho. Com a mão direita lançam a foice ao rés da terra; com a esquerda agarram nos caules e vão deixando atrás de si o trigo, em pequenos molhos paralelos. Aqui, além, inda os mais novos cantam, mas nas respirações opressas, cantiga e palestra entrecortam-se--lhes de pragas, quando o suor, trespassando a saragoça das calças e o pano cru das camisas, começa de se lhes pegar à carne, salgado e chamuscando-lhes as sarnas como fogo. As primeiras horas até ao almoço, são suaves, porque os 38 graus do Sol pouco fazem nessas índoles de salamandra, afeitas a torrar. Apenas alguma sede, um ou outro assopro aos moscardos que os perseguem, e olhadelas ao Sol para indagar se a meia hora de descanso do almoço, estará longe. Esse plácido interregno, porém, por pouco alcança, que a fornalha solar refila de brasidos, graduando o martírio na proporção da mais atroz perversidade. A oriente o Sol vem caminhando, saindo da fumarada do horizonte, passando da cor de sangue a bronze líquido; e os seus raios, à medida que se aprumam, trazem na escandescência náuseas de veneno, e a angústia horrorosa do metal derretido sobre a carne; rareia o ar, a aragem matinal cessa de todo, os cães arquejam de língua caída, as cavalgaduras cessam de rilhar; e calando-se os pássaros, e os voos mais lentos, os ares mais turvos, a sombra mais efémera — a hora do tormento diabólico da sede, não sede do paladar, tendo por centro de refrigério a gorja seca, mas sede do sangue espessado nas artérias, extenuadora sede dos tecidos, colossal, geral, que nada estanca, e sob cujo estertor o cérebro zumbe nos alucinantes delírios da insolação! Julgareis que a temperatura, marcada ao Sol por 44 mortais riscos do termómetro, tocado este acume, regresse lentamente às virações mais frígidas da tarde.
Falando em ceifeiros do Alentejo, logo acode a lembrança de um comovente poema que viemos encontrar AQUI, "Canta, ceifeiro, canta", com uma foto dos anos 30, num blogue muito interessante sobre o Alentejo esquecido...
Falando em ceifeiros do Alentejo, logo acode a lembrança de um comovente poema que viemos encontrar AQUI, "Canta, ceifeiro, canta", com uma foto dos anos 30, num blogue muito interessante sobre o Alentejo esquecido...
3 comentários:
Um blogue muito bom e um texto riquíssimo sobre a vida rural alentejana no tempo da ceifa e da debulha.
Voltarei.
Bem-haja!
Abraço fraterno
Méon,
aqui se fica neste texto imenso como a planície alentejana...
Impressivo de vida... nas palavras ...no português!
"Brigados" por esta partilha!
É a terra que nos chama...
Beijinho.
gostei : gosto do que os 3 fazem ou fizeram.
ps. o Fialho, o VGogh e do 'postador'
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