ESCRITORES ESQUECIDOS
TRINDADE COELHO E OS SEUS AMORES.
Há muito que não aparece nas selectas de Língua Portuguesa. No entanto escreveu páginas de antologia sobre a vida campestre dos finais do século XIX, descrições coloridas de lugares e costumes que permanecem no nosso imaginário - filhos e netos de camponeses que todos somos…
O século XIX português é o lugar de todas as mudanças sociais e políticas que explicam o nosso modo de ser actual. A incipiente industrialização com o início do desenvolvimento das áreas urbanas de Lisboa e Porto determinou o início da decadência rural, numa sucessão lenta mas inexorável de transformações que se projectaram até aos nossos dias. Na balança de ganhos e perdas, a crueza da vida urbana, em contraste com os antigos modos de vida ligados à Natureza, suscitou uma visão idílica da vida campesina que teve grande expressão literária nos romances de tema campestre como os de Júlio Dinis, herdeiros de alguns textos românticos de Garrett e Herculano, ou nas abordagens mais complexas de Eça de Queiroz ou de Camilo C. Branco.
Trindade Coelho, não sendo um escritor de carreira, foi talvez o maior expoente do que ficou conhecido como “conto rústico”, pequena peça literária em que ele aborda a simplicidade e a autenticidade da vida no campo. O conjunto de contos que publicou em 1891 com o título de Os Meus Amores – Contos e Baladas é, ainda hoje, de leitura extremamente atractiva, pelo pitoresco, a capacidade descritiva e a evocação de costumes, tradições e modos de falar das aldeias transmontanas. Camilo Castelo Branco apreciava-o e fez questão de o manifestar publicamente.
Mas a obra deste escritor não se quedou no conto rústico. Para além das memórias da sua vida de estudante de Direito em Coimbra, insertas no engraçadíssimo livro In Illo Tempore, bem como de alguns tratados de Direito que fizeram escola, Trindade Coelho foi um republicano convicto e empenhado, ainda em tempo de Monarquia, com a preocupação pela educação cívica do povo e a erradicação do analfabetismo, o que deu origem a obras como Manual Político do Cidadão Português, o ABC do Povo e o Livro de Leitura.
Na colecção Livros de Bolso Europa-América podem os nossos leitores encontrar, a preço muito acessível, os livros Os Meus Amores – Contos e Baladas (nº 244) e In Illo Tempore (nº 287).
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BIOGRAFIA BREVE
José Francisco Trindade Coelho (1861, Mogadouro – 1908, Lisboa). Formado em Direito pela Universidade de Coimbra, de cuja vivência deixa testemunho impressivo no livro In Illo Tempore. Actividade literária em jornais e revistas. Delegado do procurador régio em diversas localidades, fixa-se depois em Lisboa, já como juiz. Actividade intensa no plano jurídico e na formação cívica e pedagógica. A saudade da vida simples da terra natal leva-o à escrita de Os Meus Amores, obra-prima do conto rústico que lhe garante lugar de relevo na nossa Literatura.
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HISTÓRIAS DE ESTUDANTES
UM HOMEM NÃO É DE PAU
Um dos livros mais conhecidos de Trindade Coelho tem título em Latim: In Illo Tempore, que significa “Naquele Tempo”. É um conjunto de narrativas muito engraçadas que documentam como era a vida dos estudantes em Coimbra no final do século XIX. Dessas memórias ainda hoje se alimenta uma certa mitologia coimbrã, que associa a boémia e a irreverência à vida académica. Trindade Coelho deixou neste livro as recordações do tempo em que estudou na Lusa Atenas, referindo aspectos característicos da época, figuras típicas, poemas cómicos e, até, anedotas que fizeram história. Como esta, que faz parte do capítulo “Um homem não é de pau”:
O pai de certo estudante, espantado com os extraordinários que lhe fazia o filho, escreveu para Coimbra a pedir-lhe contas! Queria o rol da despesa todos os meses: «Ao menos, que demónio!, p’ra saber em que se vai embora tanto dinheiro!»
Obediente, prega-lhe o filho a conta seguinte, p’ra começar:
Quarto e comida..................................................... 18$000
Roupa lavada......................................................... 1$800
Cosida e engomada.................................................. 1$200
Sapateiro e alfaiate.................................................. 7$000
Papel, estampilhas, etc............................................. 2$000
Barba e cabelo........................................................ $500
Um homem não é de pau.........................................90$0OO
Soma réis..................................................……… 120$500
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Trindade Coelho e Camilo C Branco
Trindade Coelho nascera remediado e o andar da vida fizera dele menos de remediado; no entanto, formara-se em direito, à custa de suar estopinhas e de trabalhar, já casado e com um filho.
Publicara artigos nos jornais e escrevera dois dos contos que enriquecem a jóia que é Os Meus Amores: O Sultão e Idílio Rústico.
Concorre, em 1886, ao lugar de Delegado do Procurador Régio.
E recebe uma carta de alguém que não conhece e é o maior romancista português, como ele conta:
“Um dia de manhã recebo uma carta, de Camilo Castelo Branco, o grande escritor, que eu nunca tinha visto, nem ele a mim: dizia-me que vira nos jornais que eu fora a concurso e que escrevera ao ministro pedindo-lhe que me despachasse!
Caí das nuvens! Mas daí a poucos dias estava efectivamente despachado “delegado do Procurar Régio” do Sabugal, e eu ia ao Minho visitar o grande escritor, vê-lo pela primeira vez (primeira e última!) e beijar-lhe as mãos pelo seu tão grande favor”. (in: http://sobreorisco.blogspot.com/2011/03/camilo-e-trindade-coelho.html, acedido em 14 /03/2011)
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A COLHEITA
«Eiras além, livres dos trilhos que ficavam em cima da palha, levas de bois caminhavam vagarosamente, as largas orelhas pendentes, caudas oscilantes afagando nas ancas espaçosas o luzidio pêlo. E lá vão encosta abaixo, roçando pelos troncos ásperos dos castanheiros a enorme corpulência, fartar o largo bandulho à serena água das ribeiras, sorvendo vagarosamente, impando a cada sorvo, pesadamente, monotonamente, parece que insaciáveis no meio da água em que se atolam, submissa...
Ao fundo da eira, rente aos castanheiros escuros, um rancho de mulheres cantava alegremente, em coro. Acabara de ensacar-se o último grão da farta colheita do Tomé da Eira.
— Colheita rica, sim senhor! —vinham dizer-lhe os vizinhos.— A primeira da aldeia!
— Qual?! Isso sim! Vão vocês ver a tulha! Muita palha é que vocês hão-de dizer, muita palha e pouco grão...
E muito azafamado, sem prosápias de maioral nem jeitos de soberba, as mangas arregaçadas pelos cotovelos, o Tomé ia e vinha, dando ordens, repetindo avisos, distribuindo aqui e além as últimas tarefas.» (Extracto do conto O SULTÃO, de Trindade Coelho)
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