20.12.12

UM DESASSOSSEGO DE LIVRO



Tenho cá por casa estas quatro edições do "Livro do Desassossego" de Fernando Pessoa, aliás Bernardo Soares, ou ainda Vicente Guedes/Bernardo Soares.
E ainda faltam aqui as edições brasileiras, para além da publicada por Jerónimo Pizarro em edição crítica na Imprensa Nacional - Casa da Moeda, em 2010.

À primeira vista e aos leitores desprevenidos, apetece largar da mão esta amálgama de edições. Mas depois há que perguntar por que razão o livro teve tanta aceitação e acaba por ser um dos mais conhecidos no estrangeiro através das múltiplas traduções já feitas.


 A verdade é que os mais de 500 fragmentos dispersos na célebre arca de Pessoa, misturados com outros de obras diferentes, são textos de uma actualidade e profundidade psicológica que os tornam incrivelmente sedutores para o homem contemporâneo. É a angústia de viver, o desassossego de não saber para quê e como viver, as grandes interrogações sobre a vida e a morte, as reflexões com tema ou simplesmente banais mas carregadas de sinceridade desarmante - é tudo isto que encontramos nestas páginas muitas vezes arrebatadoras.

"Se penso, é porque divago; se sonho, é porque estou desperto. Tudo em mim se embrulha comigo, e não tem forma de saber, de ser." 

"Escrevo com uma grande intensidade de expressão; o que sinto nem sei o que é. Sou metade sonâmbulo e a outra parte nada."


Livro que não é livro, como diz J. Pizarro no seu recente "PESSOA EXISTE?" (Ática /Babel, 2012).
Pessoa tinha em mente escrever um livro com aquele título mas nunca passou da fase de escrever fragmentos. Foi amontoando papéis a esmo, nos mais diversos suportes - subscritos, apontamentos, notas soltas misturadas com assuntos totalmente diferentes, folhas inteiras ou rasgadas, papel de embrulho... Muitas vezes deixava a indicação abreviada "L D ", outras vezes nem isso. Sem numeração nem indicações de precedência.

Cada LIVRO DO DESASSOSSEGO  é o resultado de um conjunto de critérios definidos pelos estudiosos e editores que meteram ombros à tarefa ciclópica de compor o puzle. O que faz a diferença de umas edições para outras é a definição e a hierarquização dos critérios de organização, definidos a partir  
                                                            de pressupostos diversos.


Daí que seja possível ler diversas versões do livro, na certeza de que todas são aceitáveis pois foram feitas por experimentados pessoanos que nelas trabalharam. Como diz Pizarro, " a sua forma depende de uma idealização", estas edições "não existem senão como imitações de um Livro inexistente" - passe o paradoxo, que afinal corresponde ao que o próprio F. Pessoa escreveu sobre o projecto deste livro, em 1914, em carta a Armando Côrtes-Rodrigues: " Tudo fragmentos, fragmentos, fragmentos".

Fernando Pessoa morreu em 1935 e deixou uma arca com mais de trinta mil papéis, a maioria amontoados e sem articulação organizativa, cujo conteúdo está na Biblioteca Nacional e tem vindo a ser digitalizada, tarefa ainda longe de concluída.
Dezenas de investigadores já remexeram, reviraram, leram, organizaram e desorganizaram aquela papelada toda.

Um desassossego de livro, este Livro. Mas, curiosamente, é o seu carácter fragmentário e descontínuo que lhe confere inegável contemporaneidade, num tempo marcado pelos ritmos sincopados e pela desconstrução dos géneros literários.
Eu diria que este LIVRO DO DESASSOSSEGO é como uma sinfonia de jazz que todas as noites fosse tocada por músicos diferentes.

2 comentários:

lis disse...

Vou sair a procura do 'livro do Desassossego' porque fiquei desassossegada também com essa resenha tão completa,apesar de não ser novidade essa condição do ser humano _ o desassossego rs
Já li vários trechos desse livro aqui na internet e uma delas diz que:
"...o único modo de haver coisas novas, de sentir coisas novas é haver novidade no senti-las." ele instiga o leitor a descobrir sozinho._ algo assim!
Penso ser excelente, Joaquim
Obrigada pela dica
Abraços e um Ano Novo muito Feliz

Joaquim Moedas Duarte disse...

Lis
Nunca tive oportunidade de comentar o teu comentário. Mais não fosse, pelo menos agradecendo a tua visita ao blogue e a gentileza de deixares um sinal de passagem.

Este Livro do Desassossego é uma inspiração permanente, de facto. Regresso às suas páginas com frequência e descubro sempre coisas novas. Outras vezes irrito-me e fecho o livro com um "vai dar uma volta, ó meu desgraçado! És doentio, pá!".
E na semana seguinte lá volto eu e fico pensativo ou deslumbrado...

Beijo