ANTÓNIO NOBRE: SÓ
Referindo-se ao SÓ, o título mais pequeno da literatura portuguesa, Virgílio Ferreira escreveu: «…livro deslumbrante…singulariza-se muito por ostentar uma desconcertante, mas cativante, originalidade. (…) À época do seu aparecimento (1892), o SÓ causou, além de fascínio, estupefacção e escândalo…» (Colóquio/Letras, Janeiro 1993)
Depois de António Nobre a poesia portuguesa não voltou a ser a mesma. Escrita no fio da navalha entre o narcisismo e a identificação com um certo modo colectivo de ser português, a poesia de A.Nobre entrou pelo século XX e deixou marcas profundas.
O grande Fernando Pessoa, num texto em memória de António Nobre, escreveu: « (...) ele foi o primeiro a pôr em europeu este sentimento das almas e das coisas, que tem pena de que umas não sejam corpos, para lhes poder fazer festas, e de que outras não sejam gente, para poder falar com elas. O ingénuo panteísmo da Raça, que tem carinhos de espontânea frase para com as árvores e as pedras, desabrochou nele melancolicamente. Ele vem no Outono e pelo crepúsculo. Pobre de quem o compreende e ama.»
Num estilo inconfundível, em que se misturam a saudade da infância com a ternura pelas gentes de trabalho, pobres mas invejáveis pela riqueza de uma saúde que lhe fugia, António Nobre renova a poesia portuguesa através do tom coloquial e uma visão do mundo que se inspira no olhar ingénuo e puro das crianças.
Homem viajado, com formação universitária e um agudo sentido da observação, soube expressar de forma pungente a sua ânsia de vida com a amarga intuição da morte. Estes dois temas percorrem todas as páginas do livro “SÓ”, testemunho paradoxal de amor à vida e aceitação da morte como libertação do sofrimento. Virgílio Ferreira
J.M.D.
António Nobre – 1867 / 1900
Portuense de nascimento, frequentou a Faculdade de Direito de Coimbra, acabando por tirar o curso de Ciências Económicas em Paris. Ingressa na vida diplomática, mas a tuberculose não o deixa exercer a profissão. Em busca de alívio para os seus males, passa vários meses na Suíça, vai aos Estados Unidos, estagia na Madeira. A única obra que edita em vida, SÓ (1892), considerada pelo autor «o livro mais triste que há em Portugal», impõe-no como um dos maiores e mais originais e influentes poetas. Postumamente, foram publicados os livros: “despedidas” (1902) e “Primeiros Versos” (1921). (In “Tesouros da Poesia Portuguesa”, A. M. Couto Viana, Ed.Verbo, 1983.)
António Nobre, recusando a elaboração convencional, oratória e elevada da linguagem, libertou-a, procurando um tom de coloquialidade, sensível mais que reflexivo, cheio de ritmos livres e musicais, afectivo, oral, precursor de muitos aspectos da modernidade e acompanhado de uma imagística rica e original. ( In: História Da Literatura Portuguesa, Texto Editora Multimédia)
Menino e moço
Tombou da haste a flor da minha infância alada
Murchou na jarra de oiro o púdico jasmim:
Voou aos altos Céus a pomba enamorada
Que dantes estendia as suas asas sobre mim.
Julguei que fosse eterna a luz dessa alvorada,
E que era sempre dia, e nunca tinha fim
Essa visão de luar que vivia encantada,
Num castelo com torres de marfim!
Mas, hoje, as pombas de oiro, aves da minha infância,
Que me enchiam de Lua o coração, outrora,
Partiram e no Céu evolam-se, a distância!
Debalde clamo e choro, erguendo aos Céus meus ais;
Voltam na asa do vento os ais que a alma chora,
Elas, porém, Senhor! Elas não voltam mais...
AO CAIR DAS FOLHAS
A minha irmã Maria da Glória
Pudessem suas mãos cobrir meu rosto,
Fechar-me os olhos e compor-me o leito,
Quando, sequinho, as mãos em cruz no peito,
Eu me for viajar para o sol-posto.
De modo que me faça bom encosto
O travesseiro comporá com jeito.
E eu tão feliz! – Por não estar afeito,
Hei-de sorrir, Senhor, quase com gosto.
Até com gosto, sim! Que faz quem vive
Órfão de mimos, viúvo de esperanças,
Solteiro de venturas que não tive?
Assim irei dormir com as crianças,
Quase como elas, quase sem pecados...
E acabarão, enfim, os meus cuidados.
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