19.9.06

Ler é assim tão importante?



Ora vejamos...


Estamos na civilização da imagem. Houve até quem dissesse muito a sério que “uma imagem vale por mil palavras”.
Então, para quê tanto alarido com a necessidade de ler?

Há mais de cinco mil anos os escribas eram considerados pelos egípcios uma classe privilegiada. Porque dominavam os códigos de comunicação, escreviam mensagens e lançavam-nas ao futuro – e elas chegaram até nós. Hoje mantém estatuto idêntico quem domina esses códigos e os coloca ao serviço de qualquer projecto de afirmação: os advogados, os políticos, os economistas, os ministros de todas as religiões. Quem os desconhece perde capacidade de intervir ou, mesmo, de sobreviver. Tudo gira em torno da palavra escrita, meio indispensável de manutenção dos vínculos sociais.
Esta evidência está na origem do gigantesco esforço que se tem vindo a fazer ao longo das últimas décadas para erradicar o analfabetismo português que, à data da implantação da República, em 1910, rondava os 80%.
Em 1997 o Instituto Português do Livro e das Bibliotecas lançou o Programa Nacional de Promoção da Leitura. Por esse país fora alastrou uma rede pública de bibliotecas que cobriu praticamente todos os concelhos. Um exemplo é o dinamismo da nossa Biblioteca Municipal, integrada nessa rede e apoiada pelo referido programa. Mas os resultados palpáveis tardam em aparecer. Se o analfabetismo puro e duro foi muito atenuado, continua a manifestar-se um elevado índice de iliteracia, entendida esta como a “capacidade para ler e perceber o(s) sentido(s) do que se lê”.
Daí o lançamento recente – em Junho deste ano – do Plano Nacional de Leitura (Resolução do Conselho de Ministros nº 86/2006), em cuja introdução se lê, a abrir:


«Os resultados globais de estudos nacionais e internacionais realizados nas últimas duas décadas demonstram que, no que respeita ao domínio da leitura, a situação de Portugal é grave, revelando baixos níveis de literacia, significativamente inferiores à média europeia, tanto na população adulta, como entre crianças e jovens em idade escolar.»
E mais adiante:

«Também os resultados das provas de aferição, realizadas no final do 1.º ciclo, tornaram evidente que a maioria das crianças faz a transição para o 2.º ciclo sem ter adquirido competências básicas no domínio da leitura e da escrita.»
Em nossa opinião, este é um projecto que deve assumir dimensão nacional. Estando centrado nas escolas, todos somos chamados a intervir: pais, educadores, associações, comunicação social.
Não, uma imagem não vale por mil palavras. Porque, sem palavras, qualquer imagem fica prisioneira da simples e limitada percepção visual.
MD
Os jovens não lêem! Que fazer? Sim, que fazer?

Daniel Pennac tentou responder à pergunta angustiada de pais e professores num livro notável e plenamente actual, publicado em 1993 pelas ed. ASA: Como Um Romance.
O autor faz uma análise brilhante sobre o percurso da aprendizagem da leitura. Em pequenos capítulos, cheios de humor e observações centradas na experiência de todos nós, mostra como a perda do gosto pela leitura está ligada aos erros pedagógicos dos primeiros anos escolares. E assim, o que era gosto e aventura na fase da leitura recreativa, feita pelos pais antes de a criança adormecer, torna-se, na escola, obrigação penosa, uma “seca”. Transformamos os ouvintes sedentos em dissecadores de frases, livros sobre a mesa da morgue.
Opõem-lhe o exemplo de professores que fazem leitura expressiva (em voz alta) nas aulas. Uma aluna de um desses professores relata a sua experiência inesquecível:

«Essa descoberta aconteceu depois de uma interminável escolaridade, onde o ensino das Letras nos colocara a uma respeitável distância dos livros. Mas o que fazia ele, que os outros professoreis não faziam? Nada de especial. Sob certos aspectos, até fazia menos. Acontecia apenas que não nos entregava a literatura com um conta-gotas analítico, servia-a em generosas quantidades… (…) Falava-nos de tudo, lia-nos tudo, porque sabia que não tínhamos uma biblioteca na cabeça. Tomava-nos por aquilo que éramos, jovens alunos incultos que mereciam aprender.». (Op.cit, 11ª ed., pág. 84/85)

Na linha da dessacralização da literatura que é o pano de fundo do seu livro, Daniel Pennac enunciou um decálogo que se tornou célebre:

" Em matéria de leitura, nós, os «leitores», temos todos os direitos, a começar pelos que recusamos aos jovens que pretendemos iniciar na leitura.
1) O direito de não ler.
2) O direito de saltar páginas.
3) O direito de não acabar um livro.
4) O direito de reler.
5) O direito de ler não importa o quê.
6) O direito de amar os «heróis» dos romances.
7) O direito de ler não importa onde.
8) O direito de saltar de livro em livro.
9) O direito de ler em voz alta.
10) O direito de não falar do que se leu.
(...)
Porque se queremos que o nosso filho, a nossa filha, a juventude leiam, é urgente outorgar-lhes os direitos que outorgamos a nós próprios."

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