Mas é preciso recordar que o Surrealismo não morreu. Em Portugal houve sempre um grande mal-entendido sobre esta palavra/conceito. Cruzeiro Seixas, felizmente ainda vivo e um dos nossos grandes surrealistas, disse há tempos numa entrevista:
"Em Portugal, na Assembleia da República, que devia ser um lugar de ciência e de conhecimento, os senhores deputados quando querem referir-se a um caso disparatado dizem: « Isso é surrealista»; na sua ignorância, julgam que surrealismo é sinónimo de disparate; não sabem que é uma filosofia".in "Apeadeiro 04/05", revista de atitudes literárias, inverno de 2004, ed. Quasi.
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Mais adiante o entrevistador pergunta:
"Quando de um coração faz irromper uma asa, na sua dialéctica artística, procura traduzir o sonho para além do mundo terreno?"
E ele responde:
"São imagens poéticas. Tal como o poeta também o pintor vive de imagens. E são as imagens que me mantêm a flutuar neste mundo, de contrário já tinha ido ao fundo. `qualquer coisa que acrescentamos sempre à desesperança, a tal asa... O homem é insatisfação. nem o amor sublime calou a ânsia de sonhar."
Regresso muitas vezes a essa longa entrevista porque ela é uma imensa janela sobre outros mundos que mal sonhamos.
Aprendi com Cesariny que poesia e pintura se completam. E que ambas são lava do mesmo vulcão da vida, irredutível às explicações, necessárias mas nunca suficientes, da Razão. Como escreveu Pascal: "O destino da razão é ver que há muitas coisas que vão mais além do que ela".
André Breton, o homem chave do Surrealismo em França, explicou:
«Tudo induz a acreditar que existe certo ponto do espírito em que a vida e a morte, o real e o imaginário, o passado e o futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo cessem de ser percebidos contraditoriamente. Em vão se deve procurar outro móbil à actividade surrealista, que a esperança de determinar esse ponto.»
O surrealismo é uma filosofia. Mais: é uma actitude perante a vida. É inconformismo, desprezo pelos bonzos que querem domesticar a humanidade, espírito libertário, afirmação extrema de individualismo temperada pela consciência de que todos estamos no mesmo barco.
Por isso o processo dito do "cadáver esquisito" é uma forma de criação / expressão colectiva composta pela soma de muitas partes individuais: cada artista (pintor, poeta da escrita...) acrescenta algo a uma obra que vai sendo feita por todos, sem que haja uma concepção inicial previamente conhecida por todos, só têm de dar continuidade.
Só no final da vida Mário Cesariny teve o reconhecimento devido, mas era por já estar velho, já não ser perigoso. O surrealismo incomodou politicamente muita gente - e ainda incomoda. E até faz rir ouvir agoraCavaco Silva falar da "perda de um grande homem da nossa cultura"...
Transcrevo a dedicatória de Mário Cesariny a Cruzeiro Seixas numa exposição que este fez em África:
"Queria de ti um pais de bondade e de bruma
Queria de ti o mar de uma rosa de espuma."
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